O Concurso Público e a Constituição de 1988

AutorAlice Ribeiro de Sousa
Ocupação do AutorAdvogada
Páginas59-85

Page 59

A Constituição Federal de 1988 é conhecida por ser analítica e extensa, ao mesmo tempo em que procura fundamentar suas disposições em um vasto espectro de princípios jurídicos, o que representa uma característica das Cartas sintéticas. Para além da discussão sobre o suposto caráter paradoxal de tal verificação, é importante identificar que os enunciados principiológicos em questão estabelecem sua aplicabilidade não apenas ao longo do Texto Constitucional, mas também por todo o sistema jurídico que orienta a República Federativa do Brasil.

O presente capítulo pretende apresentar um panorama do sistema principiológico adotado pela Constituição Federal de 1988, inclusive tratando do próprio conceito de princípio. A abordagem demonstrará o modo como os princípios são admitidos ao sistema constitucional, e como são utilizados para regular a aplicação das normas. Em um terceiro momento, os princípios constitucionais aplicados aos concursos públicos, sejam eles expressos no Texto Constitucional ou nele insertos de modo implícito, merecerão análise.

Em face da vastidão dos princípios jurídicos invocados pelo Texto Magno, é necessário focalizar aqui aqueles que importam ou guardam relação com o objeto de estudo, preocupação esta que orientará a enunciação a ser realizada doravante.

2. 1 Princípios jurídicos e princípios constitucionais

Antes de qualquer digressão sobre o sistema principiológico trazido pela Constituição Federal, é conveniente realizar um estudo prévio acerca dos conceitos que envolvem os próprios princípios.

Page 60

Para José Afonso da Silva, a nomenclatura princípio não foi bem escolhida, porque remete ao início, ao começo de algo. O equívoco resta claro, por exemplo, quando se observam os nomes dados às normas de princípio institutivo e às de princípio programático. Na verdade, a conceituação de tais normas refere-se à sua função dentro do sistema constitucional, em nada se referindo à sua origem.121Logo em seguida, o autor remete-se à definição de princípios dada por Celso Antônio Bandeira de Mello, para quem o princípio é “mandamento nuclear de um sistema”, que funciona como sua base, e que tem como condão irradiar-se, exercendo sua influência em diversas outras normas, de modo a fundamentar tanto a sua criação quanto a sua interpretação e aplicação. O princípio é dotado desta habilidade justamente porque estabelece o modo de pensamento lógico a ser empregado dentro do sistema jurídico, desta forma, harmonizando-o. Assim, o princípio se presta também à organização de todos os elementos jurídicos que circundam o sistema positivado.122De acordo com esse raciocínio, para Celso Antônio Bandeira de Mello a violação a um princípio reveste-se de gravidade muito maior que a violação a uma norma, tendo em vista que, quando o princípio é violado, todo o sistema jurídico sofre abalo.123Assim, os encarregados de interpretar e aplicar a norma devem se preocupar sobremaneira com a observância dos princípios, especialmente os constitucionais, de forma a assegurar o funcionamento e a confiabilidade do sistema jurídico como um todo.

Em idêntico diapasão, Francisco Lobello de Oliveira Rocha reconhece a necessidade de ser feita a diferenciação entre princípios, postulados e regras de direito enquanto espécies de normas. Tal necessi-dade é derivada não do simples desejo de oferecer uma classificação

Page 61

adequada, mas do objetivo de dar tratamento diverso a fenômenos que realmente são distintos.124Citando lições de Roberto Ferraz, o autor alerta para a necessidade de reconhecimento quanto ao caráter universal, imutável e genérico dos princípios, bem como a natureza restrita, pontual e específica das regras, de modo que não se confira a um o tratamento devido apenas ao outro, sob pena de uma indevida sacralização da Constituição ou relativização de princípios magnos.125De maneira mais técnica, o autor toma emprestadas definições apresentadas por Humberto Ávila, para quem os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade. Diante disso, a aplicação dos princípios estaria sempre a demandar uma avaliação de correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção. As regras, por sua vez, são entendidas como normas imediatamente descritivas, prima-riamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência. Assim, para sua aplicação exige-se a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte e nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes.126As referidas definições são de importância incontestável no estudo da matéria dos concursos públicos, eis que o sistema jurídico brasileiro contém pouquíssimas regras com vistas a disciplinar diretamente a matéria. Assim, o assunto tem recebido maior atenção da doutrina e jurisprudência, que tendem a enunciar normas de cunho principiológico.

