Sentença correspondente da 1ª Vara do Trabalho de Porto Alegre

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Processo: 01166-2005-001-04-00-0

Natureza: Ação Civil Pública

Origem: 1ª Vara do Trabalho de Porto Alegre

Autor: Ministério Público do Trabalho

Réu: S.A. (Viação Aérea Rio-Grandense) — em Recuperação Judicial

Vistos etc.

Ministério Público do Trabalho ajuíza ação civil pública contra VARIG S.A. — Viação Aérea Riograndense, em 27.10.2005, alegando que recebeu denúncia de que a ré realiza discriminação, fundada na orientação sexual de seus empregados, por ocasião da inscrição de dependentes. Refere que o próprio regulamento interno da empresa restringe o conceito de companheiro(a) à pessoa de sexo oposto ao do empregado(a). Informa que, em procedimento administrativo, a empresa ré sustentou a ausência de lei reguladora da convivência entre pessoas de mesmo sexo e que, ao estabelecer programa de vantagens e benefícios, a empresa exerce o seu poder de comando no estabelecimento das regras, pelo que se negou a firmar o ajustamento de conduta proposto. Invoca o princípio da igualdade e a vedação do tratamento discriminatório aos homossexuais. Postula a declaração do direito à inscrição no plano de benefícios do companheiro(a) do mesmo sexo do(a) trabalhador(a), inclusive em antecipação dos efeitos da tutela de mérito; a consideração de companheiro(a) do mesmo sexo do trabalhador(a) como companheiro(a) e/ou dependente para fins de inscrição, habilitação e/ou concessão de benefícios instituídos em regramento interno, sob pena de multa de R$ 100.000,00 por infração; não restrição à participação de companheiro(a) do mesmo sexo do trabalhador(a) em qualquer plano e/ou benefício previsto em regulamento interno, sob pena de multa de R$ 100.000,00 por infração; exclusão do sistema de registro de dependentes e do regulamento de

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concessão de benefícios, bem como de todo e qualquer regramento interno, de toda e qualquer menção e/ou restrição a “sexo oposto” e/ou “mesmo sexo”, sob pena de multa de R$ 10.000,00 por dia de atraso no cumprimento; a publicação, em jornal de grande circulação nacional, de nota contendo o inteiro teor das decisões proferidas em sede de antecipação dos efeitos da tutela de mérito, sentença e acórdão, no prazo de 72 horas úteis após cada decisão, sob pena de multa de R$ 10.000,00 por dia de atraso; e o pagamento de indenização pelos danos genéricos causados, no valor de R$
10.000.000,00 (dez milhões de reais), a serem revertidos ao Fundo de Defesa dos Interesses Difusos — FDD. Atribui à causa o valor de R$ 10.000,00.

Em decisão (fls. 187/188), é adiada a decisão quanto ao pedido de antecipação dos efeitos da tutela de mérito para momento posterior à apresentação de defesa pela ré.

Em audiência, é rejeitada a proposta de conciliação.

A ré apresenta contestação com documentos. Argúi, em preliminar, a impossibilidade de exame da matéria em ação civil pública. No mérito, impugna as postulações do autor, alegando que não há previsão legal de proteção às relações entre pessoas de mesmo sexo. Aduz que o regulamento interno constitui ato unilateral da empresa, pelo que detém liberdade na estipulação das regras e condições para os programas de benefícios. Sustenta que o companheiro(a) de mesmo sexo do empregado(a) pode participar nos programas de forma diferenciada. Sustenta que, se a empresa possui legitimidade para limitar o grau de parentesco a ser incluído nos programas, também está apta a definir quem pode ser incluído no rol de dependentes ou beneficiários.

Sem outras provas, é encerrada a instrução.

É retificada a autuação, passando a constar no pólo passivo a atual denominação da ré: S.A. (Viação Aérea Rio-Grandense) — em Recuperação Judicial.

É o relatório.

Isso posto:

Preliminarmente:

1. Do cabimento da ação civil pública

A ré sustenta que a matéria objeto da lide não se identifica com as hipóteses elencadas no art. 1º da Lei n. 7.347/85, a qual regula a ação civil pública.

Sem razão.

A presente demanda visa a proteção dos interesses de companheiros(as) de mesmo sexo dos empregados da ré quanto à discriminação por suas

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orientações sexuais, notadamente para a inscrição em programas de vantagens e benefícios. Tal está enquadrado no inc. IV do dispositivo legal mencionado.

Nesse sentido:

CONSTITUCIONAL. PREVIDENCIÁRIO. PROCESSO CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CABIMENTO. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE. ABRANGÊNCIA NACIONAL DA DECISÃO. HOMOSSEXUAIS. INSCRIÇÃO DE COMPANHEIROS COMO DEPENDENTES NO REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL. 1. Possui legitimidade ativa o Ministério Público Federal em se tratando de ação civil pública que objetiva a proteção de interesses difusos e a defesa de direitos individuais homogêneos. (...) (TRF4, AC 2000.71.00.009347-0, Sexta Turma, Relator João Batista Pinto Silveira, DJ 10.8.2005.)

