Constituição supranacional: Uma internacionalização do direito constitucional?

AutorAlexandre Coutinho Pagliarini
CargoPós-Doutor pela Universidade de Lisboa. Doutor e Mestre pela PUC/SP. Professor da Facinter, da OPET, da Dom Bosco e da UniBrasil.
Páginas2-18

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1 Poder constituinte no estado: significação tradicional e casos de ocorrência

Passaremos a tecer, doravante, algumas considerações sobre o exercício do poder constituinte originário.

Para os positivistas, o poder constituinte é pré-jurídico, quer dizer, é uma manifestação de força ou uma energia social não encontrada no mundo das normas positivadas.

Diferentemente, os adeptos da doutrina jusnaturalista – inaugurada constitucionalmente, quanto ao poder constituinte, pelo abade Sieyès – ensinam que há um direito superior decorrente da própria natureza humana, além do Direito positivo, que precede o próprio Estado, sendo assim o poder constituinte um poder eminentemente jurídico.

O entendimento positivista encontra melhor acolhida na doutrina. Isto porque a norma hipotética fundamental, apesar de propiciar fechamento ao sistema jurídico, ela mesma não é posta, é pressuposta, ou, como Kelsen desejou em sua derradeira obra – Teoria Geral das Normas –, uma norma fictícia2.

O tema poder constituinte foge do alcance da Ciência do Direito porque não podem os cientistas do Direito descrever uma latência social e política (o poder constituinte) com as fórmulas axiológicas usadas na interpretação das normas jurídicas. O que se faz ao estudar ou a descrever o tema é mais ligado às práticas da Filosofia, da Política ou da Sociologia, mas não da Ciência do Direito, já que esta tem por padrão referencial o Direito positivo que, por sua vez, surge com a instituição da Constituição.

Classificamos o poder constituinte como uma latência social e política que se encontra em “stand by” (em espera) para, quando acionada, inserir no ordenamento, pelo lado de fora deste, elementos constitucionais-estruturantes de uma ordem política qualquer.

Celso Ribeiro Bastos3 doutrina que “(...) descabe qualquer indagação a respeito de um poder constituinte, nos lindes da Ciência Positiva do Direito, pois se trata, como vimos, de um conceito metajurídico”. E conclui Bastos: “(...) em vista do que ficouPage 3acima exposto, parece certo concluir que o poder constituinte não é um poder jurídico (...)”.

Raul Machado Horta faz interessante análise, colocando face a face os dois tipos de poder constituinte, o originário e o derivado4. Parte Machado Horta do princípio de que o poder constituinte originário não tem que seguir nenhuma regra de Direito que seja anterior à sua manifestação, neste prisma devendo ser considerado como uma questão de fato, e não de Direito. Por outro lado, o poder constituinte derivado5, criado e delimitado pelo próprio poder constituinte originário, deve seguir as regras positivas de Direito inseridas no documento normativo superior, que é a Constituição. Com base nessas premissas, Machado Horta extrai duas conclusões essenciais do pensamento de Carré de Malberg6.

O poder constituinte se manifesta de várias formas, mas tem sido sempre inserido numa das duas categorias classicamente aceitas pela doutrina: na categoria do poder constituinte originário ou na do poder constituinte derivado7. Contudo, apesar de a doutrina ser rica na descrição das várias formas de manifestação constituinte, entendemo-la, data venia, acanhada na denominação dos poderes constituintes caso a caso. Por isso, passamos a classificar as manifestações constituintes com os nossos próprios8 neologismos, que se seguem:

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1 - poder constituinte originário de ruptura internacional: é aquele que se dá na oportunidade da independência de uma nação anteriormente vinculada a um Estado que a englobava em termos de soberania. Como exemplo de tal espécie, podemos citar o primeiro constituinte histórico brasileiro, após a Independência;

2 - poder constituinte originário de gênese: é aquele que cria um Estado do nada. Acontecerá, na vida política contemporânea, quando, por exemplo, a nação palestina constituir-se no Estado da Palestina;

3 - poder constituinte originário de ruptura interna: ocorre nas ocasiões de tomada revolucionária do poder, com desprezo ao ordenamento jurídico-constitucional posto, impondo-se outro que não se limite pelos ditames daquele que está sendo superado. Exemplo dessa manifestação constituinte foi a Constituição de 1891;

4 - poder constituinte originário de nova ordem – previsto pela velha ordem: é aquele que ocorre pacificamente quando uma Assembleia Nacional Constituinte é prevista por um ordenamento jurídico, que se vai fazer ultrapassar pela manifestação constituinte dessa Assembleia Constituinte instituída pela própria velha ordem. Neste caso, a Assembleia criada – dentro do ordenamento jurídico da própria velha ordem – terá amplos poderes para se manifestar de maneira soberana e criar originariamente o novo Estado ou a nova ordem que melhor lhe convier, respeitadas as delimitações procedimentais impostas pela emenda constitucional da velha ordem que a propiciou. Prova da existência histórica desse tipo de manifestação constituinte é a Carta de 1988, cujo poder constituinte foi convocado e regulado pela Emenda Constitucional nº 26, de 17 de novembro de 1985;

