Considerações sobre o Conflito entre a Liberdade de Imprensa e a Inviolabilidade da Honra

AutorFlavio Saad Perón
Páginas235-243

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1. Introdução

A Constituição consagra os valores e princípios em que se funda o Estado brasileiro, dispõe sobre as suas instituições e sua organização e fixa os objetivos fundamentais da República.

Dentre os fundamentos do Estado, sobressai a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Como desdobramento deste fundamento, no Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, a Constituição declara a inviolabilidade do direito à vida (art. 5º, caput) e da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (inc. X).

E não poderia ser de outro modo, pois a vida humana, como ensina José Afonso da Silva, "não é apenas um conjunto de elementos materiais. Integram-na, outrossim, valores imateriais, como os morais". E prossegue: "a moral individual sintetiza a honra da pessoa, o bom nome, a boa fama, a reputação que integram a vida humana como dimensão imaterial. Ela e seus componentes são atributos sem os quais a pessoa fica reduzida a uma condição animal de pequena significância. Daí por que o respeito à integridade moral do indivíduo assume feição de direito fundamental."1A liberdade da manifestação do pensamento, e de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, a liberdade de imprensa, de informar e ser informado, também consubstanciam direitos fundamentais, proclamados nos incisos IV e IX do art. e 220 da Constituição Federal.

As liberdades da manifestação do pensamento e de imprensa são essenciais ao Estado Democrático de Direito, pois possibilitam às pessoas o conhecimento dos

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fatos a partir dos quais forma-se o espírito crítico, indispensável para a participação do cidadão nos destinos da sociedade.

Discorrendo sobre a importância da liberdade de imprensa, Karl Marx, apud Silva, verberou: "A imprensa livre é o olhar onipotente do povo, a confiança personalizada do povo nele mesmo, o vínculo articulado que une o indivíduo ao Estado e ao mundo, a cultura incorporada que transforma lutas materiais em lutas intelectuais, e idealiza suas formas brutas. É a franca confissão do povo a si mesmo, e sabemos que o poder da confissão é o de redimir. A imprensa livre é o espelho intelectual no qual o povo se vê, e a visão de si mesmo é a primeira confissão da sabedoria".2Vivemos o tempo em que muitos denominam de a era da informação. O volume e a rapidez da transmissão e recebimento de informações constitui hoje algo inimaginável há uma década. Se o rádio e a televisão já permitiam a transmissão de informações a um enorme número de pessoas, em tempo real, a Internet, e a popularização do seu acesso nos últimos anos, aumentou ainda mais a abrangência e a velocidade das transmissões de dados e informações. Hoje, um acontecimento é noticiado e chega ao conhecimento de um número infindável de pessoas, nos grandes centros urbanos ou nos mais longínquos pontos do planeta, ao mesmo tempo em que está ocorrendo.

São indiscutíveis os benefícios decorrentes desta nova realidade, principalmente pela velocidade da transmissão de informações e pela democratização do acesso à informação que a cada ano chega a um número maior de pessoas.

Ocorre que não raras vezes testemunhamos a divulgação de matérias jornalísticas atribuindo fatos desabonadores a pessoas, publicamente conhecidas ou não, que posteriormente revelam-se inverídicos. Em tais casos o prejuízo à intimidade ou à honra das pessoas indicadas na notícia materializa-se com a sua publicação, com a divulgação a um grande e indeterminado número de pessoas.

Muitos destes casos são levados à apreciação do Poder Judiciário, que para decidir a lide deve solucionar o conflito entre os dois mencionados princípios constitucionais: da inviolabilidade da honra e da liberdade de manifestação de pensamento e imprensa.

Ambos os princípios têm a mesma hierarquia (posto que ambos estão consagrados na Constituição Federal) e são contemporâneos (ambos surgiram com a Carta Constitucional de 5/10/1988), sendo impossível a solução do conflito pelos critérios empregados para a solução dos conflitos de normas, como a hierarquia, anterioridade ou a especialidade.

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A solução, com a definição, em cada caso, sobre qual princípio deve prevalecer, conforme Robert Alexy apud Enéas Costa Garcia, se dá com a aplicação da "relação de precedência condicionada", pela análise e ponderação dos fatos e circunstâncias particulares de cada caso.3Ensina Garcia, com base na lição de Alexy, que "especialmente nos princípios constitucionais, não se admite uma prevalência absoluta de um determinado princípio em conflito", esclarecendo que "são as condições do caso concreto que vão determinar a prevalência do princípio".4

2. O conflito honra x liberdade de informação

A honra, segundo Silva, "é o conjunto de qualidades que caracterizam a dignidade da pessoa, o respeito dos concidadãos, o bom nome, a reputação".5 Do mesmo modo, Bulos ensina que a honra "traduz-se pelo sentimento de dignidade própria (honra interna), pelo apreço social, reputação e boa fama (honra exterior ou objetiva) (Victor Cathrein, Moralphilosophie, p. 65; Arthur von Schopenhauer, Aphorismen zur Lebensweisheit, p. 68)".6Dada à sua importância, eis que essencialmente ligada à dignidade humana, a honra recebeu, como já assentado no capítulo anterior, proteção constitucional, no art. 5º, X, que a declara inviolável e assegura o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente da sua violação.

Como também já asseverado no Capítulo 1, a liberdade de imprensa é fundamental à democracia, estando albergada nos arts. 5º, IV, IX e 220 da Carta Constitucional. Este último dispositivo, porém, ao assegurar, em seu § 1º, que "nenhuma lei conterá...

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