A constitucionalização dos direitos sociais

AutorMaria do Perpétuo Socorro Wanderley de Castro
Ocupação do AutorProfessora
Páginas41-51

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2.1. A constitucionalização dos direitos sociais

Esclarece-se, de início, que as referências históricas sobre a constitucionalização dos direitos sociais são restritas e que se adotam as observações feitas por Miranda quanto aos direitos fundamentais, na comparação e distinção entre os direitos de liberdade e os direitos sociais. Esse autor faz referência aos direitos, liberdades e garantias, de âmbito civil, como direitos de libertação do poder e direitos à proteção do poder, e aos direitos sociais como direitos de libertação da necessidade e direitos de promoção, em que se entrecruzam e completam a liber-dade e a libertação, na unidade do sistema jurídico e na harmonização dos direitos da mesma pessoa e de todas as pessoas.1Os direitos fundamentais se apresentam, no cenário jurídico, envoltos no surgimento do moderno Estado constitucional, ainda que haja referência à sua ante-rioridade a partir de uma pré-história que recua até o século XVI,2 à qual se se-

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guiu o período de elaboração da doutrina jusnaturalista e a afirmação dos direitos naturais do homem, chegando, posteriormente, à fase de sua constitucionalização a partir da Declaração de Direitos da Virgínia, de 1776.

Surgindo como limites ao poder do Estado absoluto, os direitos fundamentais apresentam uma continuidade e ampliação mediante o desenvolvimento de técnicas de seu reconhecimento na esfera do direito positivo e a afirmação das ideias de liberdade e dignidade humana e de sua abrangência a todas as pessoas. Nesse passo, a Magna Carta Inglesa, em 1245, em que pese ser referida como o ponto inicial para a formação dos direitos fundamentais clássicos, ressente-se de um conteúdo estamental, com sua limitação a um grupo, os bispos e barões ingleses, em consonância com a visão restrita de titulares de direitos, porém, típica da época. Ingo Sarlet3 assinala que as declarações de direito inglesas, do Século XVII, representaram uma evolução das liberdades e privilégios medievais e corporativos, seja pelo conteúdo das liberdades, seja pela extensão da titularidade, mas constituíam apenas limitação do poder monárquico, porque, não sendo vinculadas ao Parlamento, faltava-lhes supremacia e estabilidade.

Durante a Idade Média, afirmou-se o pensamento da igualdade dos homens e o valor fundamental da dignidade humana, seguindo uma concepção cristã e religiosa, a qual, com seu desenvolvimento, passou a assumir um caráter laico, por meio do qual se afirmou sua validade universal.

No século XVII, as obras de hobbes e Locke cultivaram a defesa dos direitos naturais, seguindo uma concepção contratualista que vinculava os homens ao Estado, por meio da razão e da vontade.

Com o Estado Liberal de Direito, no qual se enunciou o entendimento de que o Estado é um ente político e jurídico e seus poderes devem ser definidos, limitados e controlados por meio de mecanismos constitucionais, a adoção do Constitucionalismo liberal impôs-se juntamente com a enunciação dos direitos fundamentais.

A Declaração de Direitos do Povo da Virgínia, em 1776, e a Declaração dos Direitos do homem e do Cidadão, em 1789, inauguraram a fase dos direitos fundamentais constitucionais, seja pela afirmação de que os direitos do homem são as bases do Estado, seja com a proclamação de que uma sociedade em que esses direitos não são garantidos não tem Constituição.

A afirmação de direitos fundamentais é indissociável do Estado Liberal, fundado na postura individualista abstrata e no primado da liberdade, segurança e proprie-dade. Por efeito de reivindicações, notadamente de movimentos de trabalhadores, foram acrescentados, ao rol, os direitos econômicos, sociais e culturais,4 momento

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que iria caracterizar o Estado Social. Os direitos fundamentais, no Estado social de Direito, além de se afirmarem pela universalidade, superando seu anterior cunho classista, apresentaram tendências comuns aos diversos ordenamentos jurídicos, as quais consistiram principalmente em: diversificação do conteúdo dos direitos, consideração do homem situado e decorrente relevância dos grupos e das pessoas cole-tivas, produção de efeitos sobre terceiros e ideia de aplicabilidade direta.5Esses direitos, que surgiram como direitos do homem e de todos os homens, tiveram seu foco sobre o homem burguês, a partir da contraposição do trabalhador, como homem concreto, e tiveram a ampliação progressiva de seus enunciados para compreender as situações sociais e econômicas. Não se tratou de apenas um acréscimo de direitos, ou acumulação de gerações, ou dimensões, mas de um novo conteúdo filosófico para esses direitos que passaram da visão proprietária e individualista para a visão pessoal e socialista. Sem perda ou redução dos valores anteriores e dos direitos que eles tinham cunhado, os valores sociais introduziram a reflexão e o entendimento sobre a pessoa do trabalhador e sua realidade, com a exigência de reconhecimento e atribuição de novos direitos.

Os direitos fundamentais prosseguiram uma história que é a história da pessoa humana, com sua grandeza e sua miséria, suas alegrias e seus sofrimentos, desde si até os outros, e com os outros e o infinito do cosmos, que abre a esfera dos direitos de convivência e de fraternidade.

Constitui o marco inicial da constitucionalização dos direitos dos trabalhadores a Constituição do México em 1917, em seu artigo 123. Por meio dele, a Comissão de Constituição visou à proteção de toda atividade laboral e constituiu um novo Direito do Trabalho de profundo caráter protecionista e reivindicatório, o que, nas palavras de Trueba Urbina, resultou na proclamação, pela primeira vez, no mundo de direitos sociais e princípios de justiça social, como um autêntico direito do trabalho.6 Essa norma constitucional previu a elaboração de leis, segundo as bases ali enunciadas, que contemplavam a duração da jornada, o descanso semanal, o salário mínimo, a igualdade salarial, a proteção ao salário, a proteção à maternidade, a higiene e segurança do trabalho, a responsabilidade dos empregadores por acidentes do trabalho e doenças profissionais, o direito de associação e de greve7 reunindo direito do trabalho e da seguridade social.

Seus enunciados repercutiram no Tratado de Versalhes, de 1919, após a Primeira Guerra Mundial, tecendo, ao lado do discurso liberal da cidadania, o discurso social, com a atribuição ao Estado do papel de agente dos processos trans-

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formadores direcionando sua atuação para a realização dos direitos à prestação social.8 Assim, caminhou-se no sentido da internacionalização de normas de direito do trabalho.

A repercussão dos direitos sociais se ampliou com a preeminência dos direitos humanos ocorrida após a Segunda Guerra Mundial. A Declaração Universal dos Direitos humanos, de 1948, incluiu, ao lado dos direitos civis e políticos, os direitos sociais, econômicos e culturais, como a concepção atual dos direitos humanos,9 que são uma categoria complexa, notadamente com o surgimento de novas necessidades que são satisfeitas por mecanismos exteriores à pessoa humana. O Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos humanos aponta a aspiração da pessoa comum por viver a salvo da necessidade, como uma das suas premissas, o que tem o significado da proteção social, que se realiza mediante normas protetivas do trabalho e normas de segurança social, resguardando a pessoa da privação material.

Seguiu-se à Declaração, a adoção dos Pactos Internacionais dos Direitos Civis e Políticos e dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, com o que se fixou a natureza obrigatória de suas normas. No âmbito da Organização dos Estados Americanos, por meio do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos humanos, o chamado Pacto de San Salvador, de 1988, foram enunciadas, entre outras, disposições sobre o direito ao trabalho, e condições justas, equitativas e satisfatórias, e direitos sindicais (arts. 6º a 16).

Desde 1919, a Organização Internacional do Trabalho, que surgira no Tratado de Versalhes com nova feição, apontava a necessidade de formulação dos direitos sociais e, para tanto, desenvolveu uma atuação normativa, por meio de convenções10 e recomendações, as quais iriam delinear os direitos sociais, no âmbito dos Estados-membros da instituição, ou inspirar as normas integrantes do direito nacional.

Essas...

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