Em defesa da validade e eficácia da cláusula compromissória monografia de conclusão da disciplina teoria geral do processo

AutorGustavo Fontes Valente Salgueiro
Páginas328-367

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Introdução

A arbitragem1 é um método alternativo de solução de controvérsias por meio do qual pessoas capazes de contratar voluntariamente nomeiam, através de uma convenção privada, um ou mais árbitros de sua confiança para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, sendo a decisão arbitral vinculante2 para elas e destinada a adquirir a mesma eficácia de uma sentença judicial.

Passados mais de dez anos de vigência da Lei nº 9.307/96, o presente trabalho propõese a revisitar os fundamentos constantes do julgamento do Agravo Regimental na Sentença Estrangeira nº 5.206-7, Reino da Espanha, quando o Supremo Tribunal Federal apreciou incidentalmente a constitucionalidade de diversos dispositivos da lei em face da garantia da inafastabilidade da tutela jurisdicional insculpida no art. 5º, inc. XXXV, da Constituição Federal.

No primeiro capítulo, irá se traçar um breve histórico da evolução deste princípio nas sucessivas Constituições brasileiras, buscando delimitar, de forma sucinta, seus contornos básicos.

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No segundo capítulo, serão expostas algumas das razões que contribuíram para a retomada do interesse pelos métodos alternativos de solução de conflitos, especialmente da arbitragem, nos Estados Unidos e no Brasil.

Em seguida, serão descritas as características da arbitragem, no Brasil, antes e depois do advento da Lei nº 9.307/96 e, no capítulo subseqüente, se fará uma síntese do julgamento do Agravo Regimental na Sentença Estrangeira nº 5.206-7, privilegiando-se a exposição dos fundamentos do voto do eminente ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, que declarava a inconstitucionalidade de alguns dos dispositivos da Lei de Arbitragem.

No quinto capítulo, cerne deste trabalho, serão refutados os argumentos levantados contra a constitucionalidade dos dispositivos da Lei de Arbitragem questionados, para tentar demonstrar que a lei não viola o direito de ação assegurado no art. 5º, inc. XXXV, da Constituição Federal.

Por fim, a conclusão.

O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional como postulado democrático

O Direito é um fenômeno social, em constante evolução e adaptação às mudanças verificadas na sociedade, ora sendo condicionado por elas, ora influenciando tais mudanças. Como outros princípios hoje consagrados nos ordenamentos jurídicos modernos, o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, também referido como princípio do direito de ação3 ou princípio do acesso à Justiça, foi gradativamente ganhando conteúdo e forma nos países das famílias da common law e civil law ao longo do tempo.

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Na história contemporânea mais recente, tem especial relevância a Declaração Universal dos Direitos do Homem, promulgada pela Organização das Nações Unidas em 1948, que estabelece em seu art. 8º que “todo homem tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela Constituição ou pela lei”.4

No Brasil, a questão da constitucionalidade da arbitragem adquire importância a partir de 1946, quando a Constituição então promulgada passou a consagrar, expressamente, o direito à jurisdição em seu art. 141, § 4º, segundo o qual “a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual.” Esta previsão seria repetida, ipsis litteris, no art. 150, § 4º, da Constituição Federal de 1967, e nas Cartas subseqüentes, ora com maior, ora com menor amplitude.

Nos anos de ditadura militar a garantia de inafastabilidade da prestação jurisdicional sofreu grave abalo, por força do Ato Institucional nº 5/68, que em seu art. 11 estabelecia que “excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos.” A Emenda Constitucional nº 1, de 1969, representou um ataque ainda maior à garantia do acesso à Justiça. Isso porque, embora tenha mantido a redação original do § 4º do art. 150 da Constituição de 1967, então renumerado para art. 153, ela expressamente excluiu da apreciação judicial os atos praticados pelo Governo Federal com base nos atos institucionais e nos atos complementares e seus efeitos, assim como as normas expedidas com fundamento nestes mesmos atos normativos (art. 181 da CF/67, com a redação dada pela EC 1/69). Posteriormente, a Emenda Constitucional nº 7, de 1977, deu nova redação ao § 4º do art. 153 da Constituição de 1967, quando então se passou a admitir, com fundamento constitucional, o prévio exaurimento das instâncias administrativas como condição de acesso ao Poder Judiciário.5