5 - poder constituinte derivado com data marcada: é o quinquenal, previsto na vigente Constituição portuguesa. Foi o previsto no art. 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT – da Constituição de 1988. Como visto, é sempre limitado, implícita e explicitamente, pelas disposições postas pelo poder constituinte originário na Carta Magna. Equivale a um poder reformador (ou força reformadora);

6 - poder constituinte derivado sem data marcada: é a manifestação constituinte instituída, derivada, que tem como exemplo máximo o art. 60 da Carta brasileira em vigor, que trata das emendas constitucionais que venham tramitar perante o Congresso Nacional. Equivale a um poder reformador (ou força reformadora).

Com a classificação supra, encerramos a exposição concentrada acerca da natureza do poder constituinte. Passamos a dissertar sobre os modos pelos quais os países, internamente falando, vêm exercendo os seus poderes constituintes.

A ideia inicial de poder constituinte é revolucionária, traz consigo a expectativa de uma ruptura. Efetivamente, rompe-se com a ordem anterior e insere-se uma outra.

No final do parágrafo passado, falamos no rompimento de uma ordem e na inserção de outra. A ordem rompida não é necessariamente uma ordem constitucional formalizada. Foi isto o que ocorreu na França de 1789. A monarquia não era detentora de uma Carta Política solenemente aprovada e que regia o seu governo e servia como fundamento de validade das demais normas infraconstitucionais. Não havia, na época, Constituição formal. Esta é produto do constitucionalismo moderno que passou aPage 5positivar Cartas formalizadas, solenemente, a partir das Constituições dos Estados Unidos da América e da França. De qualquer modo, a primeira Constituição formal francesa, elaborada pelo poder constituinte revolucionário, desestabilizou o antigo regime. Com isso, queremos dizer que esta Constituição francesa promoveu uma superação de sistema: quebrou a ordem absoluta monarquista que a antecedeu.

Poder constituinte, portanto, significa sempre o exercício de uma latência sociopolítica que culminará na quebra da ordem político-jurídica que a nova ou primeira Magna Carta formalizará. Neste sentido, a primeira Constituição histórica francesa, a despeito de não ter revogado nenhuma Carta Política formal antecedente, induziu ao sepultamento do governo dos reis absolutos.

Há poder constituinte em exercício, contudo, fora do contexto revolucionário, continuando tal poder, mesmo assim, com a marca “constituinte”. Isto se dá quando, num Estado já dotado de Constituição e em que não se verifica rebelião ou revolução contra as instituições postas, passa a se manifestar o poder constituinte pela convocação popular instigada, por exemplo, pelas autoridades previstas no sistema para cumprir tal desiderato (por exemplo, no caso de uma emenda constitucional apresentada pelo presidente da República e aprovada e promulgada pelo Congresso Nacional). Foi exatamente isso o que ocorreu no caso do poder constituinte da Carta de 1988, quando o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional n° 26, tendo esta convocado o eleitorado brasileiro para, nas eleições vincendas para a nova composição do Parlamento bicameral, eleger os novos constituintes, tendo os senadores e deputados eleitos acumulado a função constituinte9.

Não há poder constituinte, propriamente dito, naquilo que a doutrina costuma chamar de poder constituinte derivado. Neste, não há a marca inicial indispensável para que o exercício do poder possa ser considerado como primário e livre. Na realidade, o poder constituinte derivado não pode fazer, do zero, uma Constituição. Trata-se ele, pois, não de poder constituinte, mas de poder constituído, respeitante dos limites postos pelo poder constituinte – propriamente dito, o originário – na Carta. Logo, melhor seria denominar o poder constituinte derivado de poder reformador¸ simplesmente. Reformador, e só, porque não pode instituir uma nova ordem estatal estruturante de um novo cosmos a partir de uma nova Carta Política; reformador, e só, porque se encontra enquadrado num espectro de limitações criadas e instituídas por aquele que, verdadeiramente na Carta, fixou os espaços em que o poder reformador poderia atuar; reformador, mas às vezes nem isso, porque, dependendo da rigidez escolhida pelo poder constituinte originário na Carta Magna, o “poder constituinte derivado” (poder reformador) nem pode atuar10.

De qualquer modo, se considerarmos poder constituinte como a “força capaz de inserir no ordenamento norma constitucional”, então poderemos aceitar o poder Page 6reformador como poder...

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