O conflito

AutorJosé Osmir Fiorelli/Marcos Julio Olivé Malhadas Junior/Maria Rosa Fiorelli
Páginas13-45

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Não odeies a teu inimigo, porque se o fazes, és de algum modo seu escravo.

Jorge Luiz Borges — Elogio da sombra

Conflito é “um conjunto de propósitos, métodos ou condutas divergentes” (Folberg e Taylor, 1985, p. 42). Seu oposto é a convergência: objetivos, processos, métodos ou condutas que criam ordem, estabilidade e unidade de direção. O nascimento constitui um exemplo do conflito, presente no ciclo vital: há a tendência de permanecer no conforto intrauterino; porém, a evolução solicita que se enfrente o desafio de vir à luz, com todos os desconfortos que ele acarreta. O conflito é inerente à vida e, por meio dele, a evolução se processa.

O convívio social torna-se cada vez mais complexo, as opções à disposição de cada indivíduo multiplicam-se e novos e impensáveis tipos de desafios são incorporados à vida diária, aumentando assim, continuamente, os motivos para que os conflitos se iniciem e as condições em que eles acontecem. Conforme acentuam Fisher, Patton e Ury (1994, p. 15), “o conflito é uma indústria em crescimento”, alimentada pela ampliação da rede e da quantidade de relacionamentos decorrente do aumento contínuo de possibilidades de ofertas e diversidade de situações. Esse quadro, acompanhado da conscientização crescente dos direitos individuais e coletivos, constitui uma receita infalível para a gênese exponencial de oportunidades de conflitos.

A sociedade, conforme já se destacou na introdução, lida com os conflitos ou pela via cooperada (quando os próprios envolvidos buscam uma solução para o problema que os aflige — como no caso da negociação e da mediação) ou pela via adversarial (quando um terceiro — juiz ou árbitro — é chamado para colocar fim ao litígio). Impõe-se, pois, compreender a gênese e a evolução dos conflitos para bem administrá-los, uma vez que eles são inerentes ao ser humano.

1.1. Causa dos conflitos

Mudança é toda e qualquer modificação da realidade.

A mudança, ou a perspectiva dela, conduz ao conflito (ainda que nem toda mudança ocasione um conflito). Ela é a causa-raiz de todos os conflitos familiares, organizacionais, societários, comunitários, internacionais etc. Quando algo (uma força da natureza, um acontecimento) ou alguém intervém em um sistema — que pode ser desde um indivíduo até uma sociedade completa —, surge uma mudança e, consequente a ela, algum tipo de conflito.

Diferentes elementos podem estar envolvidos em uma mudança e, dependendo de quais são eles e das características pessoais dos envolvidos, será a natureza do conflito. Esses elementos podem ser:

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— bens, compreendendo patrimônios, direitos, haveres pessoais etc.;

— princípios, valores e crenças de qualquer natureza, inclusive políticas, religiosas, científicas etc.;

— poder, em suas diferentes acepções;

— relacionamentos interpessoais;

— afeto, status etc.

Efetivamente, mais de um desses elementos encontram-se, normalmente, presentes em um conflito, porque os acontecimentos não ocorrem isolados.

Na separação litigiosa entre Márcia, uma jovem economista, e Roberto, um industrial bem-sucedido, a esposa empenhou-se em uma batalha para obter a posse de diversos bens de elevado valor; ele insistiu em direitos relacionados com o acesso à companhia do único filho do casal.

O exemplo demonstra que as situações de conflito não são, via de regra, simples — nem quanto à condição presente, nem quanto aos processos complexos que conduziram a ela, nem quanto às consequências futuras, das quais pouco ou nada se pode prever (SUAREZ, 2002, p. 78). Os elementos envolvidos no conflito estão, muitas vezes, distantes de serem comparáveis entre si, porque valores emocionais, além dos econômico-financeiros, encontram-se presentes para compor a complexa equação que promove (quando possível) a satisfação dos envolvidos ou, ao menos, uma solução aparentemente justa.

Vera, caixa de supermercado, foi baleada durante assalto ao estabelecimento. Isso lhe custou 23 dias de vida, internada em UTI, e seis difíceis meses de recuperação. O acontecimento teve dois importantes desdobramentos. O esposo, fortemente ligado a ela e propenso ao alcoolismo, descontrolou-se a ponto de ser necessária sua internação hospitalar para desintoxicação; os dois filhos menores tiveram que ser cuidados pela avó, que se desdobrou entre os netos e a filha, perdendo, estes, o ano escolar. A reconstrução da família somente foi possível com cinco longos e custosos anos de atendimento psiquiátrico e psicológico, para neutralizar os efeitos do estresse pós-traumático. O marginal, deixado em liberdade após curto período de detenção, foi morto seis meses depois quando praticava assalto a um senhor idoso.

