Crianças e Adolescentes Indígenas no Brasil: Aplicabilidade do ECA?

AutorSandra Cordeiro Molina; Aline da Silva Freitas
Páginas128-137

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1. Introdução

Sou índia do povo Kaingang, me chamo Bruna Tainá Pó Tanh Paliano, tenho 16 anos de idade e, apesar de todos os problemas enfrentados em nossa comunidade e em minha vida, poderia ter feito exatamente a mesma escolha da maioria das meninas da minha idade. Mas eu tenho consciência de que tenho um sangue de um povo correndo em minhas veias. O meu presente também poderia ter sido diferente. Como? 1

Na formação da sociedade brasileira, os índios desempenharam papel fundamental, embora isso nem sempre seja abordado ou relembrado com o rigor devido. No dia a dia as pessoas deixam passar desapercebidas questões atinentes à influência indígena no perfil do brasileiro. Evidente que muitos dos costumes e hábitos linguísticos contemporâneos são frutos dessa formação, marcada, contudo, por violência e extermínio de muitos indígenas. De fato, uma simples construção histórica da linha do tempo evidencia isso.

Todavia, para muitos, infelizmente, pensar neste contingente de pessoas significa vestir-se de índio por motivos festivos ou ainda “comemorar” o Dia do Índio. O estudo das comunidades indígenas indica, por sua vez, exatamente o contrário: isso não é o suficiente!

Há de se registrar que as gerações indígenas de nosso país, sobreviventes aos desmandos da ocupação aqui verificada, encontram hoje outra realidade se comparada com a da época da colonização, e, com muita propriedade, como será verificado, muitos estudiosos defendem que os indígenas são

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sujeitos de direitos. Todavia, essa afirmação traz uma consequência lógica e surge a indagação: o que isso significa? Reconhecê-los sujeitos de direitos implica também transformá-los em sujeitos de obrigações?

Dito de outra forma: o indígena deve ser sujeito dos direitos e das responsabilidades das leis previstas pelo Estado brasileiro? Se afirmativa for a resposta, quais leis? De forma mais enfática: as crianças e os adolescentes indígenas estão protegidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)?

Este artigo pretende analisar, deste modo, o delicado assunto da possível aplicabilidade do Estatuto da Criança e do Adolescente às crianças e adolescentes indígenas. Para cumprir esse objetivo, primeiramente faz-se a análise da Criança e do Adolescente indígena como sujeitos de Direitos. Depois, serão apresentados alguns dados para verificar como os indígenas contemplam a aplicabilidade (ou não) do ECA. Outrossim, importa checar a compatibilização (ou não) do ECA com o Estatuto do Índio.

2. A criança e o adolescente indígena como sujeitos de direitos

... traçar a história desse processo de quinhentos anos de violência física e rechaço cultural seria o mesmo que recontar uma história de horror, cujo final já se sabe. Entretanto, não tenhamos dó de abrir a ferida, eis porque, quase no final desse percurso histórico, alguma coisa diferente aconteceu. 2

Mércio Pereira Gomes

Desde o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, não há dúvida do reconhecimento do status de humanidade a todas as pessoas. Por raciocínio lógico-dedutivo, a criança e o adolescente indígena, como pessoas, são sujeitos de direito, devendo encontrar a proteção de sua dignidade. Entretanto, a materialização desta ideia não se dá de forma linear e sem entraves; muitos problemas ainda acometem esses.

Darcy Ribeiro, em O Povo Brasileiro, observou que a chegada do povo europeu no Brasil modificou de forma drástica a situação do povo indígena:

Embora minúsculo, o grupelho recémchegado de além-mar era superagressivo e capaz de atuar destrutivamente de múltiplas formas. Principalmente como uma infecção mortal sobre a população preexistente, debilitando-a até a morte. Esse conflito se dá em todos os níveis, predominantemente no biótico, como uma guerra bacteriológica travada pelas pestes que o branco trazia no corpo e eram mortais para as populações indenes. No ecológico, pela disputa do território, de suas matas e riquezas para outros usos. No econômico e social, pela escravização do índio, pela mercantilização das relações de produção, que articulou os novos mundos ao velho mundo europeu como provedores de gênero exóticos, cativos e ouros. No plano étnico-cultural, essa transfiguração se dá pela gestação de uma etnia nova, que foi unificando, na língua e nos costumes, os índios desengajados de seu viver gentílico, os negros trazidos da África, e os europeus aqui querenciados. Era o brasileiro que surgia, construído com os tijolos dessas matrizes à medida que elas iam sendo desfeitas.3

Nota-se o impacto na vida dos índios, o qual se dá até hoje, inclusive sobre a visão que se tem acerca deles. Conforme Mércio Pereira Gomes, “É por demais reconhecido que, junto com o africano desenraizado e escravizado, agora pauperizado e oprimido, o índio autóctone ao território brasileiro foi quem mais sofreu as agruras do sistema colonialista português”4.

