Princípios constitucionais do trabalho

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas30-70

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I Introdução

Os princípios e regras de proteção à pessoa humana e ao trabalho constituem parte estrutural da constituição da república brasileira. Sabiamente, a constituição de 1988 percebeu que a valorização do trabalho é um dos mais relevantes veículos de valorização do próprio ser humano, uma vez que a larga maioria dos indivíduos mantém-se e se afirma, na desigual sociedade capitalista, essencialmente, por meio de sua atividade laborativa.

Os princípios referentes ao trabalho na estrutura constitucional brasileira englobam-se em três grandes grupos.

O primeiro rol diz respeito a efetivos princípios constitucionais do trabalho. Trata-se de diretrizes afirmatórias do labor humano na ordem jurídico-cultural brasileira: a da valorização do trabalho, em especial do emprego; a da justiça social; a da submissão da propriedade à sua função socioambiental; e a da dignidade da pessoa humana.

O segundo rol diz respeito a princípios constitucionais de amplo espectro, não exatamente originados em função da ideia e realidade do trabalho, porém que hoje também atuam, de modo importante, no plano justrabalhista.

Não se construíram e se desenvolveram, é certo, em função do temário juslaborativo, elaborando-se, originalmente, em torno de matérias distintas daquelas específicas ao ramo especializado do direito do Trabalho. contudo, por diferentes razões passaram a ter influência no campo trabalhista contemporâneo, afetando, muitas vezes com significativa força, sua realidade normativa.

Trata-se, em especial, das diretrizes da proporcionalidade, da não discriminação e da inviolabilidade do direito à vida.

Neste segundo grupo integra-se também o princípio da vedação do retrocesso social que, embora não sendo específico da seara trabalhista, nela atua com grande impacto e destaque.

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O terceiro rol abrange, finalmente, princípios clássicos do direito do Trabalho, preexistentes à constituição de 1988, mas que foram por ela absorvidos. na medida desta absorção, tais diretrizes adquiriram status constitucional, fortalecendo seu poder de projeção na ordem jurídica do país.

Esse grupo de princípios diz respeito não somente à dimensão coletiva como também à individual trabalhista.

No plano juscoletivo, trata-se dos princípios da liberdade e autonomia associativas e sindicais e da interveniência sindical na negociação coletiva.

No plano jusinvidividual, trata-se dos princípios da norma mais favorável, da continuidade da relação de emprego e da irredutibilidade salarial.

II Princípios constitucionais do trabalho

São quatro os princípios constitucionais afirmativos do trabalho na ordem jurídico-cultural brasileira: o da valorização do trabalho, em especial do emprego; o da justiça social; o da submissão da propriedade à sua função socioambiental; e o da dignidade da pessoa humana.

Trata-se de efetivos princípios constitucionais do trabalho. São eminentemente constitucionais, não apenas porque reiteradamente enfatizados no corpo normativo da constituição da república, mas principalmente por faze-rem parte do próprio núcleo filosófico, cultural e normativo da constituição. São princípios que acentuam a marca diferenciadora do Texto Magno de 1988 em toda a história do país e de todo o constitucionalismo brasileiro, aproximando tal constituição dos documentos juspolíticos máximos das sociedades e estados mais avançados, no plano jurídico, na europa ocidental.

É claro que alguns deles — justiça social, submissão da propriedade à sua função socioambiental, dignidade da pessoa humana — não concentram efeitos exclusivamente ou essencialmente apenas no plano trabalhista, uma vez que espraiam repercussões para múltiplas searas jurídicas, econômicas, sociais e culturais. Mas todos, sem dúvida, atingem de maneira exponencial a dimensão laborativa da existência humana e social.

1. Valorização do trabalho e do emprego

A valorização do trabalho, especialmente do emprego, é um dos princípios cardeais da ordem constitucional brasileira democrática. reconhece a constituição a essencialidade da conduta laborativa como um dos instrumentos mais relevantes de afirmação do ser humano, quer no plano de sua própria individualidade, quer no plano de sua inserção familiar e social.

A centralidade do trabalho na vida pessoal e comunitária da ampla maioria das pessoas humanas é percebida pela constituição, que, com notável sensibilidade social e ética, erigiu-a como um dos pilares de estruturação da ordem econômica, social e, por consequência, cultural do país.

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Sabiamente, detetou a constituição que o trabalho, em especial o regulado, assecuratório de certo patamar de garantias ao obreiro, é o mais importante veículo (se não o único) de afirmação comunitária da grande maioria dos seres humanos que compõem a atual sociedade capitalista, sendo, desse modo, um dos mais relevantes (se não o maior deles) instrumentos de afirmação da democracia na vida social.

À medida que democracia consiste na atribuição de poder também a quem é destituído de riqueza — ao contrário das sociedades estritamente excludentes de antes do século XiX, na história —, o trabalho assume o caráter de ser o mais relevante meio garantidor de um mínimo de poder social à grande massa da população, que é destituída de riqueza e de outros meios lícitos de seu alcance. Percebeu, desse modo, com sabedoria a constituição a falácia de instituir a democracia sem um correspondente sistema econômico-social valorizador do trabalho humano.

A valorização do trabalho está repetidamente enfatizada pela constituição de 1988. desde seu “Preâmbulo”, esta afirmação desponta. demarca-se, de modo irreversível, no anúncio dos “Princípios Fundamentais” da república Federativa do Brasil e da própria constituição (Título i). especifica-se, de maneira didática, ao tratar dos “direitos sociais” (arts. 6º e 7º) — quem sabe para repelir a tendência abstracionista e excludente da cultura juspolítica do país. concretiza-se, por fim, no plano da economia e da Sociedade, ao buscar reger a “ordem econômica e Financeira” (Título Vii), com seus “Princípios Gerais da atividade econômica” (art. 170), ao lado da “ordem Social” (Título Viii) e sua “disposição Geral” (art. 193).

A constituição não quer deixar dúvidas, pois conhece há séculos os olhos e ouvidos excludentes das elites políticas, econômicas e sociais brasileiras: o trabalho traduz-se em princípio, fundamento, valor e direito social.

A demonstração normativa das determinações constitucionais é bastante transparente. Já em seu “Preâmbulo” a constituição dispõe-se a “(...) instituir um estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma socie-dade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias (...)” (grifos acrescidos).

Em seu Título i (“dos Princípios Fundamentais”), a constituição fixa serem fundamentos da república Federativa do Brasil, ao lado de outros, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa (art. 1º, iii e iV; grifos acrescidos).

No mesmo título, estabelece o Texto Magno, em seu art. 3º, que “constituem objetivos fundamentais da república Federativa do Brasil; i — construir uma sociedade livre, justa e solidária; ii — garantir o desenvolvimento nacional; iii — erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades

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sociais e regionais; iV — promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (grifos acrescidos).

O enquadramento didático do trabalho como direito social está explicitado no art. 6º da constituição, concretizando-se em inúmeros dos direitos que se listam no art. 7º. Perceba-se, a propósito, que esse enquadramento não reduz, normativamente, o patamar de afirmação do trabalho (de princípio, valor e fundamento para direito social); ele claramente deve ser compreendido como um acréscimo normativo e doutrinário feito pela constituição, de modo a não deixar dúvida de que o trabalho ocupa, singularmente, todas as esferas de afirmação jurídica existentes no plano constitucional e do próprio universo jurídico contemporâneo.

Ao tratar da “ordem econômica e Financeira” e dos “Princípios Gerais da atividade econômica” (Título Vii, capítulo i, art. 170), a constituição dispõe que a ordem econômica é “fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa” (grifos acrescidos). Fundamento e valorização, a um só tempo, como se nota...

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