No mínimo, em uma situação de conflito, compreende-se, tradicionalmente, que alguém tem que mudar e alguém deverá pagar um preço por essa mudança: o que terá de ser modificado, qual deve ser esse preço, como e quando deve ser pago são questões cruciais que precisam ser esclarecidas, compreendidas e resolvidas. Isso acontece em um divórcio, em um acidente de veículo, em uma prestação de serviços, em uma disputa societária, uma tentativa de homicídio, um assalto etc. A palavra-chave é, sempre, mudança.

A mudança, entretanto, assinala Acland (op. cit., p. 120), origina-se na mente de pessoas e repercute nas mentes de outras pessoas. Não se pode controlar as mentes, as percepções que elas originam, mas é possível controlar os processos por meio dos quais as pessoas tomam contato com as proposições de mudanças (essa questão será mais bem esclarecida no capítulo dedicado ao estudo das funções mentais superiores).

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Não se trata, portanto, apenas de impedir conflitos, o que seria excelente se pudesse ser feito nas situações em que ocorre violência física (como aconteceu com Vera) ou psíquica (como envolve o litígio entre o casal Márcia e Roberto). A questão é administrá-los, para benefício dos envolvidos, tendo em vista que se trata de um processo interacional entre duas ou mais partes em que predominam relações de antagonismo.

Entendendo-se o conflito como um processo, compreende-se que, na medida em que ele evolui e se consolida, por meio de múltiplas interações entre as partes, pode ocorrer um agravamento gradativo, fazendo com que as partes terminem aprisionadas pelo conflito por elas mesmas engendrado. Esquemas rígidos de pensamento e pensamentos automáticos, conceitos extraídos da psicologia e que serão adiante estudados, estarão presentes nessa cristalização de comportamentos.

O processo conflitivo constitui “uma incompatibilidade que nasce, cresce, desenvolve-se e às vezes pode morrer, às vezes pode simplesmente estacionar” (SUAREZ, op. cit., p. 75) e que se constrói entre as partes, com “envolvimento e não necessariamente consentimento”. Isso é muito claro quando se trata de algo corriqueiro, como, por exemplo, um choque entre veículos.

Karina, uma rica proprietária de um automóvel “do ano”, e Gersino, pintor autônomo, dono de uma pick-up em eterno final de vida útil, envolveram-se em um acidente de veículos. Ela, naturalmente, coberta por um seguro bastante abrangente; ele, sem qualquer proteção contra acidentes, além da imagem de São Cristóvão no painel. Karina colidiu com a traseira do carro de Gersino em uma noite chuvosa; ela, dirigindo na velocidade habitual; ele, com as lanternas traseiras do veículo demasiadamente enlameadas para que se tornassem visíveis.

Em um acidente como esse, envolvendo Karina e Gersino, compreende-se que as partes poderiam resolver a questão no instante do acontecimento, ou levar o caso à Justiça; também poderiam entrar em uma escalada emocional que conduzisse à transformação do conflito, evoluindo de uma simples colisão para, por exemplo, um homicídio. Essa evolução dependerá da maneira como ocorrerem as interações entre as partes, isto é, as comunicações.

As interações são comunicações, conscientes ou não, que envolvem conceitos e valores a respeito das ideias e situações que o conflito envolve. Tais ideias desenvolvem esquemas de pensamento, mais ou menos rígidos, com uma série de desdobramentos. Essa questão será estudada no capítulo a respeito de comunicação e trata-se de conceito essencial para a compreensão dos mecanismos mentais que cercam os conflitos.

Notas:

(1) Folberg e Taylor (op. cit., p. 40) distinguem estrutura de conflito, situação de conflito e conflito manifesto.

Para esses autores, existe uma estrutura de conflito quando se fazem presentes interesses que têm a tendência a opor-se de maneira recíproca. Partidos políticos

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em uma assembleia; casais em que o marido e a mulher nutrem ódio recíproco são exemplos típicos; sociedades com desequilíbrios de valores éticos e morais etc.

Situação de conflito refere-se à condição em que esses interesses, aptidões e poderes encontram-se ativados. Tem-se o conflito em andamento. No âmbito familiar, isso se evidencia cotidianamente: qualquer detalhe basta para justificar uma contenda: um sapato deixado fora do lugar; a criança que chegou tarde à aula etc.

Finalmente, conflito manifesto é o conjunto de condutas específicas ou ações que indicam e compreendem o conflito — aquilo que dele se observa. Para Deutsch, esta condição representa o conflito aberto ou explícito; quando ele não é visível, trata-se do conflito oculto, implícito ou negado (idem, p. 41). Retomando o exemplo...

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