O Histórico Constitucional do Concurso Público e as Consequências Jurídicas para sua Ausência a Luz da Posição do Tribunal Superior do Trabalho

AutorJorge Luiz Souto Maior
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho, titular da 3ªVara do Trabalho de Jundiaí
Páginas68-87

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1. Introdução

A acessibilidade de todos aos cargos públicos por meio do concurso público possui um duplo aspecto, possibilita que os melhores, os mais capacitados profissionalmente tenham acesso aos postos públicos, o que atende ao interesse dos indivíduos e da própria Administração; por outro lado, que todos, independentemente de injunções subalternas, podem ingressar no serviço público1.

Se existe algum problema no primeiro aspecto, ele repousa nos distintos pontos de partida dos candidatos aos postos públicos, ou será que têm as mesmas chances aqueles que possuem déficit de alimentação e aqueles que se deleitam com manjares? Ou, ainda, aqueles que enfrentam os bancos escolares após a jornada de trabalho que, não poucas vezes, é acompanhada de nada agradáveis horas no transporte público têm as mesmas chances daqueles que apenas estudam? Essas mazelas não surgem por conta do procedimento concursal que, embora não seja perfeito, é a mais democrática forma de acesso.

O segundo aspecto nos é mais caro, ele revela que o acesso aos postos públicos depende, apenas, das aptidões e competências, o que revela de modo claríssimo a importância do concurso público e o relevo das travas ou medidas estabelecidas pelo poder constituinte para garantir a

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observância da norma estabelecida no art. 37, II, da Constituição Federal. Essas garantias são a responsabilização do administrador público que não observa o mandamento constitucional e a declaração de nulidade da contratação à margem do concurso público.

Os atuais contornos do concurso público, isto é, suas exigências e garantias, representam avanço, ao menos é o que se escuta a todo momento, mas para que se possa chegar a essa conclusão é relevante que se estude o histórico constitucional dos procedimentos de acesso aos cargos e empregos públicos.

Esse é um dos objetivos do presente texto, mas não é o único.

Pretendemos, também, verificar o entendimento do Tribunal Superior do Trabalho a respeito da questão, pois muito já se disse a respeito da nulidade do contrato de emprego firmado com a Administração ao arrepio do concurso público. Já foi distinguida a nulidade do vínculo de emprego da ineficácia do vínculo de emprego, já se defendeu a distinção dos trabalhadores de boa-fé dos trabalhadores de má-fé. Contudo, não há muito material a respeito dos enunciados que formaram o entendimento da Corte Trabalhista.

Para tanto, a legislação foi o ponto de partida, mas o material estudado não se esgotou por aí, uma vez que a consulta à jurisprudência e à doutrina mostraram-se indispensáveis.

2. Noções iniciais

Os sujeitos podem se vincular ao Estado como instrumentos expressivos de sua vontade ou ação de diversas maneiras. O gênero dessas designações recebe o nome de agente público e se desdobra em diversas espécies, consoante as peculiaridades da vinculação. O termo agente público é amplíssimo, porquanto abrange quem quer que desempenhe funções estatais como, por exemplo, o chefe do Poder Executivo, os senadores, os ocupantes de cargos ou empregos públicos da Administração direta dos três poderes, da Administração indireta e até mesmo pessoas que permanecem à parte do aparelhamento estatal (concessionários, permissionários, delegados de função ou ofício público etc.)2.

Entre as espécies de agentes públicos interessa-nos os servidores públicos em sentido amplo que são identificados por Di Pietro como as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado e à Administração indireta com vínculo empregatício e com pagamentos realizados pelos cofres públicos3. A espécie de agentes públicos em evidência comporta subdivisão em: servidores estatutários, que são aqueles sujeitos ao regime estatutário e ocupantes de cargos públicos; empregados públicos, contratados sob o regime da legislação trabalhista e ocupantes de emprego público; e servidores temporários que são contratados por tempo determinado para o atendimento de necessidade temporária de excepcional interesse público, exercem função, mesmo sem estarem vinculados a cargo ou emprego público4.

Percebe-se, assim, que a vinculação permanente ou não transitória de cidadãos com a Administração para os fins de prestação de trabalho pode ser, basicamente, de duas espécies, contratual e estatuária, distinção que também é encontrada em outros países, como, por exemplo, na Espanha5. O regime adotado variará de acordo com a opção realizada pelas entidades que

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integram a Federação, uma vez que essa escolha se insere na autonomia política, administrativa e financeira dos Municípios, dos Estados, do Distrito Federal e da União6, muito embora exista quem defende que o regime jurídico único corresponde ao estatutário, não só por proporcionar maiores vantagens à Administração e aos administrados7. Todavia, a autonomia dos entes encontra limites no próprio texto constitucional que estipula o regime jurídico a ser observado em algumas carreiras, como, por exemplo, a Magistratura (arts. 93 a 95 da CF) e o Ministério Público (arts. 127 e 128 da CF).

