A evolução dos Direitos no Constitucionalismo Brasileiro (Parte I)

AutorPaulo Vargas Groff
CargoDoutor em Direito pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne), Mestre em Ciência Política pela Université de Paris III (Sorbonne Nouvelle), Bacharel em Direito pela UNISINOS; Professor da Graduação, da Especialização e do Mestrado em Direito da URI (Campus de Santo Ângelo-RS); Pesquisador e Advogado.
Páginas139 - 159

Page 139

Introdução

O Brasil já teve oito Constituições ao longo da sua história como país independente. Essas Constituições sempre trouxeram um espaço para os Direitos Fundamentais. Este espaço foi sendo ampliando a cada nova Constituição, num caminhar crescente, de ampliação e introdução de novos direitos fundamentais, acompanhando as mudanças que foram ocorrendo no cenário mundial. Deste modo, essas Constituições também foram recepcionando as diversas gerações de direitos, na época em que esses direitos apareceram nas primeiras Constituições dos países democráticos. No entanto, os avanços formais dos Direitos nas Constituições muitas vezes não se efetivaram, ficando muito aquém das previsões constitucionais.

A evolução dos direitos fundamentais nas Constituições brasileiras é objeto do nosso estudo, e para isto trataremos separadamente das diversasPage 140Constituições brasileiras, analisando os diferentes aspectos que tem relação com os direitos fundamentais, em cada período político-constitucional em que as Constituições encontravam-se em vigor. Neste momento serão tratadas as Constituição de 1824, 1891, 1934 e 1937. As Constituições de 1946, 1967, 1969 e 1988 serão tratadas num próximo trabalho.

1. Os Direitos na Monarquia

A Constituição de 1824 foi influenciada pelas idéias liberais e pelo constitucionalismo em voga na Europa. Todavia, a preocupação maior das elites brasileiras era a construção de um Estado-nação, o que relegava para um segundo plano a implantação de uma democracia liberal. O regime monárquico mesclava a adoção de uma lógica e de uma prática liberal e autoritária. A Monarquia era vista como a única maneira de manter a unidade nacional1. Neste contexto, havia grandes dificuldades para o avanço dos direitos fundamentais.

1. 1 A Constituição de 1824 e a monarquia centralizadora

A Constituição foi outorgada por D. Pedro I, em 1824. Ela foi elaborada por um Conselho de Estado, que ocupou o lugar deixado pela Assembléia Constituinte, que foi inicialmente convocada, mas posteriormente dissolvida em função de divergências com o Imperador. O projeto de Constituição foi ainda submetido à aprovação das Câmaras Municipais, o que não lhe retirou a ilegitimidade.

A Constituição realizou uma divisão administrativa do território brasileiro, dividido-o em províncias, que substituíram as capitanias (art. 2°), mantendo a forma unitária de Estado, com a centralização do poder político. Já a forma de governo adotada foi a monarquia hereditária, constitucional e representativa (art. 3 °).

A Constituição de 1824 sofreu a influência do pensamento político da época, precisamente da teoria de Benjamin Constant, no que se refere a criação do poder neutro ou moderador. Desta maneira, havia quatro Poderes (art. 10): Moderador, Legislativo, Executivo e Judiciário.

O Poder Moderador, afirmava a Constituição, era a chave de toda a organização política. Este Poder era exercido pelo Imperador, e se destinava a velar pela independência, equilíbrio e harmonia dos outros Poderes (art. 98). A pessoaPage 141do Imperador era inviolável e sagrada, não estando sujeito a responsabilidade alguma (art. 99). Naturalmente, tal instituição desfigurava a idéia de equilíbrio e controle recíproco entre os poderes.

O Poder Executivo era exercido por um ministério, de livre nomeação e demissão pelo Imperador, que era também o chefe do Poder Executivo (art. 102). Assim como o Imperador não tinha qualquer responsabilidade, os seus ministros não tinham o dever de prestar contas, embora fossem responsáveis por qualquer dissipação dos bens públicos (art. 133, §6°).

O Poder Legislativo era exercido pela Assembléia Geral, composta por duas Câmaras: Câmara de deputados e Câmara de Senadores ou Senado (art. 14). A Câmara de Deputados era composta por deputados eleitos por período temporário (art. 35), e o Senado era composto de senadores vitalícios e de livre escolha do Imperador, a partir de lista tríplice eleita pelas províncias (art. 40). As eleições eram indiretas, tanto para senadores como para deputados, pois os cidadãos elegiam em assembléias paroquiais os eleitores das províncias (art. 90). Havia também a possibilidade do Poder Moderador exercer o direito de dissolução da Câmara dos Deputados (art. 101).

