A indeterminação do conceito de intervenção humanitária

AutorPaula Spieler
CargoConsultora. Centro Brasileiro de Relações Internacionais. Professora da Graduação de Direito. Mestre em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais
Páginas150-174

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Embora a soberania continue a ser o princípio dominante nas relações entre os Estados, a internacionalização dos direitos humanos a partir de 1945 e a inserção gradativa de tal tema na agenda internacional possibilitaram, dentre outros fatores, o surgimento de ações que tivessem por finalidade a proteção dos direitos humanos, como é o caso da prática da intervenção humanitária no período pós-Guerra Fria. No entanto, tratar do tema intervenção humanitária não é uma questão fácil, pois o que constitui tal prática não é consenso entre os autores de relações internacionais (RI) e do direito. Sendo assim, embora o tema intervenção humanitária tenha feito parte da agenda internacional no período pós-Guerra Fria e se fale muito sobre a ocorrência de tal prática, seu conceito permanece sujeito a inúmeras divergências.

É importante ressaltar que o não consenso e a ambigüidade em torno do referido conceito está presente tanto na literatura de RI e do direito quanto nos discursos dos líderes mundiais. Como exemplo, destaque-se que o ex-Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, ressaltou que a intervenção humanitária abrangia todos os tipos de ações humanitárias “desde as mais pacíficas até as mais coercitivas”1. Em um discurso poste-rior, Kofi Annan ressaltou a necessidade de distinguir entre ações militares e ação humanitária.2

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Nesse sentido, almeja-se no presente trabalho analisar a falta de con-senso que há em torno do referido conceito na literatura de Relações In-ternacionais e do Direito. Para tanto, serão destacados sete elementos do referido conceito3: (i) o agente da intervenção; (ii) a necessidade ou não do uso da força; (iii) a postura do Estado-alvo em relação à ingerência externa;(iv) os beneficiários da intervenção; (v) as violações de direitos humanos que podem dar ensejo a uma intervenção humanitária; (vi) os objetivos da intervenção humanitária; (vii) o momento da intervenção. Optou-se por analisar os referidos elementos uma vez que são os que geram mais controvérsias entre os autores de Relações Internacionais e do Direito.

Conforme poderá ser constatado, alguns desses elementos estão pre-sentes expressamente nas definições adotadas pelos autores, ao passo que outros, embora essenciais para a compreensão do conceito de intervenção humanitária, não se encontram expressos na definição. Optou-se por não fazer distinção entre os mesmos uma vez que todos são igualmente fundamentais para o entendimento e análise do referido conceito. Com isso, é importante ressaltar que o objetivo do presente trabalho não é estabelecer um conjunto de critérios rígidos que definam intervenção humanitária, mas sim estimular a reflexão acerca da necessidade ou não de um haver um conceito rígido de intervenção humanitária.

1. O agente da intervenção: quem pode autorizá-la e realizá-la

Apesar de ser consenso entre os autores que o Conselho de Segurança (CS) tem o poder para autorizar as intervenções humanitárias, há divergên-cias quanto à possibilidade de existir outro agente com competência para autorizá-las. Na realidade, a idéia de que as intervenções humanitárias só serão legítimas caso forem autorizadas pelo CS é a posição majoritária na literatura de Relações Internacionais e do Direito4.

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Vilégio (liberdade) X A necessidade de autorização da intervenção hu-manitária pelo Conselho de Segurança como condição sine qua non da mesma tem por respaldo a Carta das Nações Unidas, mais especificamente o artigo 2.7 e o Capítulo VII. O artigo 2.7 estipula que o princípio da não-intervenção em assuntos domésticos “não prejudicará a aplicação das medidas coercitivas constantes do Capítulo VII”. O Capítulo VII, por sua vez, dispõe que o Conselho de Segurança determinará “a existência de qualquer ameaça à paz... e fará recomendações ou decidirá que medidas deverão ser tomadas... a fim de manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais” (art. 39). Sendo assim, a Carta da ONU estabelece o Con-selho de Segurança como único órgão capaz de autorizar o uso de força militar para restaurar a paz e a segurança internacionais (art. 42).

Contudo, alguns autores ressaltam que tal órgão deve ser reformado tendo em vista que sua estrutura e procedimentos refletem a ordem mun-dial de 19455. Nesse sentido, seria necessária uma reforma estrutural para limitar o uso do poder de veto pelos membros permanentes e para aumentar a representatividade e transparência das deliberações do Conselho de Segurança, o que refletiria, por conseguinte, no aumento da legitimi-dade das ações de tal órgão. Tal entendimento está em consonância com o relatório da Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal (ICISS), o qual afirma a necessidade dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança concordarem em não exercerem o poder de veto para barrar uma resolução que tem apoio da maioria e visa acabar ou prevenir “uma crise humanitária significativa...onde [seus] interesses nacio-nais vitais não estejam envolvidos”6.