Feitas tais constatações, é possível tratar especificamente dos princípios voltados à instituição do concurso público. Observa-se primariamente que são eles também os princípios que fundamentam a existência

Page 62

e atuação da Administração Pública brasileira, razão pela qual é seguro afirmar que a seleção dos agentes públicos por meio dos concursos públicos representa um dos pilares em que se sustenta o Estado Demo-crático de Direito tal como é conhecido.

2. 2 Princípios aplicáveis ao concurso público

Viu-se que a Constituição Federal confere uma alta carga principiológica à disciplina dos concursos públicos, tanto que se fez possível a aplicação do instituto por reiteradas vezes sem que existisse um arcabouço de regras a ele especificamente voltado. Tais princípios, entretanto, não são expressamente voltados à instituição dos concursos públicos; antes, são aplicados diretamente à própria Administração Pública e apenas reflexamente aos concursos públicos.

Exemplo manifesto disso é o princípio da isonomia. Luciano Ferraz ensina que o concurso público representa nada mais que “expressão concreta do princípio da isonomia” e é indispensável à República.127No entanto, o enraizamento do referido princípio dentro da Administração torna-o fundamento de todos os demais institutos próprios do Poder Público e o torna vasto demais para ser apreciado detidamente em uma obra que tem por objeto apenas um desses institutos.

É razoável dizer que a análise de toda matéria deve passar por seus fundamentos principiológicos, sob pena de ser feita de maneira incompleta ou mesmo equivocadamente alicerçada. A estrutura em que o sistema jurídico-administrativo brasileiro dos concursos públicos mostra-se afixada torna tal análise ainda mais importante, uma vez que quase não há regras a ele referidas. Assim, o assunto acha-se abalizado quase que exclusivamente pelas orientações principiológicas analisadas ao longo do presente capítulo.

2.2. 1 Princípio da legalidade

O princípio da legalidade constitui a base jurídica não apenas do instituto do processo administrativo, mas também, e principalmente,

Page 63

do próprio ramo da ciência jurídica conhecida como Direito Administrativo – porque relacionado intimamente à instalação, vigência e devido funcionamento de um Estado Democrático de Direito.

Celso Antônio Bandeira de Mello assinala que o princípio da supremacia do interesse público é indispensável à existência de qualquer Estado, qualquer organização de poder que seja dotada de soberania e que se caracterize pela apresentação dos elementos próprios de pessoa estatal. No entanto, o princípio da legalidade só poderá existir em um contexto oportunizado pelo Estado de Direito, ou seja, aquele Estado que prime pela fixação de leis e determine a sua obediência, aplicando punições contra aqueles que as descumprirem – sejam eles quem forem, inclusive se isto significar a punição de órgãos e entidades componentes do próprio Estado. Assim, como não poderia deixar de ser, o princípio da legalidade qualifica e identifica o Estado de Direito.128

O autor ainda aponta a relevância do fato de o Estado de Direito haver possibilitado a formação do Direito Administrativo, como uma consequência sua. Na verdade, a atividade administrativa pública tem como um de seus traços fundamentais a submissão às normas jurídicas que a orientam. Tem-se por conclusão o fato de que o exercício da Administração Pública não é mais do que a expedição de ordens destinadas a meramente complementar a vontade do legislador.129Não fosse assim, e o Estado compreenderia apenas uma classe de privilegiados com o poder e com o produto da arrecadação tributária, mas sem nenhum compromisso formalizado com a busca do interesse público.130Era esse mesmo o propósito a ser alcançado com o estabelecimento do Estado de Direito em lugar dos Estados Nacionais absolutistas: a busca da responsabilidade estatal frente à vontade da lei. O Poder Executivo passa a ser visto como um servo do interesse coletivo, que

Page 64

se faz enunciado nas normas jurídicas. Não cabe ao administrador inovar nesse universo, mas apenas promover uma interpretação adequada de tais normas, cumprindo o que estabelecem.

Assim é que, consoante explana Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da legalidade destina-se a combater todo tipo de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT