Controle dos Atos Administrativos Discricionários Pelo Poder Judiciário: Análise do Mérito Administrativo de Acordo com os Princípios Constitucionais Atinentes

AutorMatheus Vianna de Carvalho
CargoProcurador da Fazenda Nacional
Páginas6-22

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1. Apresentação

O Brasil vive um momento em que as suas instituições políticas e o próprio Poder Público sofrem algum descrédito por parte da sociedade. Diariamente, são divulgadas, pelos meios de comunicação, notícias a respeito do desvio de poder no setor público.

Não apenas os grandes administradores cometem tais irregularida-des. Tem-se também notícia de servidor público, no exercício de funções públicas, utilizando o seu cargo para auferir vantagens. São frequentes as informações de recebimento de pro-pinas por servidores públicos para conceder privilégios em processos licitatórios, venda de sentenças, atos secretos e percepção de indenizações indevidas, dentre outros atos que representam manifesto uso indevido da função pública.

É triste reconhecer, entretanto, que aqueles apenas são os eventos conhecidos pela sociedade, isso porque casos de arbitrariedades dos agentes públicos acontecem, diariamente, sem divulgação.

O dinheiro público tem sido mal utilizado, e isto é fato. A lei determina que seja empregado no investimento em políticas sociais, em atividades de fomento, de acordo com o estipulado no orçamento anual. Todavia, o que se vê é a sua utilização de forma indevida; o desvio da finalidade à qual está atrelado.

Nesses termos, ganha relevo a necessidade de se repensar o controle jurisdicional dos atos administrativos. O presente trabalho tem por fito desvendar a respeito desse controle, demonstrando que, na prática, o mérito administrativo deve ser apreciado, mas de forma limitada, à luz dos princípios jurídicos.

Em face do princípio da separação dos poderes, entende-se que o Poder Judiciário apenas pode efetivar o controle da legalidade dos atos da administração pública, ou seja, somente sua adequação à lei. No que tange ao mérito administrativo, em que o administrador público atua com liberdade decisória, o magistrado não pode realizar o controle jurisdicional.

Com efeito, não se questiona a possibilidade desse poder apreciar os aspectos legais do ato, no entanto, cumpre observar a nova amplitude que esse exame tem recebido nos dias atuais.

Os atos administrativos discricionários devem ser apreciados pelo Judiciário, de forma densa, tendo em vista o crescente cometimento de atos arbitrários, como uma forma de res-

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guardar o interesse público. Advirta-se, no entanto, que esse controle deve obedecer aos parâmetros dispostos pelo direito.

2. Do princípio da separação de poderes e questões atinentes

A Constituição Federal situa-se no ápice do sistema normativo, dispondo sobre a organização e a estrutura jurídico-administrativa do Estado brasileiro. Todas as demais normas jurídicas nela buscam seu fundamento e validade.

O art. Io da Carta Constitucional de 1988 informa ser o Brasil um Estado Democrático de Direito e dispõe sobre seus fundamentos, ou seja, as bases sobre as quais deve o Estado desenvolver suas atividades. Segundo José Cretella Júnior (1997, p. 135),

"A frase 'Estado Democrático de Direito' é pleonástica, redundante, porque é da essência da democracia, onde impera soberano o princípio da legalidade, a inviolabilidade do direito, a vigência do denominado Estado de direito (...) que se contrapõe ao Estado de força, Estado policial ou ditatorial (...). O exercício da democracia é dominado pelo princípio da legalidade (...)."

Na época em que vigia o liberalismo, surgiu a concepção de Estado de Direito, entretanto era uma versão divergente da atual, já que predominavam anseios individualistas e imperava a lei apenas em sentido formal. O conceito dessa expressão, no decorrer do tempo, sofreu modificações, até se chegar à compreensão atual, que tem por alicerce a garantia do bem comum, privilegiando o coletivo em detrimento do individual.

Também merece destaque a ado-ção, pelo Brasil, do princípio da separação de poderes em sua Carta Magna, artigo 2o, como um princípio fundamental, elevado à categoria de clausula petrea pelo art. 60, § 4o, III, da CF/88, senão vejamos: "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário."

Calham à fiveleta os ensinamentos de José Cretella Júnior (1997, p. 149) acerca da matéria.

