Conflitos Individuais do Trabalho e Conciliação: Possibilidade de Afirmação do Direito do Trabalho

AutorJosé Francisco Siqueira Neto
Ocupação do AutorAdvogado, Mestre (PUC-SP) e Doutor (USP) em Direito, Professor Titular e Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo.
Páginas179-185

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Introdução

Apresentar trabalho em homenagem ao Minis-tro Antonio José de Barros Levenhagen é uma honra. Discutir a conciliação nos conflitos individuais do trabalho eleva ainda mais a satisfação de contribuir em obra desta natureza.

A conciliação é um dos pontos que mais incomodam os estudiosos do direito e do processo do trabalho nos dias que correm. As eloquentes discussões sobre os meios alternativos de solução dos conflitos - no mais das vezes - concentram-se excessivamente na administração judiciária para concluir que a estrutura do Poder Judiciário não é suficiente para resolver litígios que anualmente crescem em proporção geométrica, e em razão disso, é necessário adotar meios alternativos - especialmente a conciliação e a mediação - para evitar a sobrecarga judiciária. Invariavelmente, nessas manifestações a lógica do sistema de relações de trabalho é desprezada ou referida em segundo plano.

Assim, em que pesem parcialmente corretas, essas análises pouco ajudam e muito confundem. Por causa do açodamento conclusivo pontual, esses movimentos doutrinários voluntariosos - pois desfocados da questão sistêmica - não consolidam institucionalmente a conciliação e a mediação e conseguem a proeza de inserir esses dois importantes institutos no rol das disputas ideológicas.

E deste modo vamos, a depender da criatividade dos atores políticos e da ousadia propositiva de acordo com os ventos determinados pela política. Nos últimos anos vivemos no Brasil de forma bastante evidente essas mudanças de visões: saímos de um debate muito forte sobre a necessidade (ou não) de reforma da CLT e chegamos até a reforma sindical. Nenhum dos polos conseguiu evoluir da fase das propostas legislativas, mas as emoções foram intensas.

Em que pesem os fracassos anunciados, essas visões de reformas indicam claramente o resultado esperado pelos respectivos defensores: uma parcela entende que o que importa é reformar pontualmente o sistema vigente, porém, mantendo o seu sentido básico de controle, especialmente o da negociação coletiva; e a outra parte, imagina que é fundamental mudar o sistema de relações de trabalho como um todo e para isso o ponto de partida é a reforma sindical, pois ela proporcionaria alterar o papel da negociação coletiva e a atuação dos sindicatos, e consequentemente, a partir dessa mudança, todo o sistema na perspectiva democrática e participativa.

Tudo decorre do fato de a Constituição de 1988 não ter claramente realizado a mudança sistêmica que possibilitasse maior dinamismo democrático e participativo ao nosso sistema de relações de trabalho.

Como no Brasil preponderam os entendimentos segundo os quais as relações individuais não se

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articulam com as coletivas e as relações coletivas não podem ser referidas na estrutura produtiva, o debate resume-se a "existência ou não de direitos", sempre passando ao largo das questões procedimentais, participativas, distributivas e democráticas.

É muito difícil conciliar em ambiente institucional cujo único espaço de convivência é o da reclamação e o da rejeição à reclamação.

Os primeiros anos de vigência da Constituição de 88 bastaram para demonstrar a insuficiência do sistema por ela consagrado. Assim, as polarizações acima referidas não demoraram muito a se caracterizar.

Em razão da demora das discussões gerais, algumas medidas pontuais foram promovidas no início dos anos 2000, mesmo assim, claramente adotadas na tentativa de diminuir o número de processos trabalhistas, como a Lei n. 9.958/00 que cuida da Comissão de Conciliação Prévia e a Lei n. 9.957/00, do Rito Sumaríssimo na Justiça do Trabalho1. O rito sumaríssimo não produziu o impacto esperado, e a Comissão de Conciliação Prévia teve sua aplicação rejeitada em razão de funcionar - na versão comentada - como filtro obrigatório de acesso ao Judiciário. Por esse motivo, a Conciliação ainda é vista por muitos atores sociais como instrumento de restrição de direitos, o que, convenhamos, exceto no caso da versão brasileira acima identificada, é um despautério.

O assunto tem uma condicionante sistêmica que torna muito difícil a sua consideração isoladamente ou, ainda, como simples variável de ajuste para diminuição de processos. O enfoque que pretendemos enfatizar nesta oportunidade é o da importância de reconhecer a existência do conflito e de organizar a distribuição do poder nas relações de trabalho como forma de assegurar um padrão mais conciliador nas relações de trabalho.

Conflito trabalhista e democracia

A base social das relações de trabalho é o conflito. Há uma tensão permanente entre empregado e empregador que decorre das formas de produção, insuscetíveis de serem eliminadas com o capitalismo.

No cenário de conflito, o Direito do Trabalho atua fundamentalmente, no caso brasileiro, por meio instrumental do processo. Esta atuação, contudo, depende da esfera de atuação. Ou seja, no âmbito individual, o que se busca é a aplicação da norma reguladora, ao passo que na esfera coletiva, o reconhecimento do conflito como decorrência do desiquilíbrio das relações de trabalho é imprescindível para alcançar as regulações possíveis por meio da negociação coletiva e dos instrumentos normativos dela decorrentes.

O Direito Coletivo do Trabalho, portanto, na perspectiva aqui indicada, é a consagração da premissa segundo a qual as relações de trabalho são organizadas a partir das matrizes sociológicas de organização social da atividade produtiva. Deste modo, aludidos critérios de organização social do trabalho são permeados por questões econômicas que acabam por se sobrepor na estruturação das atividades produtivas.

Considerar o Direito do Trabalho a partir de matrizes econômicas, implica necessariamente em localizar as relações de trabalho no bojo das transformações advindas e proporcionadas pelo próprio modo de produção econômica capitalista, que emerge em um contexto de ruptura, de contradições e rearticulações estruturais e dialéticas, notadamente conflituoso e histórico2.

Tais questões levam à formação de grupos sociais que se organizam a partir de interesses econômicos e políticos diversos e que passam a conviver e a disputar no mesmo espaço, necessitando, para isso, de múltiplas regras para solução deste choque de interesses.

A Democracia3 se mostra, até os dias atuais, a melhor forma de resolução e organização da vida

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social. Democracia, porém, não significa simplesmente governo do povo, mas sim, participação organizada na gestão da coisa pública, inclusive nas decisões sobre a produção e a distribuição de bens.

A Democracia possibilita - na sua versão mais avançada - a convivência de grupos de interesses conflitantes mediante o estabelecimento de regras de diálogo e de exercício do poder em que todos, de uma forma ou de outra, participem do processo de escolhas prioritárias para a sociedade. Isto leva à curiosa possibilidade de indivíduos participarem de grupos aliados em algumas situações, e antagônicos em outras. A Democracia, assim, serve como amálgama social destes interesses organizados em grupos e instituições de poder e pressão política e econômica.

E a Democracia só tem sentido nesta perspectiva graças às incompletudes dos grupos sociais, posto que nenhum grupo ou instituição consegue - descontada a inequívoca preponderância do poder econômico - controlar e interagir em todos os campos da sociedade. A incompletude das forças sociais e econômicas gera entre elas a necessidade de constante obtenção de posições estratégicas que no limite sustentam o diálogo e a negociação entre os grupos e instituições.

Para Boaventura de Souza Santos4:

O reconhecimento de incompletudes mútuas é condição sine qua non de um diálogo intercultural. A hermenêutica diatópica desenvolve-se tanto na...

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