Uma genealogia do liberalismo contemporâneo: a crítica foucaultiana do ordoliberalismo alemão

AutorNei Antonio Nunes
CargoDoutor em sociologia política pela Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis - Brasil
Páginas322-343
http://dx.doi.org/10.5007/1807-1384.2013v10n1p322
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Adaptada.
UMA GENEALOGIA DO LIBERALISMO CONTEMPORÂNEO: A CRÍTICA
FOUCAULTIANA DO ORDOLIBERALISMO ALEMÃO
Nei Antonio Nunes1
Resumo:
Tendo por base as investigações de Michel Foucault sobre a tradição liberal,
desenvolvidas sobretudo no curso ministrado no Collège de France, intitulado
“Nascimento da biopolítica”, procuramos explicitar a crítica empreendida a uma das
matrizes do liberalismo contemporâneo, a saber, o ordoliberalismo alemão. Com
este objetivo buscamos pôr em relevo, primeiramente, a estratégia argumentativa da
Escola de Friburgo que culmina no que o teórico francês denomina como “fobia do
Estado”. Discutimos também a junção promovida pelo modelo neoliberal entre
economia de mercado, prática concorrencial e “política social”. Em seguida,
mostramos que, vinculado a essa lógica, o ordoliberalismo procurou erigir uma
Vitalpolitik articulada a uma nova concepção de homo oeconomicus: o “homem-
empresa”. Na consecução desse intento, o ordenamento jurídico aparece como
suporte no jogo proposto pela economia concorrencial de mercado. Por fim,
enfatizamos a existência de elementos biopolíticos no modelo neoliberal da Escola
de Friburgo.
Palavras-chave: Crítica genealógica. Governamentalidade. Neoliberalismo.
Ordoliberalismo. Biopolítica.
1 INTRODUÇÃO
O interesse de Michel Foucault pelo liberalismo fica evidenciado em seu
estudo do processo de governamentalização do Estado, desenvolvido nos dois
últimos cursos ministrados no Collège de France, na década de 1970, intitulados
“Segurança, território, população” (1978) e “Nascimento da biopolítica” (1979). Bem
sabemos que não se trata, nessas investigações, de empreender uma teoria do
Estado ou mesmo uma tipologia das formas de governo que, em consonância com o
ideário liberal, identifique, justifique e/ou proponha a sua forma ideal ou mais
adequada às nossas sociedades atuais. Para o autor francês, o liberalismo, quer se
trate da sua forma moderna, quer contemporânea, corresponde a um princípio e
1 Doutor em sociologia política pela Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, Florianópolis,
SC, Brasil. Professor da Universidade do Sul de Santa Catarina, UNISUL, Palhoça, SC, Brasil.
Pesquisador do Núcleo de estudos do pensamento político, NEPP-UFSC. E-mail:
neinunes@bol.com.br.
R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.10, n.1, p. 322-343, Jan./Jul. 2013
323
método de racionalização do “exercício de governo” que, por sua vez, não deriva da
teoria econômica ou jurídica, mas do mercado lugar de veridicção e espaço
privilegiado da racionalidade liberal. Em face disso, cabe perguntar pelos preceitos
metodológicos a que responde esta pesquisa genealógica, bem como sobre os
traços característicos das governamentalidades liberais.
De modo geral, o plano de pesquisa de Foucault pode ser lido como uma
genealogia da verdade. Isso revela, de início, sua clara intenção (como pesquisador
e intelectual) de afastar-se da condição dearauto” da verdade científica ou
filosófica. Diverso de tal perspectiva, procura problematizá-la trazendo à tona a
forma como essa se constitui nas práticas de poder e saber. Prova disso, a
problematização genealógica da trama (do jogo) que atravessa as esferas da
ciência, política e ética, não visa, a pretexto de um exame metódico que rejeitaria
outras respostas possíveis, erigir uma “solução” que supostamente seria a verdade.
A propósito dos traçados da investigação genealógica, dirá Foucault:
“Problematização não quer dizer representação de um objeto preexistente, nem
tampouco a criação pelo discurso de um objeto que não existe”. Em resumo, a
genealogia propõe a crítica problematizando o conjunto das práticas discursivas e
não discursivas que moldam o verdadeiro, ou seja, que fazem com que diferentes
práticas entrem no jogo do verdadeiro e do falso, assumindo a condição de objeto
para o pensamento, quer seja sob a forma, por exemplo, de reflexão moral, de
conhecimento científico, de teoria social ou de análise política (FOUCAULT, 2004, p.
242).
Problematizar a verdade significa trazer à tona a “economia política” pela qual
é produzida. Partindo do pressuposto de que não existem verdades intemporais,
trata-se de fazer o diagnóstico do seu processo de formação reconstituindo os
diferentes pontos de ligação e dispersão que caracterizam os seus jogos detectar
as regras que os constituem impõe, assim, o exame dos regimes de verdade. Dito
de outro modo, a genealogia da verdade procura localizar e analisar espaços de
elaboração, abordagem e circulação das verdades; bem como os objetivos, as
estratégias e as positividades institucionais a que estão articulados. (FOUCAULT,
2000, p. 305) Em razão disso, o diagnóstico dos regimes de verdade, conforme
propõe a crítica genealógica, indica que:
A 'verdade' é centrada na forma do discurso científico e nas instituições que

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