"A pessoa jurídica pública política é o 'centro de irradiação' dos três poderes, independentes, porque um não interfere no outro, no desempenho de suas funções específicas, embora possa controlar as funções anômalas do outro, desde que a Constituição assim o permita; harmônicos, porque cada um deles é, na realidade, a União, que se desnaturaria, quebrando-se, fracionando-se, se os poderes se de-sarmonizassem."

Modernamente, entende-se que o poder político do Estado é uno, não comportando divisões. Dividem-se, sim, funções para o exercício deste poder. São pertinentes, para tanto, as considerações de José Afonso da Silva (2003, p.108), para quem "o poder político, uno, indivisível e inde-legável, se desdobra e se compõe de várias funções, fato que permite falar em distinção das funções, que fundamentalmente são três: a legislativa, a executiva e a jurisdicional".

Alexandre de Moraes (2000, p. 360) trata do assunto, apresentando uma concepção moderna.

(...) dentro de uma visão mais contemporânea das funções estatais, que reconhece que o Estado constitucional de direito assenta-se na ideia de unidade, pois o poder soberano é uno, indivisível, existindo órgãos estatais, cujos agentes públicos têm a missão precípua de exercerem atos de soberania. Aliás, bem disse Rousse-au, o poder soberano é uno. Não pode sofrer divisão. Assim, o que a doutrina liberal clássica pretende chamar de separação de poderes, o constitucionalismo moderno determina divisão de tarefas estatais, de atividades entre distintos órgãos autônomos.

Depreende-se, por conseguinte, que, embora o poder político do Estado seja entendido como indivisível, indelegável, único, o princípio da separação de poderes foi adotado pelo Brasil, em virtude de ser entendido como uma verdadeira distribuição de funções específicas e primordiais entre os órgãos estatais supremos, para o funcionamento e desempenho concreto das atribuições do Estado.

O termo 'poderes' designado pela Constituição Federal, assume o sentido de estruturas internas do Estado (órgãos), com funções específicas, criadas para viabilizar o fim precípuo de execução de certas funções estatais primordiais (administrativa, legislativa e jurisdicional), como uma forma de conter a concentração de poder nas mãos de apenas uma pessoa.

"Compõe-se o Estado de Poderes, seguimentos estruturais em que se divide o poder geral e abstrato decorrente de sua soberania. Os Poderes de Estado, como estruturas internas destinadas à execução de certas funções, foram concebidos por Montesquieu em sua clássica obra, pregando o grande filósofo, com notável sensibilidade política para a época (século XVIII), que entre eles deveria haver necessário equilíbrio, de forma a ser evitada a supremacia de qualquer deles sobre outro (Carvalho Filho, 2005, p. 2)."

Aristóteles e Montesquieu, em épocas distintas, traçaram as bases desse princípio da separação de poderes, respectivamente, através das obras Política e O espírito das leis, sustentando esta última a inexistência de supremacia de um poder sobre outro, enunciando o equilíbrio entre eles.

Aristóteles, em sua obra Política, já enunciava a existência de três funções estatais distintas, mas devido ao contexto histórico em que estava inserido, tais funções restavam concentradas sob o comando de uma única pessoa, o soberano, que representava o Estado. Posteriormente, Montesquieu desenvolveu os ensinamentos daquele pensador, enquadrando-os ao seu momento histórico.

Modernamente, diante da forma que se encontra normatizada a Constituição Federal, tem-se a possibilidade de uma verdadeira interpenetração entre os poderes. Cada um deles é concebido a partir de funções próprias, típicas, sendo que há a possibilidade de se praticarem funções atípicas, desde que expressamente autorizadas pelo ordenamento jurídico pátrio.

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Na verdade, o que existe é uma preponderância de função, ou seja, o órgão estatal possui função típica, com a possibilidade de exercer funções atípicas. Nesse sentir, ressalta José dos Santos Carvalho Filho (2005, p. 2) que "os Poderes estatais, embora tenham suas funções normais (funções típicas), desempenham também funções que materialmente deveriam pertencer a poder diverso (funções atípicas), sempre, é óbvio, que a Constituição o autorize". Isso quer dizer que, no Poder Legislativo, predomina a função legislativa, já, no Executivo, a função administrativa de executar os comandos legais, ao passo que, no Poder Judiciário, vigora a função jurisdicional.

A Constituição Federal brasileira caracteriza o sistema de separação de poderes ou, melhor dizendo, de funções, como "independentes e harmônicos entre si". A distribuição de funções do poder político é feita entre três órgãos independentes do Estado, sendo que cada um deles passa a possuir atribuições específicas, mas não exclusivas, com...

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