Nessa linha, e reconhecendo que o CS já falhou no passado, a ICISS sugere que o mesmo deve estabelecer os princípios que determinarão quando uma intervenção militar é justificável com base humanitária7. De acordo com a ICISS, um conjunto de princípios faria com que o Conselho de Segurança funcionasse melhor, evitando situações nas quais os Estadosmembros discordem quanto à autorização ou não do uso da força para pôr fim a uma crise humanitária.

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Esta idéia de estabelecimento de princípios foi exposta em primeiro lugar pelo Reino Unido. Em 1999, o Secretário britânico das relações exte-riores, Robin Cook, instruiu especialistas em intervenção humanitária para criarem um documento com as diretrizes da mesma, documento este que circulou entre os outros Estados-membros permanentes do CS8. Embora o documento não tenha se tornado público, é possível ter idéia de seus prin-cipais aspectos pelo discurso proferido por Cook em julho de 20009.

No entanto, Nicholas Wheeler ressalta que o estabelecimento de princí-pios não garantiria que o CS responderia às crises humanitárias de uma forma efetiva e unificada. Isto porque o consenso nos princípios não lida com a causa originária do problema: o desacordo entre os cinco Estadosmembros permanentes com poder de veto10. Nesse sentido, a existência de um documento acordado na época de Kosovo, por exemplo, não seria capaz de resolver o desacordo entre os cinco membros. Ademais, afirma Wheeler, a mesma resposta se pode dar ao relatório da ICISS: sua proposta de restringir o uso do poder de veto também não lida com a causa basilar da divisão de posições no caso Kosovo.

Com isso, Wheeler não quer dizer que não há valor algum em tentar atingir um consenso acerca dos critérios no CS. O autor reconhece que tal consenso providenciaria um arcabouço comum para decidir a questão de intervir ou não. No entanto, há que se ater ao fato de que a existência de cri-térios em comum não criaria necessariamente uma consistência na decisão, uma vez que interesses e poder sempre estão envolvidos na mesma11.

Já Adam Roberts12 sustenta que apesar da autorização do Conselho de Segurança ser necessária, uma confiança completa em tal órgão pode ser problemática por três razões de cunho moral e prático. A primeira diz respeito ao caso Kosovo, pois as alegações de ilegalidade da prática nãoPage 154absolvem aqueles que tinham a responsabilidade moral de agir. Em se-gundo lugar, a ONU não é ainda um governo mundial e tem competência rudimentar (legal e prática) para intervir em crises domésticas. De fato, o Conselho de Segurança ainda carece de um conjunto de critérios bem definidos para tratar da questão de intervenção humanitária. E, em terceiro lugar, por mais que o objetivo principal do Conselho de Segurança seja zelar pela ordem internacional, o comportamento de Estados-membros do Conselho não está na prática em conformidade com tal finalidade. Soma-se a isso o fato de muitos Estados considerarem tal órgão como não represen-tativo da vontade internacional.

Por outro lado, há autores que consideram que além do Conselho de Segurança, outros agentes também têm legitimidade para autorizar uma intervenção humanitária. James Mayall13, por exemplo, sustenta que as ações unilaterais podem ser mais efetivas e tomadas com a celeridade necessária, em especial se forem realizadas por potências regionais que consigam equilibrar conhecimento e capacidade. De acordo com ele, o caso da Somália deixa claro que dificilmente haverá apoio externo para intervir sem que haja um forte interesse político em jogo14. Ademais, o relatório do ICISS sugere que a possibilidade futura de intervenção uni-lateral pode demonstrar ao Conselho de Segurança que ele terá sua auto-ridade reduzida caso falhe em efetivar sua responsabilidade em situações de graves crises humanitárias15. No entanto, Robert Johansen16 alerta para o fato de que intervenções unilaterais podem na verdade ter por principal objetivo satisfazer interesses nacionais. Por esse motivo, Johansen é contra intervenção unilateral, mesmo quando o Conselho de Segurança não tiver sido capaz de agir.

Stanley Hoffmann17, por sua vez, sustenta que além da intervenção humanitária poder ser unilateral sempre que a ONU for incapaz de lidar com determinado assunto, ela também poderá ser autorizada por uma or-ganização regional, como a OEA (Organização dos Estados Americanos) e a UA (União Africana). Como exemplo de intervenção realizada por uma organização regional, destaque-se o caso de Kosovo, em que a intervençãoPage 155foi...

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