Controle de constitucionalidade: hermenêutica constitucional e revisão de fatos e prognoses legislativos pelo órgão judicial

AutorProf. Gilmar Mendes
CargoAdvogado Geral da União. Professor Adjunto da Universidade de Brasília - UnB. Doutor em Direito pela Universidade de Münster.
Páginas1-23

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1. Introdução

De uns tempos para cá tem-se enfatizado a importância da hermenêutica jurídica, especialmente da hermenêutica constitucional, na solução dos graves problemas jurídico-políticos que afetam os vários Estados democráticos.1

Parece hoje superada a idéia que recomendava a adoção do chamado método hermenêutico clássico no plano da interpretação constitucional. Como se sabe, esse modelo assenta-se em duas premissas básicas: (a) a Constituição enquanto lei há de ser interpretada da mesma forma que se interpreta qualquer lei; (b) a interpretação da lei está vinculada às regras da hermenêutica jurídica clássica 2.

Contra essa orientação, levantou-se a proposta de utilização da tópica, em suas diversas acepções, como método orientado ao problema. Tal como anotado por Böckenförde, "a idoneidade da tópica e do pensamento Page 2 problemático precisamente para a interpretação da Constituição baseou-se na "abertura estrutural" da Constituição, na sua pouca densidade normativa e na continuidade de seus textos, na amplitude e indeterminação de seus elementos"3. É nessa linha de entendimento que Scheuner chega a classificar a tópica como "a específica hermenêutica jurídico-constitucional" 4.

Essa abordagem, que, se adotada de forma radical, poderia levar a uma desvalorização ou a uma degradação da norma5, tem, pelo menos, a virtude de afastar a ilusão, alimentada pelo método hermenêutico-clássico, de que se poderia separar, em departamentos estanques, os elementos fáticos e normativos envolvidos.

Como se sabe, enquanto método adequado de hermenêutica constitucional tem a tópica expressivos representantes na Alemanha, nas suas diversas variantes, como demonstram os textos de Ulrich Scheuner, Horst Ehmke e Martin Kriele 6.

A questão metodológica coloca-se no centro da reflexão sobre o papel que deve desempenhar a Corte Constitucional ou o órgão dotado de competência para aferir a legitimidade das leis e demais atos normativos, como é o caso do Supremo Tribunal Federal, entre nós. Evidentemente, a supremacia da Constituição em face da lei coloca o órgão incumbido da jurisdição constitucional em um papel diferenciado e destacado.

As questões postas desde a instituição da Corte Suprema americana renovam-se a cada instante e em todos os Estados que optaram por consagrar uma democracia constitucional com jurisdição constitucional:

(a) estaria o legislador submetido, de forma definitiva, às decisões da Corte Constitucional?

(b) não estaria o legislador, igualmente, legitimado a adotar, em determinados casos, uma interpretação autêntica da Constituição?

(c) qual o direito que assegura ao Tribunal Constitucional a possibilidade de impor o seu entendimento ao legislador democraticamente eleito?Page 3

Essas indagações, formuladas reiteradas vezes, nos modelos americano e alemão, nunca são respondidas com qualquer proposta que leve ao desaparecimento dessas instituições de controle.

Procura-se, com base até mesmo na abertura estrutural dos textos constitucionais, na sua fragmentariedade e incompletude, recomendar que as Cortes Constitucionais pratiquem um mínimo de "self-restraint"7, uma vez que se reconhece que qualquer outra fórmula institucional8 - v.g. um controle efetivo do controlador - acabaria por retirar da jurisdição constitucional qualquer efetividade.

Portanto, a autolimitação da jurisdição constitucional não constitui uma decisão heterônoma ou externa à jurisdição constitucional 9. Ao revés, ela decorre da estrutura aberta, fragmentária, incompleta da norma constitucional, características que se revelam até mesmo nas Constituições analíticas, como as nossas, uma vez que, a despeito de eventual pretensão totalizadora, não logram - felizmente - abarcar toda a complexidade da vida política e social.

Sem tomarmos partido na disputa doutrinária, podemos afirmar, com Castanheira Neves, que "a norma-texto será apenas um - um elemento necessário, mas insuficiente - para a concreta realização jurídica, já que essa realização exigirá, para além daquela norma e em função agora do caso concreto (do problema jurídico do caso concreto), que se elabore já a normativa "concretização, já a específica "norma de decisão" 10.