Rejeito a prefacial.

2. Da falta de interesse processual

O inciso III do art. 295 do CPC prevê como causa de indeferimento da petição inicial a falta de interesse processual do autor. O interesse processual, como condição da ação, diz respeito à necessidade, utilidade a adequação do provimento jurisdicional pleiteado em face do alegado direito violado, não havendo relação alguma com a matéria ligada à prova.

Nesse aspecto, o autor é carecedor de ação, por falta de interesse processual, quanto ao pedido 1 da petição inicial e parte do pedido 4, quais sejam, declaração do direito à inscrição no plano de benefícios da ré do companheiro(a) do mesmo sexo do(a) trabalhador e exclusão do item do sistema de Registro de Dependentes e do regulamento de concessão de benefícios de toda e qualquer menção e/ou restrição a “sexo oposto” e/ou “mesmo sexo”, sob pena de multa. Ora, o regulamento ou plano de benefícios em questão, constante do Registro de Dependentes, que embasa a petição inicial e que foi juntado às fls. 29-30, não está mais em vigor na empresa, uma vez que se refere à concessão de passagens aéreas e, conforme demonstrado nos autos, a ré não está mais operando linhas aéreas e, portanto, impossibilitada materialmente de aplicar o regulamento — o que constitui, ainda, fato notório.

A postulação pleiteada nos itens mencionados não implica, assim, provimento jurisdicional útil, pelo que extingo o processo, sem resolução do mérito, com fulcro no art. 267, VI, do CPC, quanto aos pedidos referidos.

Prejudicada a antecipação dos efeitos da tutela de mérito quanto aos pedidos em questão.

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No mérito:

  1. Da discriminação pela orientação sexual

Postulando pedidos para regular situações futuras, a parte autora alega que a ré realiza discriminação, por ocasião da inscrição de dependentes nos planos de benefícios, fundada na orientação sexual de seus empregados. Refere que o regulamento interno da empresa restringe o conceito de companheiro(a) à pessoa de sexo oposto ao do empregado(a). Invoca o princípio da igualdade e a vedação do tratamento discriminatório aos homossexuais.

A ré informa que o programa de benefícios em debate é o plano de concessão de passagens a preço especial aos empregados, aposentados, dependentes, parentes e afins, não se incluindo os companheiros(as) de mesmo sexo. Sustenta que não há previsão legal de proteção às relações entre pessoas de mesmo sexo. Alega que o regulamento interno é expressão de seu poder de comando, podendo, assim, estipular as regras e condições para os programas de benefícios. Aduz que o plano de concessão de passagens não está fundado em disposição legal ou normativa. Sustenta que o companheiro(a) de mesmo sexo do empregado(a) pode participar nos programas de forma diferenciada (Travel Partner), estando sujeito, contudo, a tarifa diferente daquela cobrada aos companheiros de sexo oposto ou parentes próximos. Sustenta que, se a empresa possui legitimidade para limitar o grau de parentesco a ser incluído nos programas, também está apta a definir quem pode ser incluído no rol de dependentes ou beneficiários. Refere que, para a inscrição de companheiro(a) de sexo oposto ao do empregado(a), é exigido, além de outros requisitos, a comprovação de, no mínimo, seis meses de vida em comum.

Examino.

Incontroverso que a empresa ré fazia distinção, por ocasião da inscrição em seu plano de concessão de passagens, dos companheiros(as) de mesmo sexo daqueles de sexo oposto aos(à) seus(suas) empregados(as). Tal inclusive estava expressamente previsto no item 3.3 do “Regulamento de Concessão de Passagens a Funcionários, Aposentados, Dependentes, Parentes e Afins” (fl. 224), bem como no título e no item 1.1 do anexo IV do aludido regulamento (fl. 242).

A possibilidade de participação no aludido programa na condição de Travel Partner não afastava aquela distinção, porquanto as passagens não possuíam a mesma tarifa alcançada aos companheiros(as) de sexo oposto aos(às) empregados(as), como a própria ré admite.

Ainda que o regulamento não esteja mais em vigor, como visto, ele justifica a postulação de pedidos regulatórios de situações futuras.

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Nesse contexto, cinge-se a lide à análise da possibilidade de distinção com base na orientação sexual dos empregados(as), conforme os dois argumentos utilizados pela ré: a ausência de previsão legal protetiva das uniões homossexuais e a autonomia, advinda de seu poder de comando, para a estipulação das condições de participação no plano de concessão de passagens.

2.1. Da proteção legal às uniões homossexuais

A ausência de proteção legal às uniões homossexuais não pode ser entendida apenas no caráter formal de lei própria a tratar do tema. Com efeito, a ausência de regramento específico não significa ausência de direito, uma vez que o sistema jurídico prevê mecanismos para suprir as lacunas legais, com a aplicação da analogia, dos costumes e dos princípios gerais de direito...

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