Concorrência desleal e segredos de fábrica e de negócio - análise do art. 195, XI, da lei da propriedade industrial (lei 9.279/1996)

AutorFlávia Parente
Páginas177-188

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I Introdução

O modelo económico definido na Constituição é fundado, dentre outros, no princípio da livre iniciativa, que constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 5° IV, da CF de 1988). Este princípio consiste no alicerce da ordem económica brasileira, sendo limitado pela livre concorrência, pela defesa do consumidor e pela função social da propriedade (art. 170 e seus incisos da CF de 1988).

A liberdade de iniciativa recebe da Constituição o reconhecimento do direito, titularizado por todos, de explorar, livremente, as atividades empresariais. A este direito corresponde o dever, imposto a todos, de respeitá-lo.

A livre concorrência, por sua vez, pressupõe a existência de dois elementos essenciais, quais sejam: a intervenção estatal nas relações económicas, com o fim de coibir eventuais abusos, de modo a preservar o livre jogo dos mercados, e a ho-nestidade na competição, com obediência às leis de mercado e às normas jurídicas que as disciplinam.1

Verifica-se que a livre concorrência encontra-se intimamente relacionada à ideia de competição honesta entre os empresários.

O principal objetivo da competição empresarial é a conquista de mercado, ou seja, o intuito de aumentar a clientela, fazendo concorrência às empresas dedicadas ao mesmo segmento de negócios. Empresários em competição desejam atrair consumidores, utilizando os mais variados recursos para cooptar a preferência de seus clientes na aquisição do produto ou do serviço que fornecem.

Na realidade, a competição é elemento presente tanto na concorrência lícita

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quanto na ilícita. São os meios empregados com finalidade de conquistar o consumidor que distinguem uma da outra, e a análise dos recursos utilizados irá identificá-las.2

Na conquista do mercado, os segredos de fábrica e os segredos de negócios, devido à importância estratégica no desenvolvimento das atividades empresarias, desempenham papel fundamental.

Os segredos de fabricação e de negócios sempre existiram, podendo ser encontrados na Literatura, desde a Antiguidade, vários exemplos relacionados à utilização de tais meios e processos sigilosos, como o do uso da pólvora, os segredos das corporações mercantis italianas e os decorrentes das "cartas de proteção" na Inglaterra.

No entanto, a competição, em si, constitui um fenómeno relativamente recente, pois somente após a Revolução Francesa é que a liberdade de concorrência foi consagrada, tendo o progresso industrial, verificado nos tempos modernos, conferido ao segredo de fábrica sua importância atual.

A concorrência desleal foi disciplinada pela primeira vez na Convenção de Paris, em 1883. De lá até os tempos atuais surgiram novas maneiras de praticar concorrência desleal, motivo pelo qual parece acertada a decisão dos legisladores de não defini-la, mas simplesmente vedar a prática das suas formas mais frequentes.

Nos dias de hoje surgem, cada vez mais, casos envolvendo "espionagem económica", em que são disputados os chamados "segredos empresariais".

Examinaremos, no presente trabalho, a utilização ilícita destes segredos, prevista no art. 195, XI, da Lei da Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996), que configura uma das hipóteses de crimes de concorrência desleal.

2. Concorrência desleal e propriedade industrial

A concorrência desleal está fundamentalmente relacionada com a propriedade industrial, podendo ser consideradas como "dois aspectos diversos das mesmas relações jurídicas",3 uma vez que: "O problema da concorrência desleal e de sua repressão só se impôs à consideração dos juristas, de modo mais agudo, nos tempos modernos, depois que o crescente progresso das indústrias e do comércio, aliado a outros múltiplos fatores que aqui não poderíamos examinar, deu lugar ao aparecimento de uma competição sem regras e sem limites, entre comerciantes e industriais, empenhados em obter vantagens cada vez maiores sobre seus concorrentes. A livre concorrência económica é consequência da liberdade de comércio e indústria e age como elemento do progresso económico de cada país. Mas degenera, transformando-se em agente perturbador desse progresso, quando os comerciantes e industriais, no afã de vencerem seus competidores, lançam mão de práticas e métodos ilícitos ou desleais. Daí a necessidade da intervenção do Estado para regulamentar a concorrência, coibindo os abusos da liberdade individual e mantendo a livre concorrência dentro de seus limites naturais".4

Para Gama Cerqueira a propriedade industrial pode ser definida como sendo "o conjunto dos institutos jurídicos que visam a garantir os direitos de autor sobre as produções intelectuais do domínio das indústrias e manter a lealdade da concorrência comercial e industrial".5

Conclui o autor que, ao mesmo tempo em que a repressão da concorrência desleal constitui o princípio da propriedade industrial, este último representa a concre-

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tização daquele princípio, no direito obje-tivo.6

No entanto, embora se reconheça que a propriedade industrial e a concorrência desleal possuem uma íntima relação, é importante ressaltar que, quaisquer que sejam os atos violadores dos direitos sobre bens intelectuais, não se confundem com os crimes de concorrência desleal.

