A Criança e o Adolescente Pós-Consenso de Washington: o Ideal Jurídico Frente à Realidade Política

AutorLuiz Ismael Pereira; Patrícia Borba de Souza
Páginas43-54

Page 43

“A esperança de ser aliviado lhe dá ânimo para sofrer.”

Marcel Proust. Em busca do tempo perdido.

“A doutrina, justificando o sujeito de direito, defende o seu bife. Não importa que ele esteja putrefato: ela alimenta-se do seu cadáver. O que ela quer é legitimar um sujeito que seja simultaneamente livre de sua alma e do seu corpo, isto é, que possa vender o seu corpo conservando a sua alma. Compreendeu-se sem custo que é também dela que se trata.”

Bernard Edelman. O direito captado pela fotografia.

1. Introdução

Que o Consenso de Washington representa as determinações de política econômica neoliberais tomadas a partir da década de 1980 não se discute. Em regra, o que se esquece é que tais medidas redundam numa atuação do Estado para a garantia dos interesses do mercado pela adoção de políticas de regulação também dos interesses sociais e privados. Caso emblemático é o Documento n. 319 do Banco Mundial com diretrizes para o Poder Judiciário dos países da América Latina e do Caribe postas em prática a partir da década de 19901.

Page 44

Vale reposicionar o papel dos direitos humanos da criança e do adolescente a partir das mesmas diretrizes de política internacional tomadas a partir da década de 1980. Neste contexto que se colocam a Convenção dos Direitos da Criança, de 1989, bem como o Congresso de Viena, de 1993.

O objetivo geral do presente trabalho, nos campos jurídico, político e filosófico, é direcionar o conteúdo e os reflexos de tais das declarações de direitos diante das especificidades latino-americanas, bem como dos anseios da região. Busca também compreender como se dá a articulação dos objetivos de política econômica e política humanista no neoliberalismo. Para tanto, os objetivos específicos são os seguintes: compreender o papel dos direitos humanos na história recente da Amé-rica Latina; compreender o papel do Estado, bem como os meios de pagamento da dívida social para a proteção da criança e do adolescente; e, por fim, comparar o ideal jurídico — consequentemente um ideal moral — de criança e adolescente diante do lado profano encontrado na realidade social. Após isso, será possível compreender a hipótese de que a universalização normativa na proteção da criança e do adolescente tem seu caráter estrutural que não ultrapassa a diferença de classes: nela esbarra como forma de reprodução dos meios de produção. Para tanto, vale-se dos mecanismos econômicos e jurídico-políticos.

Há mais de um meio de leitura dos direitos da criança e do adolescente nesse cenário. Um deles é orientado pelo Positivismo Ético por meio da abertura hermenêutica que se dá, não coincidentemente, no período apontado. Mas pretendemos ir adiante. Louis Althusser questionou que não existe, como comumente se faz crer, uma constelação de ideologias: há apenas uma ideologia, uma única forma de ver o mundo que impede a compreensão das relações sociais de dominação como elas são. Essa ideologia é a capitalista.

Essa ideologia será, a um só tempo, econômica e política, a forma-valor somente se reproduzirá com a existência de uma forma política que a corresponda. Acontece que o capitalismo se vale de um forte instrumento para fundar as representações de que necessita, isto é, ao mesmo tempo econômica e política: utiliza-se de uma ideologia jurídica, a qual redundará numa prática, numa técnica jurídica. Ideologia é sempre uma prática dos ideais já estabelecidos pelo capitalismo, ideais esses que fazem parte de um único corpo, como Cérbero: não basta uma única cabeça para devorar2.

O que propomos é outro caminho, outro referencial. Trata-se de compreender o papel da proteção da criança e do adolescente por uma tradição teórica que desvela a realidade das relações de dominação e já se encontra consolidada. Essa tradição teórica só consegue formular suas abstrações a partir da leitura do mundo. A leitura da realidade material permite o estabelecimento de categorias bem delimitadas e que nos fornecem meios de estabelecer uma crítica não viciada pela ideologia jurídica. Essa tradição é o marxismo e, aqui em especial, a teoria marxista do direito.

2. O capital e os direitos humanos na América Latina

Direitos humanos e capital estão mais entrelaçados do que se possa imaginar em um primeiro plano. Se os direitos humanos se apresentam para a batalha, quem aguarda na porta dos fundos é o

Page 45

capital por suas formas mais acabadas de produção e circulação. Um alerta: os direitos humanos tiveram papel significativo na proteção da vida de milhares de pessoas no século XX. Tem sido, como de fato devem ser, encarados como estratégia, não como objetivo final, na luta contra as opressões que se materializam nas relações de trabalho ou na falta dessas, gênero, condição sexual, etnia, raça etc.

Os direitos humanos são históricos, pois têm uma data de nascimento que remonta às declarações burguesas de direitos civis. Se na Magna Carta, na Bill of Rights, no Statute of Westminster of Liberties of London e na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão os direitos humanos se consolidam como novo paradigma, isso só foi possível com a constituição de uma esfera jurídica, política e econômica que os fundamentassem e garantissem3.

As declarações e garantias de direitos são de matriz ocidental-europeia. Vale dizer, a universalização dos direitos humanos se dão a partir do ponto de vista eurocêntrico. Como já dito, “o Renascimento europeu, com toda significação revolucionária que trouxe para o conhecimento político e filosófico, encarregou-se de espalhar pelo mundo as ideias de um Estado centralizado e organizado segundo um contrato social, ideias essas desenvolvidas por Maquiavel, Jean Bodin, Hobbes, Althusius, Locke, dentre outros. A partir de então, ‘o Estado como forma de dominação’, com todo o ‘aparato de poder autônomo e centralizado, separado da ‘sociedade’ e da ‘economia’, passa a popular a produção intelectual”4.

O imaginário latino-americano sofreu grande impacto a partir das invasões europeias, em especial no que diz respeito ao pensamento político e jurídico. Aqui, adiantando a tese central deste artigo, pensar a América Latina por um nível de abstração adequado, o que ainda se caminha na Teoria do Estado Latino-Americano, significará compreender as condições em que sua integração com o mercado mundial a partir de tais invasões europeias permitiu o surgimento de categorias originais, as quais ainda se desenvolveriam em sua História. Cabe dizer, é necessário o reencontro da América Latina com esse passado.

Isso nem sempre foi unânime no pensamento político da chamada periferia do capitalismo5. Basta citar o Facundo, do argentino Sarmiento, para recordar como o padrão europeu simbolizado por Paris influenciara, por exemplo, o desenvolvimento e a autonomia da cidade de Buenos Aires, em oposição ao que o autor chamará de atraso do interior, representado por Córdoba: “A elegância nas maneiras, as comodidades do luxo, as vestes europeias, o fraque e a sobrecasaca, tem ali [i. e. na cidade] seu teatro e seu lugar conveniente”6.

Ocorre que esse não surge como o pensamento político decisivo na América Latina segundo as formas sociais pré-capitalistas. Outros como Gonzales Prada e Mariategui se concentram na luta contra o positivismo Comtiano. Isso redundará numa configuração do Estado e do capitalismo inovadora, que, por mais incômodo que pareça, deve conduzir a uma Teoria do Estado tão radical quanto as lutas e formas sociais que formam o povo latino-americano. No campo jurídico, e não de forma diferente, os direitos

Page 46

humanos tomaram um intenso debate de universalismo versus relativismo no final do século XX.

Na II Conferência Mundial Sobre Direitos Humanos, em Viena, no ano de 1993, consolidouse a oposição existente entre países do Centro e da Periferia Capitalistas, os primeiros “universalistas” e liderados pelos EUA; os demais sendo “relativistas” e liderados pela China, dentre outros países. São “universalistas” ou “relativistas” em relação a seu posicionamento sobre os direitos humanos, (i) sendo impostos a todos os países, independentemente de sua soberania nacional, ou (ii) submetidos às culturas locais, isso proveniente das próprias dificuldades econômicas que se sucederam à implementação das políticas econômicas neoliberais do Consenso de Washington, a partir da década de 1980.

Vale lembrar que o debate ocorrido na época trouxe ganhos e luzes sobre a forma de aplicação dos direitos humanos. José Augusto Lindgren Alves7, lembrando que a universalidade dos direitos humanos foi questionada desde a época da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, destaca que os bastidores da Convenção de Viena foram tensos, o que de certa forma poderia guiar todo o modo de aplicação também dos direitos da Convenção dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Dentro da polêmica universalismo versus relativismo, sobressaíram as seguintes posições:

(i) Da China, para quem não haveriam quaisquer direitos e liberdades individuais absolutos, exceto os prescritos pela lei e no âmbito de sua aplicação. Assim, a ninguém seria dado colocar seus próprios direitos e interesses acima do Estado e da sociedade;

(ii) De Cingapura, representando os tigres asiáticos, cujo posicionamento seria o de que os direitos seriam sempre produtos culturais, sendo que o próprio Ocidente contestaria os valores ditos “universais” da Declaração de 1948;

(iii) Do Irã e da Arábia Saudita, invocando os valores muçulmanos, o primeiro para argumentar que os direitos humanos advêm de um Criador, portanto não devem ser submetidos às vontades de Estados hegemônicos e históricos; já o segundo, lembrando a Carta do...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT