O Constitucionalismo como Defesa aos Efeitos Transversos das Transformações Precarizantes no Mundo do Trabalho

AutorUbirajara Carlos Mendes
Páginas155-181

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1. Introdução

As constantes transformações a que o mundo do trabalho está submetido, tanto de índole econômica, caracterizada por novas formas de gestão produtiva, como também tecnológicas, advindas da chamada era da sociedade da informação, apontam para um paradigma ainda em evolução no mundo do trabalho, consubstanciado no dilema entre a opção por uma crescente desvalorização do trabalhador enquanto indivíduo e de sua alienação em face da substanciação produtiva em prol do desenvolvimento de um mercado capitalista de consumo cada vez mais abrangente, ou ainda, quem sabe, em um ideal emancipador que retome o ser humano como o sujeito ao qual as ações são dirigidas, concebendo o trabalhador como destinatário direto do princípio da dignidade humana, titular de direitos fundamentais que demandam respeito não somente pelo Estado, mas também em suas relações com particulares, sobretudo na cadeia produtiva a que está inserido, almejando o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e solidária.

Conforme pontua Ignacio Ramonet, no contexto contemporâneo, "dois dos pilares sobre os quais repousam as democracias modernas - o progresso e a coesão social - são substituídos por dois outros - a comunicação e o mercado"1, nesse sentido se buscará discutir as repercussões destes dois fenômenos no mundo do trabalho, sobretudo no que concerne à ferramentas utilizadas pelo mercado capitalista e do nível em que o modo de produção por ele eleito, aplicado por meio dos métodos de gestão produtiva, desagregadores de direitos de personalidade do indivíduo, desestruturam o caráter emancipador do trabalho, buscando investigar inclusive as repercussões das novas tecnologias da sociedade da informação no ambiente empregatícioe suas implicações na esfera da intimidade do trabalhador.

Os dois fatores - a dominação determinante de um estado de subserviência e a facilidade em transpor os limites da privacidade individual propiciada pelas novas tecnologias - situam o trabalhador em um nível crítico de vulnerabilidade, o que

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justiflca maior atenção na disciplina destas relações, especialmente considerando a importância do trabalho para o ser humano, seja para prover suas necessidades, seja como fator de realização pessoal. Embora o ser humano não seja redutível ao trabalho, é a partir dele, como categoria ontológica fundante, que opera sua representação social, sua organização social e cria, com base nas transformações realizadas, novas necessidades.

Nesse contexto o constitucionalismo confere a fundamentalidade necessária aos direitos como instrumentos de defesa do indivíduo, inafastável por se apresentar em primeira e última análise, como a base primordial que permitirá salvaguardar o indivíduo inserido em um ambiente marcado por frequentes inovações tecnológicas, por um contexto de produção exacerbante, por influências mercadológicas que desaflam a centralidade do ser humano no sistema constituído por dotações epistêmicas de outras razões, por uma pressão constante de ser objeto e engrenagem do sistema e, ainda, pela deflciência legislativa e precarizada proteção legal infraconstitucional no ambiente das regras aplicáveis à esfera de defesa da intimidade do trabalhador.

2. As transformações econômicas e o modo de produção capitalista como fatores de alienação do trabalho

O trabalho é ínsito à condição humana. A pessoa não existe como pessoa sem agregar o trabalho à sua existência. As sociedades são as que, todavia, deflnem e redeflnem os rótulos e o sentido axiológico do trabalho em seus respectivos contextos histórico, econômico e social. Mesmo a escravidão, durante muito tempo, foi considerada algo justo e necessário, a ponto de Aristóteles ter aflrmado que a cultura somente era acessível aos ricos e ociosos, e que isso não seria possível sem a escravidão. A respeito dela, profetizou: "A escravidão poderá desaparecer quando a lançadeira do tear se movimentar sozinha"2.

Sob diferentes pretextos e títulos, a escravidão instalou-se e propagou-se durante muitos séculos3 até iniciar seu declínio com a Revolução Francesa, que proclamou sua indignidade. Neste ponto, a evolução passa a trilhar um caminho diferente, não sem os entraves da concepção enraizada na cultura da permissão conferida pelo poder de o homem subjugar o próprio homem, de situar seu desvalor e sua indignidade na herança da raça, da origem e do berço4.

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Segadas Vianna5, ao comentar os fatores que contribuíram para o surgimento do Direito do Trabalho, faz um paralelo entre as revoluções política e industrial ocorridas no flnal do século XVIII. Com a primeira, o homem tornava-se livre, criava-se o "cidadão como categoria racional na ordenação política da sociedade"6, e com a segunda, transformava-se a liberdade em mera abstração, "com a concentração das massas operárias sob o jugo do capital empregado nas grandes explorações com unidade de comando"7. Concretizava-se a aflrmação de Ripert, de que "a experiência demonstra que a liberdade não basta para assegurar a igualdade, pois os mais fortes depressa se tornam opressores"8. Célebre também a lição de Lacordaire9: "Entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, é a liberdade que escraviza, é a lei que liberta".

Hannah Arendt relata o desenvolvimento dos aspectos inerentes ao trabalho, desde o desprezo que se tinha em relação a ele, até a consideração de que constitui expressão da própria condição humana, conforme se infere:

A súbita e espetacular promoção do labor, da mais humilde e desprezível posição a mais alta categoria, como a mais estimada de todas as atividades humanas, começou quando Locke descobriu que o labour é a fonte de toda propriedade; prosseguiu quando Adam Smith aflrmou que este mesmo labour era a fonte de toda a riqueza; e atingiu o clímax no system of labor de Marx, no qual o labor passou a ser origem de toda a produtividade e a expressão da própria humanidade do homem10.

É certo que a teoria de Locke buscava justiflcar a propriedade privada. Em sua obra "Segundo Tratado sobre o Governo"11, aflrmava que "todo homem tem uma

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propriedade em sua própria pessoa" e pelo "trabalho do seu corpo e a obra de suas mãos"12ele torna o que é comum propriedade sua13.

Ao analisar o modo de produção de vida e a forma e o conteúdo do capital, Karl Marx14 concebeu o trabalho como categoria fundante do ser social. Ponderou que os homens, para existirem, precisam ser capazes de se reproduzir enquanto seres humanos e a forma específlca desta reprodução é conferida por uma especial relação do homem com a natureza por meio do trabalho. A determinação do desenvolvimento humano não écompreendido somente pelo processo de conhecimento, mas pela vida social do contexto em que ela emerge. Assim, concebe Marx, é a vida social e o meio que determinam o ser, e não a ideia do ser sobre o meio.

Em Marx15, o conceito de trabalho não se limita ao conceito econômico de mera ocupação, mas é visto como atividade vital, colocada em uma posição central nas relações sociais, nas relações dos homens com a natureza e nas relações com outros homens. A possibilidade de idealização do objeto que impende, com sua força de trabalho, produzir, consigna a peculiaridadedo ser humano e ressalta a capacidade teleológica do ser social: ele tem ideado, em sua consciência, a conflguração que quer imprimir ao objeto do trabalho antes mesmo de sua realização16. O elemento presente neste processo de objetivação e exteriorização imprime utilidade aos produtos dele resultantes, ao mesmo tempo em que instiga uma transformação potencializadora das capacidades humanas, reduzindo o aspecto meramente instintivo e

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espontâneo dos outros seres vivos, pois o homem, "atuando assim sobre a natureza externa e modiflcando-a, ao mesmo tempo modiflca sua própria natureza"17.

Para Georg Lukács18, o trabalho constitui categoria intermediária que possibilita o salto ontológico das formas pré-humanas para ao ser social estando no centro do processo de humanização do homem. É a função social do trabalho que o distingue de todas as demais atividades humanas e é por meio dela que o trabalho realiza o intercâmbio orgânico com a natureza, sem ele não haveria qualquer reprodução social possível.

O pressuposto da ontologia de Lukács é retirado de Marx, os homens apenas podem viver se efetivarem uma contínua transformação da natureza, e isso se dá pelo trabalho19. Acentua Marx que: "Como criador de valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho, por isso, uma condição de existência do homem, independente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de mediação do meta-bolismo entre homem e natureza e, portanto, vida humana"20. Pondera, todavia, que o modo de produção capitalista transforma o trabalho concreto "social" em trabalho abstrato "assalariado":

Todo trabalho é, de um lado, dispêndio de força humana de trabalho, no sentido flsiológico, e, nessa qualidade de trabalho humano igual ou abstrato, cria o valor das mercadorias. Todo trabalho, por outro lado, é dispêndio de força humana de trabalho, sob forma especial, para um determinado flm, e, nessa qualidade de trabalho útil e concreto, produz valores de uso (...). De um lado, tem-se o caráter útil do trabalho, relação de intercâmbio entre os homens e a natureza, condição para a produção de coisas socialmente úteis e necessárias. É o momento em que se efetiva o trabalho concreto, o trabalho em sua dimensão qualitativa. Deixando de lado o caráter...

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