A lei 12.850/13 e a criminalidade organizada: impressões iniciais de seus aspectos penais

AutorFlávio Augusto Maretti Sgrilli Siqueira
CargoDoutorando em Direito Penal e Política Criminal (Universidad de Granada) Mestre em Direito Penal e Tutela dos Interesses Supraindividuais (UEM) Especialista em Direito e Processo Penal (UEL)
Páginas6-17

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I Introdução

Lei 12.850/13 foi publicada no dia 2 de agosto de 2013 e promoveu uma modificação no enfrentamento jurídico-penal à criminalidade organizada1, posto que alterou dispositivos penais e processuais penais sobre o tema, que será objeto de uma análise prefacial com ênfase em elementos de direito penal, tipologia da lei, colaboração premiada e sua interligação com a Lei 9.613/98.

II Criminalidade organizada: o que é isso?

Antes de qualquer argumentação sobre a nova lei, calha aclararmos de pronto que entendemos que a Lei 12.850/13 derrogou o conceito de organização criminosa2 previsto na Lei 12.694/123, o que é corretamente objetado em sede doutrinária sob o prisma de quebra de segurança jurídica4 com a coexistência de dois conceitos de organização criminosa.

Muito embora a Lei 12.850/13 seja mais gravosa que a antiga le-gislação, temos que ela somente será aplicada para os fatos come-tidos após o decurso de sua vacatio legis e que aos fatos cometidos anteriormente a ela temos apenas a adoção de seu conceito para fins de integração com elementares de outros tipos penais que demandem sua presença, ex vi lei antidrogas e lei de lavagem de capitais, além de sua adoção para fins de parâmetros de investigação criminal e autorização do julgamento cole-giado.

Inicia a lei em seu artigo 1º, § 1º, apresentando um conceito de organização criminosa5, trazendo como traços identificadores a organização estrutural, a quantidade mínima de agentes, a divisão de funções, o intuito de obter vantagem, o caráter transnacional ou o cometimento de delitos com pena máxima superior a quatro anos.

Malgrado a lei tenha trazido estes elementos identificadores, al-guns são de difícil precisão, o que tornará árdua a tarefa de diferenciação dos delitos do artigo 288 e 288-A do Código Penal, além do próprio concurso de agentes. Aliás, o ato de encerrar determinadas condutas humanas em tipos penais, como a do estudo em tela, gera o risco de criarmos um tipo muito restrito quanto a sua incidência ou deveras aberto6.

A lei demanda a associação de, no mínimo, quatro pessoas, o que não se diferencia do delito de formação de quadrilha, que prevê “associarem-se mais de três pessoas”. A convenção da Organização das Nações Unidas para combate ao crime organizado transnacional, que foi devidamente recepcionada pelo ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto Legislativo
5.014/04, em seu artigo 5º, previu a possibilidade do enquadramento penal da conduta com até mesmo dois agentes7.

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A lei penal brasileira poderia ter incorporado uma quantidade maior de pessoas para delimitação da criminalidade organizada porque essas estruturas são marcadas por um número grande de envolvidos; logo, a previsão de um número igual ao delito de quadrilha ou bando apresentará uma dificuldade teórica e prática na delimitação da incidência dos tipos penais, até mesmo porque o delito de quadrilha demanda “uma reunião não eventual de pessoas, com caráter relativamente duradouro”8.

A organização estrutural com divisão de funções não é prevista nos delitos de quadrilha e de milícia armada, porém resta como algo ínsito à caracterização de tais transgressões como decorrência do ato de associar-se ou qualquer verbo do tipo penal do artigo 288-A do Código Penal9.

Em se cuidando da informalidade, temos que a lei foi fidedigna à realidade porque não se encontrará uma estrutura formalizada para o cometimento de delitos; o que há é uma estrutura lícita com aparência de válida que por detrás utiliza essa roupagem para informalmente dividir as funções e cometer os delitos.

Quando a lei fala em obtenção de vantagem10 preponderantemente cuida-se de vantagem econômico-financeira, mas pode ser de qualquer outra espécie, e.g. sexual. O desacerto dessa proposição vem quando a lei equipara a criminali-dade organizada às organizações terroristas, posto que nestes casos não há na maioria dos casos o dolo de obter vantagem direta ou indireta.

A criminalidade de ódio que prega a intolerância racial, étnica, política11 ou religiosa não se pauta pela busca de vantagens com seus atos, mas sim com a reafirmação de seus valores como algo pre-ponderante ou simplesmente para mostrar que a sociedade contrária à ideologia deles ‘também sangra’.

