O crime de supressão ou redução de tributo

AutorHugo de Brito Machado
CargoJuiz aposentado do TRF-5a Região - Professor Titular de Direito Tributário da UFC
Páginas198-224

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1. Introdução

É relativamente recente a definição como crime de condutas peculiares da relação tributária, vale dizer, o surgimento do denominado direito penal tributário, ou ramo do direito penal que cuida dos crimes em matéria tributária ou que alberga a definição dos tipos penais que se podem configurar na relação tributária e comina as penas criminais a estes aplicáveis pela autoridade judiciária competente. Antes tínhamos o direito tributário e o direito penal, como distintos ramos do Direito, e os que a um deles se dedicavam pouco ou nada conheciam do outro. Por isto, muitos advogados, nas questões concernentes aos crimes contra a ordem tributária, passaram a atuar em dupla: um criminalista e um tributarista.

Realmente, o trato das questões relativas aos crimes contra a ordem tributária exige conhecimento das duas áreas - a saber: do direito penal e do direito tributário. E esse conhecimento não é comum aos operadores do Direito, que geralmente

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trabalham em uma ou outra dessas duas áreas da Ciência Jurídica.

Começamos nossa atividade profissional como contabilista, e nessa condição tivemos estreito contato com questões tributárias, e com essas questões quase exclusivamente trabalhamos depois, como advogado. Além disto, ingressamos no ensino universitário em concurso público para o cargo de professor de "Direito Tributário", disciplina que ainda hoje lecio-namos. Por outro lado, como juiz federal, quando ainda não tínhamos Varas especializadas, tivemos de lidar com o direito penal. Não foram poucas as ações penais que tivemos de julgar como Juiz Federal da 2a Vara no Ceará, e mais tarde como Juiz do TRF-5a Região. Daí por que não tivemos as dificuldades em geral enfrentadas por quem se lança ao estudo dos crimes contra a ordem tributária.

Conscientes, porém, dessas dificuldades, em nosso livro a respeito do tema cuidamos de incluir um capítulo dedicado aos criminalistas, contendo noções fundamentais de direito tributário. E outro dedicado aos tributaristas, contendo noções fundamentais de direito penal. No presente estudo, aliás, para justificar o que nos parece ser a adequada interpretação da expressão "suprimir ou reduzir tributo", buscamos valioso subsídio no Curso de Direito Tributário, obra do eminente tri-butarista Paulo de Barros Carvalho - o que confirma a necessidade de conhecimentos do direito tributário para a abordagem do crime em questão.

2. Elementos do tipo
2. 1 Ações-núcleo do tipo

Constituem o núcleo do tipo penal em questão as ações de suprimir ou de reduzir tributo ou contribuição social e qualquer acessório mediante uma ou mais de uma das condutas legalmente descritas na definição do crime. Não basta a ocorrência de uma ou de mais de uma dessas condutas.

Para a caracterização do crime é necessária a supressão, ou a redução, do tributo.

A referência a contribuição social é desnecessária, porque contribuição social é uma espécie de tributo. O legislador parece ter tido o propósito de evitar controvérsias a esse respeito, e somente assim se explica tal referência. Já a referência a qualquer acessório pode ser entendida como destinada a ampliar o tipo, nele incluindo a supressão ou redução de multas ou de juros eventualmente devidos. Ação com a qual o agente não suprime nem reduz o tributo, mas suprime ou reduz a multa ou os juros.

O significado dos verbos "suprimir" e "reduzir" no contexto do tipo penal em questão ainda não foi bem explicado pela doutrina. Alguns sustentam que "suprimir tributo" é tarefa privativa do legislador. Outros afirmam que "suprimir" é deixar de pagar. Parece que uns e outros não perceberam com precisão o significado da expressão "suprimir ou reduzir tributo", porque não levaram em consideração o sentido da palavra "tributo" nesse contexto.

Assim é que Juary Silva formulou: "(...) reparo à equivocidade da figura descrita na lei, uma vez que não se cuida de 'suprimir ou reduzir tributo', porém de não pagá-lo no quantum legalmente exigível, o que é coisa diversa; a supressão ou a redução de tributo compete ao Legislativo, não podendo efetuá-la o particular, por definição".1

No mesmo sentido manifestou-se José Alves Paulino, escrevendo: "O objeto do tipo previsto no caput do art. 1° da Lei 8.137/1990, ou os atos ou fins do agente ativo, é 'suprimir ou reduzir tributo ou contribuição social e qualquer acessório'. No entanto, o que está previsto na ordem tributária, no sistema tributário nacional - art. 150, § 6°, da Constituição - , é que somente lei específica pode 'suprimir'

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ou 'reduzir' tributo, daí essa supressão ou redução ser um ato impossível de ser praticado pelo contribuinte - é o crime impossível".2

E, ainda, invocando a opinião de Lin-demberg da Mota Silveira:

"Esse crime, na forma de sua descrição, é impossível de ser realizado, em virtude de sua impossibilidade jurídica, posto que é impossível qualquer contribuinte, seja pessoa física ou jurídica, 'suprimir' ou 'reduzir' tributo ou contribuição social. 'Suprimir tributo' é acontecimento do mundo do Direito que somente pode acontecer mediante norma legal, ou seja, norma jurídica extintiva ou modificativa de determinado tributo ou contribuição, aprovada pelo Legislativo e sancionada pelo chefe de Estado - art. 97, inciso I, do CTN -, a qual tem a natureza de lei complementar.

“‘Reduzir tributo' é, também, ato juridicamente impossível de ocorrer, mesmo por meio da atividade legislativa, pois o que pode ocorrer é a redução da alíquota ou da base de cálculo, por intermédio do Legislativo ou do Poder Executivo, naqueles casos em que a Constituição lhes dá essa competência - art. 150, § 6°, e art. 97, inciso II, do CTN."3

Há também quem afirme: "Suprimir tributo significa aqui deixar inteiramente de pagar o montante devido a tal título. Reduzir tributo quer dizer pagar importância menor do que a efetivamente devida."4

São manifestações apressadas de quem não meditou a respeito do nascimento do dever jurídico de pagar o tributo, pois é no contexto desse dever jurídico -vale dizer, da denominada obrigação tri-butária principal - que se coloca a questão do significado da expressão "suprimir ou reduzir tributo". "Suprimir o tributo", na verdade, é retirá-lo do mundo das realidades ordinariamente perceptíveis pelo Fisco; e "reduzir o tributo" é fazer com que ele se faça perceptível com expressão econômica menor que aquela que deve ter em face do fato efetivamente ocorrido e da lei que sobre o mesmo incidiu. Com a supressão deixa de aparecer inteiramente, enquanto com a redução deixa de aparecer parcialmente, no mundo das relações jurídicas ordinariamente perceptíveis, uma relação tributária que nascera da incidência da lei.

É certo que o "suprimir ou reduzir tributo" geralmente implica deixar de pagar ou pagar em valor menor o tributo, mas o "suprimir" não quer dizer não pagar, assim como o "reduzir" não quer dizer pagar menos. Quem simplesmente não paga não está suprimindo se o tributo continua existindo, embora não pago. E quem paga menos não está reduzindo se a diferença não-paga continua sendo devida, em condições de ser cobrada pelo credor. O "não pagar" pode ser mas nem sempre é uma conseqüência da supressão, como o "pagar menos" pode ser mas nem sempre é uma conseqüência da redução. O "suprimir" e o "reduzir" são condutas que se identificam independentemente do "pagar" ou do "pagar menos".

Para que possamos entender adequadamente o significado da expressão "suprimir ou reduzir tributo" no contexto do tipo penal de que se cuida - vale dizer, na definição albergada pelo art. 1° da Lei 8.137/1990 -, devemos investigar o sentido no qual ali está a palavra "tributo". Como assevera Paulo de Barros Carvalho, em pelo menos seis sentidos essa palavra tem sido empregada pela doutrina do direito tributário. Assim, "tributo" pode significar: (i) quantia em dinheiro; (ii) prestação correspondente ao dever jurídico do sujeito passivo; (iii) direito subjetivo de que é titular o sujeito ativo; (iv) relação jurídica

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tributária; (v) norma jurídica tributária; e, ainda, (vi) norma, fato e relação jurídica.5 Resta-nos, portanto, verificar em qual desses sentidos ela está empregada na definição do tipo penal em questão.

Quando se diz que somente a lei pode criar tributo, a palavra "tributo" está aí empregada com o significado de norma jurídica tributária. O tributo, nesse contexto, é apenas uma norma, é algo que ainda está apenas no plano normativo, ou plano da abstração jurídica. Se entendermos que a palavra "tributo" no art. 1o da Lei 8.137/1990 tem esse sentido, teremos de concordar com Juary Silva quando este afirma que "a supressão ou a redução de tributo compete ao Legislativo, não podendo efetuá-la o particular, por definição".6

Não nos parece...

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