Neste sentido destaca-se a lição de Pontes de Miranda: "Forremo-nos a toda assimilação dos atos de ofensa aos direitos sobre bens incorpóreos (direitos autorais, direitos oriundos de invenções, modelos de utilidade e desenhos e modelos industriais, direitos oriundos de sinais distintivos) a atos de concorrência desleal. As pretensões e ações que os protegem são independentes de qualquer elemento de concorrência desleal (...). A confusão levaria a contradições gritantes: primeiro, porque do direito de autor ou do direito oriundo da patente ou do registro é que se irradiam as pretensões e ações concernentes à propriedade intelectual e à propriedade industrial; segundo, a ação contra concorrência desleal é independente da existência de qualquer um daqueles direitos; finalmente, a ofensa àqueles direitos pode ocorrer ainda que não haja concorrência desleal, unfair competition"7 (grifamos).

As confusões que ocorrem entre estes institutos podem ser explicadas pelo fato de que algumas vezes a violação ao direito de propriedade industrial constitui também a prática de um ato de concorrência desleal. No entanto, nem toda prática desleal viola algum direito decorrente dos privilégios de que trata a propriedade industrial.

3. Concorrência desleal
3.1. Breve histórico no Brasil

A concorrência desleal passou a ser disciplinada, no Brasil, com a adesão à Con-venção de Paris e às revisões, a partir do ano de 1884 (promulgados, respectivamente: o Acordo de Paris, pelo Decreto Imperial 9.233, de 28.6.1884; as revisões de Madri, pelo Decreto 2.380, de 20.11.1896; de Bruxelas, n. 4.838, de 3.6.1903; de Washington, n. 11.385, de 16.12.1914; de Haia, n. 19.056, de 31.12.1929; de Londres; de Lisboa e de Estocolmo, n. 635, de 21.8.1992).

O art. 10 bis da Convenção de Paris está assim redigido: "Art. 10 bis. Os Países Contratantes serão obrigados a assegurar a todos os cidadãos dos países da União uma proteção efetiva contra a concorrência desleal. Constitui ato de concorrência desleal todo ato de concorrência contrário às práticas honestas em matéria industrial ou comercial. Deverão ser especificamente proibidos: 1-) todos e quaisquer fatos suscctíveis de criar confusão, qualquer que seja o meio empregado, com os produtos de um concorrente; 2U) as alegações falsas, no exercício do comércio, suscetíveis de desacreditar os produtos de um concorrente".

A primeira norma jurídica elaborada no país que se referiu, especificamente, à concorrência desleal foi o Decreto 22.989, de 28.7.1933, cuja natureza era administrativa. Mediante este decreto foi aprovado o Regulamento do Departamento Nacional da Propriedade Industrial, tendo sido incluída entre as matérias de sua competência "a repressão (...) da concorrência desleal" (art. 1-, "c").

Posteriormente foi promulgado o Decreto 24.507, de 26.6.1934, que disciplinava a concessão de patentes de desenho ou modelo industrial e instituía o registro do nome comercial e do título de estabelecimento. No art. 39 desse diploma legal foram enumerados oito atos que caracterizavam "crimes de concorrência desleal", ficando submetidos seus autores a sanção criminal. Foi, ainda, assegurado o direito dos prejudicados de haverem perdas e danos, que seriam calculados na forma do art. 41 do Decreto 24.507/1934. O legislador

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brasileiro inspirou-se, nitidamente, no texto unicionista, revisado em Washington.

O Código Penal Brasileiro, de 1940, praticamente repetiu, com o acréscimo de novas condutas reprimidas, o que havia sido estabelecido no Decreto 24.507/1934, dispondo sobre os crimes de concorrência desleal no seu art. 196, inserindo-os no capítulo dos crimes contra a propriedade imaterial.

O Código da Propriedade Industrial (Decreto-lei 7.903/1945), por sua vez, reproduziu, com pequenas modificações, o texto do Código Penal de 1940. O art. 2-estabelecia que: "Art. 2-. A proteção da propriedade industrial, em sua função económica e jurídica, visa reconhecer e garantir os direitos daqueles que contribuem para o melhor aproveitamento e distribuição da riqueza, mantendo a lealdade de concorrência no comércio e na indústria e estimulando a iniciativa individual, o poder de criação, de organização e de invenção do...

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