Logo, se o objetivo do legislador era enquadrar atos de terrorismo com criminalidade organizada, não o conseguirá, malgrado tal figura nitidamente possa ser configurada como uma criminalidade organizada quando se busca integrar esse dispositivo com elementos hauridos da criminologia.

É certo que, preponderantemente, a organização criminosa tem por base o modelo de estrutura empresarial, porém não pode o legislador descurar-se de promover figuras equiparadas que possibilitem o enquadramento de outras realidades criminais.

O caráter transnacional é um traço notadamente identificador de organizações criminosas, mas não o é de forma predominante e nesse ponto andou bem o legislador ao lidar com ela como algo que pode ter suas atividades projetadas com cometimento de infrações penais para outro país ou não.

O estabelecimento de um limite temporal de no mínimo quatro anos de pena máxima para a caracterização da criminalidade organizada não nos afigura certo, posto que em diversas situações temos um Estado amorfo, onde as infrações penais podem variar para outros que escapem ao enquadramento da conduta no limiar de pena, i.g, jogo do bicho.

Contudo, andou bem o legislador ao prever que tanto delitos quanto contravenções penais podem configurar crime organizado e nesse fator atentou-se a lei à realidade criminológica do Rio de Janeiro, com a exploração de contravenções penais com elevado proveito financeiro e alta estrutura organizacional, tal qual como o fez com a alteração na lei de lavagem de capitais.

III O tipo penal do artigo 2º da Lei 12.850/13

A principal inovação da lei foi a apresentação de um tipo penal referente à integração de organização criminosa e sobre ele traremos breves apontamentos.

O tipo penal do artigo 2º da Lei 12.850/13 preleciona que: “Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa: Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.”

O bem jurídico-penal salvaguardado com o delito para alguns será a paz pública pelo interesse que o Estado possui em evitar o cometimento de delitos e que a vida cotidiana transcorra com “tranquilidade pública e segurança coletiva”12.

O sujeito ativo do delito é qualquer pessoa, posto que a lei não demandou nenhuma qualidade especial para que a pessoa tome parte, dentro dos verbos traçados, da organização criminosa.

O sujeito passivo será a coletividade, podendo haver alguns que sustentem ser o Estado, em função de que a criminalidade organizada afeta estruturas estatais e torne difícil a própria legitimidade do Estado como responsável pela manutenção da ordem pública.

O tipo objetivo apresenta quatro verbos, a saber: promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa.

Promover significa divulgar, difundir, tornar conhecida.

Constituir denota o comportamento de fundar, criar, fazer surgir uma organização.

Financiar implica custear, injetar aporte de capital na organização.

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Integrar revela o ato de associar-se, tomar parte, fazer parte da mesma.

A expressão ‘por interposta pessoa’ gera a tipificação do comportamento de terceiro que atua em nome de outrem, sendo que essa pessoa que será seu ‘procurador’ responderá pelo delito igual aquele que lhe outorgou a ordem de cometer qualquer das condutas do núcleo penal, desde que tenha conhecimento das atividades inerentes à organização criminosa.

A elementar ‘organização criminosa’ é integrada pelo conceito existente no artigo 1º, §§ 1º e 2º, da Lei 12.850/13, não se caracterizado como elemento normativo do tipo penal.

O tipo subjetivo é o dolo, ou seja, a vontade livre e consciente de fazer parte de organização criminosa ciente de suas atividades ilícitas.

No que tange à consumação dentro dos tipos penais, podemos observar que temos verbos que são permanentes como integrar, ou seja, enquanto a pessoa estiver participando, associada haverá a consumação do delito, e outros que são instantâneos ou permanentes dependendo do modus operandi, como financiar13 ou promover, instantâneo de efeitos permanentes, como constituir, porque a constituição é feita em um ato e a permanência da organização criminosa independe em muitos casos da vontade do fundador.

Assim sendo, todos os verbos podem ser objeto de tentativa ainda que em alguns casos essa seja de difícil caracterização.

Ao fim, neste item, verifica-se que o legislador corretamente previu a possibilidade de concurso de delitos com as infrações penais cometidas pelas pessoas envolvidas na associação, o que não é novidade no Código Penal brasileiro.

Contudo, haverá de se provar que havia conhecimento concreto dos envolvidos na organização criminosa da ocorrência da infração penal cometida, ou seja, a demonstração de que havia ciência da realização da conduta e que houve consenso quanto à sua realização ou que não se opôs a ocorrência da conduta, sob pena de consagrar a responsabilidade penal objetiva que é vedada no direito penal brasileiro.

IV Figura equiparada

O delito do artigo 2º, § 1º, da

Lei 12.850/13 estipula uma figura equiparada ao estabelecer que: “Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a...

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