Ou, como bem observa Alceu Maynard Araújo: “infelizmente entre os brasileiros está arraigado

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o conceito de que o índio é um indolente. Não é verdade. Devemos lembrar que nosso ritmo de vida é que gera o preconceito. Vivemos em culturas diferentes”5.

É curioso registrar que no campo dos documentos legislativos a visão acerca do índio encontrou avanços. Outro seria o país acaso em 1500 tivéssemos estes [...] Consoante observado inicialmente, à luz da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o índio é pessoa humana e, portanto, com sua dignidade a ser preservada, afinal, seu artigo primeiro proclama: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”. Nas palavras do Professor Fábio Konder Comparato:

Inegavelmente, a Declaração Universal de 1948 representa a culminância de um processo ético que, iniciado com a Declaração de Independência dos Estados Unidos e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, levou ao reconhecimento da igualdade essencial de todo ser humano, em sua dignidade de pessoa, isto é, como fonte de todos os valores, independentemente das diferenças de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição [...] Esse reconhecimento universal da igualdade humana só foi possível quando, ao término da mais desumanizadora guerra de toda a História, percebeu-se que a ideia de superioridade de uma raça, de uma classe social, de uma cultura ou de uma religião, sobre todas as demais, põe em risco a própria sobrevivência da humanidade.6

Fato é que esse excerto contempla parte da afirmação histórica do direito humano à proteção de sua dignidade independente de qualquer requisito ou condição, o que se deu no contexto do pós-guerra. Porém, é possível reconhecer que a reflexão sobre as atrocidades das guerras também faz pensar acerca de outras violações históricas aos direitos humanos, como o que aconteceu com negros e índios em toda a América e também em solo brasileiro.

Apesar de seu conteúdo declaratório, o citado documento internacional contribuiu para o início de uma mudança de mentalidade em prol da cidadania indígena, mas que ainda não foi concluída; está distante de ser. Acerca dessa cidadania em franco processo de construção, o já citado autor Mércio Pereira Gomes inicia um necessário debate ao afirmar que:

Aqueles povos indígenas que haviam sobrevivido até a década de 1950, dos quais todo o mundo esperava o fim, pararam de decair em números e em consistência cultural, recuperaram sua demografia, consolidaram seus territórios e agora buscam afirmar-se com alguma espécie de autonomia perante a nação brasileira. Será isso cidadania para os índios? Talvez.7

Em outras palavras, colocados os limites reais à violação de direitos supramencionada, o Brasil ratificou a já mencionada Declaração Universal de Direitos Humanos, bem como diversos outros documentos internacionais que se sucederam, sendo indispensável mencionar os Pactos Internacionais de Direitos Humanos, de 1966, os quais conferem força vinculante aos seus importantes preceitos.

Outrossim, a Convenção n. 169 da OIT, também ratificada pelo Brasil, em seu art. 6º8, de-

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termina que os indígenas deverão ser consultados toda vez que medidas legislativas ou administrativas afetarem seus povos, isso porque suas especificidades e seus modos de vida devem ser conhecidos e considerados na tomada de decisão pelos poderes Executivo e Legislativo, no âmbito de suas competências definidas pela Constituição Brasileira.

E isso ocorre porque, para se tornar efetiva a cidadania dos povos indígenas, há de ser reconhecida a sua autonomia enquanto coletividade — uma coletividade diferenciada. Por isso, a participação indígena na construção de políticas públicas para efetivação da cidadania diferencia-se de outros grupos sociais.

Uma vez reconhecido que os indígenas são sujeitos de direitos, que conferem a eles o direito de participar na elaboração de políticas públicas, cumpre traçar um olhar mais específico sobre a criança e o adolescente indígena. Por isso, no próximo tópico, serão trazidos alguns dados e particularidades desses povos.

3. A criança e o adolescente indígena: alguns dados e particularidades

Fala-se em povos indígenas porque inúmeras são as etnias abrangidas por esse povo. Não se pretende com esse artigo esgotar esse tão complexo tema; o que se fará a partir de agora é trazer alguns termos importantes e seus significados para algumas etnias indígenas. Assim com...

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