2. O debate hermenêutico e a sociedade aberta dos intérpretes da constituição

Nesse novo quadro metodológico, assume relevo a proposta de Peter Häberle, que, de forma radical e dissolvente, acentua que a doutrina tradicional padece de um grande déficit.Page 4

A propósito, vale registrar passagem provocativa do texto de Häberle sobre a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição:

"Não se conferiu até aqui maior significado à questão relativa ao contexto sistemático em que se coloca um terceiro (novo) problema relativo aos participantes da interpretação, questão que, cumpre ressaltar, provoca a práxis em geral. Uma análise genérica demonstra que existe um círculo muito amplo de participantes do processo de interpretação pluralista, processo este que se mostra muitas vezes difuso. Isto já seria razão suficiente para a doutrina tratar de maneira destacada esse tema, tendo em vista, especialmente, uma concepção teórica, científica e democrática. A teoria da interpretação constitucional esteve muito vinculada a um modelo de interpretação de uma "sociedade fechada". Ela reduz, ainda, seu âmbito de investigação, na medida em que se concentra, primariamente, na interpretação constitucional dos juízes e nos procedimentos formalizados. Se se considera que uma teoria da interpretação constitucional deve encarar seriamente o tema "Constituição e realidade constitucional" - aqui se pensa na exigência de incorporação das ciências sociais e também nas teorias jurídicofuncionais, bem como nos métodos de interpretação voltados para atendimento do interesse público e do bem-estar geral -, então há de se perguntar, de forma mais decidida, sobre os agentes conformadores da "realidade constitucional" 11.

Após ressaltar que a interpretação constitucional tem sido, até agora, coisa de uma sociedade fechada, restrita aos intérpretes jurídicos vinculados às corporações e às partes formais do processo, observa Häberle, de forma convincente:

"A estrita correspondência entre vinculação (à Constituição) e legitimação para a interpretação perde, todavia, o seu poder de expressão quando se consideram os novos conhecimentos da teoria da interpretação: interpretação é um processo aberto. Não é, pois, um processo de passiva submissão, nem se confunde com a recepção de uma ordem. A interpretação conhece possibilidades e alternativas diversas. A vinculação se converte em liberdade na medida em que se reconhece que a nova orientação hermenêutica consegue contrariar a ideologia da subsunção. A ampliação do círculo dos intérpretes aqui sustentada é apenas a conseqüência da necessidade, por todos defendida, de integração da realidade no processo de interpretação. É que os intérpretes em sentido amplo compõem essa realidade pluralista. Se se reconhece que a norma não é uma decisão prévia, simples e acabada, há de se indagar sobre os participantes no seu desenvolvimento funcional, sobre as Page 5 forças ativas da law in public action (personalização, pluralização da interpretação constitucional!)" 12.

O reconhecimento do caráter complexo e plural da interpretação constitucional leva, como acentua Häberle, a uma relativização da interpretação constitucional jurídica:

"Essa relativização assenta-se nas seguintes razões:

1. O juiz constitucional já não interpreta, no processo constitucional, de forma isolada: muitos são os participantes do processo; as formas de participação ampliam-se acentuadamente;

2. Na posição que antecede a interpretação constitucional "jurídica" dos juízes (Im Vorfeld juristischer Verfassungsinterpretation der Richter), são muitos os intérpretes, ou, melhor dizendo, todas as forças pluralistas públicas são, potencialmente, intérpretes da Constituição. O conceito de "participante do processo constitucional" (am Verfassungsprozess Beteiligte) relativiza-se na medida em que se amplia o círculo daqueles que, efetivamente, tomam parte na interpretação constitucional. A esfera pública pluralista (die pluralistische Öffentlichkeit) desenvolve força normatizadora (normierende Kraft). Posteriormente, a Corte Constitucional haverá de interpretar a Constituição em correspondência com a sua atualização pública;

3. Muitos problemas e diversas questões referentes à Constituição material não chegam à Corte Constitucional, seja por falta de competência específica da própria Corte, seja pela falta de iniciativa de eventuais interessados. Assim, a Constituição material "subsiste" sem interpretação constitucional por parte do juiz. Considerem-se as disposições dos regimentos parlamentares! Os participantes do processo de interpretação constitucional em sentido amplo e os intérpretes da Constituição desenvolvem, autonomamente, direito constitucional material. Vê-se, pois, que o processo constitucional formal não é a única via de acesso ao processo de interpretação constitucional"13.

Tal como observado por Böckenförde, a construção de...

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