O Poder Judiciário era composto de um Supremo Tribunal de Justiça, que era um órgão superior localizado na capital do Império (art. 163). Este Tribunal foi criado através de Lei Complementar de 18 de setembro de 1828. Ainda existiam os Tribunais de Relação nas Províncias, os juizes de direito, os juizes de paz e os jurados. Este Poder também era frágil, pois podia o Imperador, no exercício do Poder Moderador, suspender os magistrados (art. 101). Muitos membros do Supremo Tribunal de Justiça foram aposentados mediante decreto do Poder Executivo2. O texto constitucional era contraditório, pois ao mesmo tempo em que afirmava que os juízes seriam perpétuos (art. 153 c/c art. 155) acabava negando as garantias constitucionais da magistratura: a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de vencimentos (art. 153 c/c art. 154).

O controle de constitucionalidade não era atribuído ao Poder Judiciário. Esta função foi destinada à Assembléia Geral, que nos termos do art. 15, n. 80 tinha a faculdade de "fazer leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las", seguindo ao modelo revolucionário francês. Consta que o Legislativo fez este controle em apenas duas oportunidades3. A função de uniformização da jurisprudência poderia ter sido atribuída ao Supremo Tribunal de Justiça, mas isto não constava no rol das suas atribuições (art. 163). Deste modo a jurisprudência não era uniformizada em todo oPage 142país, o que acaba gerando uma aplicação desigual da lei entre cidadãos de um mesmo país, sendo algo atentatório aos direitos fundamentais.

Além dos aspectos constitucionais analisados, a verdade é que a Constituição formal e a Constituição real estavam muito distantes. O Brasil teve um governo que estava muito longe dos ideais liberais colocados em prática nos países desenvolvidos. Tínhamos, em verdade, um governo autoritário, com fortes caracteres absolutistas.

1. 2 Os Direitos civis e políticos

A Constituição de 1824 tinha como seu Título 8o: Das disposições gerais e garantias dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros. Este era o último título da Constituição. Também o art. 179, que trazia um extenso rol de direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, e era o último artigo da Constituição. Isto demonstra que a Constituição não destinou um espaço de relevância para os direitos fundamentais.

O art. 179 afirmava que a inviolabilidade dos direitos civis e políticos tinha por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade. Inspirava-se para isto no art. 2° da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Porém, diferente da Declaração francesa, não fez menção a um quarto direito natural: o direito de resistência à opressão.

No art. 179 constavam 35 incisos, contemplando direitos civis e políticos. Entre os direitos encontravam-se: a legalidade, a irretroatividade da lei, a igualdade, a liberdade de pensamento, a inviolabilidade de domicílio, a propriedade, o sigilo de correspondência, a proibição dos açoites, da tortura, a marca de ferro quente e outras penas cruéis, entre outros direitos e garantias.

É interessante também assinalar a presença de direitos sociais na Constituição de 1824 no rol do art. 179: o direito aos socorros públicos (XXXI) e o direito a instrução primária gratuita a todos os cidadãos (XXXII), apesar dos direitos sociais serem um evento próprio do século XX.

Em relação a proteção judicial dos direitos fundamentais, a Constituição de 1824 não criou instrumentos apropriados para a defesa dos direitos fundamentais. O habeas corpus não foi criado explicitamente pela Constituição de 1824, muito embora Pontes de Miranda4 sustenta que era possível extraí-lo da Constituição, quando esta decretou a independência dos poderes e quando deu ao Poder JudiciárioPage 143o direito exclusivo de conhecer de tudo quanto se entendesse com inviolabilidade penal. Pontes assinala ainda que de nada adianta o direito material prever um determinado direito sem um remédio processual capaz de garanti-lo, como é o caso do habeas corpus. Por outro lado, Pontes observa que o habeas corpus já existia no direito brasileiro mesmo antes da Constituição de 1824, com o Decreto de 23 de maio de 1821, embora não com o nome de habeas corpus, mas com a denominação de "ação de desconstrangimento". Com o nome de habeas corpus esta ação foi criada pelo Código de Processo Criminal do Império de 1932. Pontes observa que o habeas corpus é pretensão, ação e remédio. Como pretensão estava no Código Criminal (arts. 183-188), de 1830, e como ação e remédio estava no Código do Processo Criminal do Império de 1832.

Os direitos políticos dos cidadãos eram graduados segundo suas rendas e status social. A Constituição estabelecia claramente a renda necessária para o cidadão votar na escolha dos eleitores da província: renda líquida anual de cem mil réis por bens rurais, da indústria, do comércio ou de empregos (art. 92). Já para ser candidato a deputado a renda líquida anual deveria ser de quatrocentos mil réis por bens rurais, da indústria, do comércio ou de empregos (art. 95). Portanto...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT