Conhecer os direitos humanos em Dom Quixote: A dicotomia entre idealidade e realidade

AutorLeilane Serratine Grubba
CargoDoutora em Direito (UFSC)
Páginas13-31
Revista Científica Direitos Culturais
Vinculada ao PPGD URI, Campus Santo Ângelo/RS
Leilane Serratine Grubba pp. 13-31
v. 10, n. 20, ano 2015 13
CONHECER OS DIREITOS HUMANOS EM DOM QUIXOTE: A DICOTOMIA
ENTRE IDEALIDADE E REALIDADE
TO KNOW THE HUMAN RIGHTS IN DOM QUIXOTE: THE DIFFERENCE BETWEEN
IDEALISM AND REALISM
Leilane Serratine Grubba
1
Resumo: O trabalho te m por objeto a relação entre Dire ito e Literatura, principalmente a compreensão do
diálogo entre o idealismo e a imanência dos Direitos Humanos à luz da narrativa Dom Quixote, d e Cervantes. No
intuito de interconectar os campos cognitivos do Direito e da Literatura e, uma vez que inexiste uma Teoria do
Direito & Literatura, foi utilizado o método anarquista postulado por Fe yerabend. Assim, em primeiro lugar, o
estudo centrou-se na investigação do que é uma grande obra de arte, em sua vinculação com a dignidade
humana. Sequencialmente, o artigo foi ao encontro de seu objetivo: analisar o idealismo dos Direitos Humanos,
presente no discurso tradicional dos Direitos Humanos positivados, em sua máxima expressão, a Declaração
Universal de 1948; em sua vinculação ao personagem Dom Quixote. Por fim, a crítica a essa concepção de
Direitos emerge da noção de imanência da vida digna, para a qual surge o personagem Sancho Pança, munido da
realidade do mundo material.
Palavras-chave: Conhecimento jurídico. Epistemologia jurídica. Direito s Humanos. Literatura. Cervantes.
Abstract: The paper 's about Law & Literature, especially understanding the dialogue between idealism and
immanence o f Human Rights in the light of the narrative Don Quixote. In order to interconnect the cognitive
fields of Law and Literature, and since there is no a Theory of Literature & Law, it is not a methodology that
orthodox closed, but pol yphonic and open to new meanings. Accordingly limits to scientific research in
Feyerabend's epistemology, which assumes that the only postulate that does not preclude the advancement of
science i s all worth. Thus, firstly, the study focused on the investigation of what is a gr eat work o f art in it s
relationship with human dignity. Sequentially, the ar ticle was to meet his goal: to analyze the idealism of Human
Rights, in this traditional discourse positivized Human Rights, in its highest expression, the Universal
Declaration of 1948, in its connection to the character Don Qui xote. Finally, criticism of this conception of rights
emerges from the notion of immanence of dignified life , which comes to the character Sancho Panza, armed with
the reality of the material world
Keywords: Juridical Knowledge. Juridical epistemology. Human Rights. Literature. Cervantes.
Considerações iniciais
A busca teórica de uma conexão entre os campos cognitivos do Direito (teoria
jurídica) e da Literatura (teoria literária) não é recente. Contudo, não existe uma Teoria do
Direito e Literatura ou uma Teoria Jurídico-Literária, mas somente alguns pontos de
encontro entre discursos narrativos e jurídicos.
O movimento Law and Literature surgiu nos Estados Unidos na década de 1960 e,
em 1883, Irving Browne publicou o livro Law and Lawyers in Literature, demonstrando uma
ligação incipiente entre ambos os objetos de estudo. Mas a instância inicial de junção entre o
Direito e a Literatura tem como expoente James Boyd White
2
. Ele, ao focar em experiências
1
Doutora em Direito (UFSC). Mestre em Direito (UF SC). Professora do Programa de Pós -Graduação stricto
sensu em direito da Faculdade Meridional e professora dos cursos de direito da Faculdade Meridional e
CESUSC. Email: lsgrubba@hotmail.com
2
WHITE, James Boyd. The Judicial Opinion and the Poem, Ways of Reading, Ways of Life. In., Law and
literature, text and theory. Garland P ublishing New York, 1996. WHITE, James Boyd. The legal ima gination. 6.
ed. Chicago: The University Chicago Press, 1997.
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educativas, desenvolveu o pensamento que foi denominado, posteriormente, de Direito como
Literatura.
No Brasil, não obstante os trabalhos pioneiros de Eliane Botelho Junqueira, Arnaldo
Sampaio de Moraes Godoy, Luis Carlos Cancellier de Olivo, André K. Trindade, além de
outros pesquisadores, continua pouco explorado esse campo de estudo.
Até hoje não se construiu uma única teoria que criasse um espaço concreto entre o
direito e a literatura, mas somente análises que, partindo de pesquisadores jurídicos, são
dedicadas à compreensão do Direito a partir da Literatura.
Os movimentos, individuais e coletivos, que intentam a criação de uma Teoria do
Direito e Literatura, a partir da aproximação interdisciplinar entre os dois campos do
conhecimento, podem ser agrupados em duas vertentes
3
: a) o Direito na Literatura; e, b) o
Direito como Literatura. O Direito na Literatura conjuga o esforço em estudar as
manifestações da Teoria Jurídica nas representações literárias, além da possibilidade da
utilização dessas aparições como meios de interpretação, crítica e multiplicação do próprio
Direito, entendido como um código normativo. Por sua vez, a vertente do Direito como
Literatura centra sua análise do discurso jurídico no âmbito da linguística, vislumbrando-o
como um discurso literário. Ao se utilizar da Teoria da Literatura para a compreensão dos
textos jurídicos, percebe-os munidos de qualidades literárias. Trata-se de uma relação
analógica entre ambos os campos do conhecimento humano: uma vinculação dos discursos
jurídicos aos discursos literários.
Para a vertente do direito como literatura, é importante considerar que o ponto de
encontro entre o direito e a literatura é a linguagem. Por conseguinte, a hermenêutica parece
ser a forma de interpretação jurídica e literária dos significantes e significados. Conforme
Dworkin
4
:
[...] a interpretação literária tem como objetivo demonstrar como a obra em questão
pode ser vista como a obra de arte mais valiosa, e para isso deve atender para
características formais de identidade, coerência e integridade, assim como para
considerações mais substantivas de valor artístico. Uma interpretação plausível da
prática jurídica também deve [...] passar por um teste de duas dimensões: deve
ajustar-se a essa prática e demonstrar sua finalidade ou valor. Mas a finalidade ou
valor, aqui, não pode significar valor artístico, porque o Direito, ao contrário da
literatura, não é um empreendimento artístico. O Direito é um empreendimento
político [...].
Ainda importa buscar as variadas interconexões e intersecções entre os textos
literários e o discurso jurídico, para a constituição de uma Teoria do Direito e Literatura
(Teoria jurídico-literária) que não se restrinja à análise das manifestações do Direito na
Literatura ou às interpretações jurídicas das narrativas literárias. Isso porque nem o Direito
deve ficar subjugado à grandeza das manifestações artísticas, nem tampouco a Literatura deve
servir como plano de fundo a um discurso jurídico artístico
5
.
Afinal, tanto o Direito quanto a Literatura se desenvolvem no mesmo campo, o
campo das relações humanas: não somente eles se constituem de elementos linguísticos, mas
3
Não devemos esquecer, co ntudo, a existência da concepção do Direito da Literatura, ou seja, um ramo do
Direito que estuda as relações jurídicas que envolvem a publicação de uma obra literár ia, assim como uma
vertente que te m por objeto a regulamentação normativa das obras literárias, no âmbito da autoria (direitos
autorais), reprodução, etc.
4
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos B orges. São Paulo: Martins Fontes,
2000, p. 117.
5
Para Schwartz, o estudo do Direito e Literatura é uma alternativa para os juristas que se desapontaram com as
clássicas fórmulas de análise da ciência jurídica. SCHWART Z, Germano. A Constituição, a literatura e o
direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 125-127.

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