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Retomado o regime democrático com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a garantia da tutela jurisdicional efetiva foi positivada no art. 5º, inc. XXXV, da Carta da República. Inserido no capítulo relativo aos direitos e deveres individuais e coletivos, o dispositivo constitucional em questão assegura que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

É perceptível a preocupação do constituinte de 1988 de não limitar a garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional à tutela individual, de modo que não só eliminou a menção existente nas Constituições anteriores a “lesão de direito individual”, como também a inseriu no capítulo relativo aos “direitos e deveres individuais e coletivos”, garantia esta que nas Constituições anteriores estava contida no capítulo dos “direitos e garantias individuais”. Além disso, pretendeu o constituinte de 1988 reforçar a tutela jurisdicional preventiva, ao prever a possibilidade de se reclamar proteção contra mera ameaça a direito, cuja violação ainda não se consumou.

É relevante ressaltar, ainda, que nos termos do § 1º do art. 5º da Constituição Federal “as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”, de modo que a falta de norma infraconstitucional que regule o gozo ou exercício de direitos ou garantias fundamentais não pode servir de pretexto para a sua denegação.

Embora o destinatário principal da garantia prevista no art. 5º, inc. XXXV, da Carta da República seja o legislador, é inegável que o comando constitucional dirige-se ao Estado genericamente considerado, assegurando para todos, indistintamente, o direito genérico de deduzir qualquer pretensão em Juízo (isto é, o direito de demandar), ainda que esta hipotética pretensão não mereça a tutela jurisdicional pretendida, segundo as regras de direito material aplicáveis ao caso concreto, e venha a ser repelida.

Mas, conforme ressalta LEONARDO GRECO, a garantia do acesso à Justiça não se limita apenas ao direito de demandar, pois engloba também o direito de defesa daquele que é demandado. Em estudo específico sobre as garantias inerentes ao processo justo, o professor sintetizou os contornos do princípio do acesso à Justiça nos seguintes termos:

Todas as pessoas naturais e jurídicas, independentemente de qualquer condição, têm o direito de dirigir-se ao Poder Judiciário e deste receber resposta sobre qualquer pretensão. Este é um direito que todos devem ter aPage 332possibilidade concreta de exercer, para a tutela de qualquer direito ou posição de vantagem, inclusive os de natureza coletiva ou difusa, tanto nas relações entre particulares como naquelas entre particular e o Estado, pois sem ela perdem os cidadãos a possibilidade de viverem em sociedade sob o império da lei. O art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem de 1789 já estabelecia, com acerto, que 'toda sociedade na qual a garantia dos direitos não é assegurada (...) não tem Constituição.' Segundo JAVIER BARNES VASQUEZ, a garantia da tutela jurisdicional efetiva não é mais do que a conseqüência necessária da própria noção de Estado de Direito e da proscrição da auto-tutela. A consagração desse direito em face do poder público é freqüentemente apontada como a forma mais genuína e importante desse direito. A garantia do acesso à Justiça não se esgota no direito de provocar o exercício da função jurisdicional, mas abrange também o direito de defesa, ou seja, o direito de ser ouvido e de influir eficazmente na atividade jurisdicional por parte daquele em face do qual foi ela desencadeada.6

Em conclusão, pode-se afirmar que, ao tipificar como crime o exercício arbitrário das próprias razões no art. 345 do Código Penal,7 o Estado brasileiro não só veda a auto-tutela, cujo exercício somente é admitido em situações excepcionalíssimas, como também (e principalmente) avoca para si o monopólio8 da função jurisdicional. Por outro lado, ao auto-Page 333proclamar-se um Estado Democrático de Direito, o Estado brasileiro assume o dever e o ônus de proporcionar a todos a inafastabilidade da tutela jurisdicional efetiva ou, em outras palavras, o mais amplo acesso à Justiça.

Este trabalho pretende analisar se o fato da existir cláusula compromissória em um determinado contrato afastar a jurisdição estatal, na hipótese de qualquer dos contratantes pretender valer-se da via da arbitragem para solução de conflito decorrente do contrato, viola a garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional, atualmente prevista no art. 5º, inc. XXXV, da Constituição Federal.

O “ressurgimento” da arbitragem e dos demais métodos alternativos

A arbitragem é um dos mais antigos institutos jurídicos de que se tem notícia, “utilizada pelos povos desde a mais remota antiguidade, quando a desconfiança recíproca e as diferenças de raça e religião tornavam precárias as relações entre os povos”,9 cujas origens remontam à Grécia antiga. Por sua vez, a conciliação e a mediação...

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