A redação original do art. 39, caput, da CF8 impossibilitava a simultaneidade de regimes, o que implicava a existência, unicamente, de celetistas ou de estatutários9, situação modificada pela Emenda Constitucional n. 19/199810, que instaurou um regime constitucional de ampla possibilidade de espécies de vinculação dos servidores públicos com a Administração Pública. Ocorre que o Supremo Tribunal Federal—STF, na ADIn n. 2.135-4, em decisão publicada em
14.8.2007, deferiu parcialmente medida cautelar, com efeitos ex nunc, para suspender a eficácia da nova redação dada ao art. 39, caput, do texto maior, o que resultou no retorno da aplicação da redação original da proposição prescritiva em destaque.

Entendeu o STF, em medida cautelar, que a Emenda Constitucional n. 19/1998 não foi aprovada pelo quorum qualificado de três quintos necessário à modificação do texto maior, pois a PEC obteve, somente, 298 votos e não os 308 necessários na Câmara dos Deputados. A medida cautelar deferida ampara-se em vício formal de constitucionalidade, ou seja, na inobservância dos procedimentos ou competências fincados na Constituição, de maneira que não fora afastada pelo STF a compatibilidade do conteúdo da modificação com as normas que consagram as cláusulas pétreas11. Com isso, retorna a unicidade do regime jurídico único que, esclarece-se, não

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é necessariamente o estatutário, uma vez que inexiste vinculação magna nesse sentido, de modo que é lícito aos entes federativos a adoção do regime celetista ou contratual.

Independentemente do regime jurídico escolhido, podem surgir dúvidas quanto a quem deve ocupar os cargos ou empregos públicos. A solução dessa dúvida varia de acordo com a opção realizada pelos exercentes do poder constituinte, isto é, de acordo com as regras por eles estabelecidas e com os princípios vetores da Administração Pública. O art. 3712, caput, da vigente

Constituição destacou como princípios da Administração Pública os seguintes: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

O princípio da publicidade consagra o dever de a Administração manter a transparência de seus comportamentos, pois em um Estado Democrático de Direito não podem existir atos ocultos ao povo13.

Extrai-se do princípio da moralidade o dever da Administração e do administrado que com ela se relacione de atuar com a observância da moral, dos bons costumes e das regras de boa administração e não somente com a observância dos importantes ditames legais14.

Já o princípio da impessoalidade representa a impossibilidade de a Administração atuar com vistas a prejudicar ou favorecer pessoas determinadas. Essa concepção deriva da necessidade de prevalência do interesse público, ou, se se preferir, da imposição dos interesses primários da sociedade sobre os interesses dos particulares. Há, ainda, uma segunda compreensão segundo a qual os atos administrativos são imputáveis à própria Administração e não ao funcionário que os pratica15.

Por sua vez, a eficiência apresenta dois aspectos: pode ser considerada como o modo de atuação do agente público ou como o modo de organização e estruturação da Administração pública16; nota-se, em ambas as compreensões, que a eficiência é vista como a obtenção de melhores resultados com o menor custo e, de igual maneira, o atendimento do interesse público da melhor maneira possível.

Há grande vinculação dos princípios lembrados no parágrafo precedente com o concurso público, pois a observância da imparcialidade garante que a escolha do ocupante do cargo ou emprego público será feita mediante parâmetros neutros que avaliem a aptidão e o preparo do aspirante a servidor público; em estreita harmonia, o respeito à eficiência será traduzido em um processo de seleção racional que escolha o candidato mais bem preparado, de modo que a atuação do selecionado possa trazer melhores resultados à Administração e aos objetivos por ela perseguidos.

Deixamos, por derradeiro, a análise do princípio da legalidade, que representa o propósito político de submeter os exercentes do poder em concreto a um quadro normativo que embargue favoritismos, perseguições ou desmandos17. E, ainda, a atuação da administração nos estreitos parâmetros do estabelecido pelas normas jurídicas. O estabelecimento de vínculo jurídico entre a Administração Pública e os servidores públicos diz respeito ao preenchimento substancial da atividade necessária ao atendimento do interesse público, de modo que costuma ser tratado pelas

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normas de maior envergadura na ordem jurídica. As normas constitucionais sobre a ocupação de cargos e empregos públicos indicam que a investidura depende de aprovação em concurso público18 de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza...

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