Negociação Coletiva e o Pluralismo do Direito do Trabalho: Algumas Questões Contemporâneas

AutorAmauri Mascaro Nascimento - Marcelo C. Mascaro Nascimento
Ocupação do AutorAdvogado. Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP. - Advogado. Mestre em Direito pela USP.
Páginas236-246

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Sob diversos aspectos, o ramo do Direito do Trabalho diferencia-se em relação às demais dogmáticas jurídicas. Uma das mais interessantes singularidades que marca a autonomia e a especificidade do juslaboralismo diz respeito ao pluralismo de suas fontes normativas.

Rompendo com os preceitos sustentados por um positivismo jurídico mais formal e estático, que consagrava não só a primazia, mas quase a exclusividade das leis em sentido formal como fonte do direito, a regulação das relações de trabalho trará importantes modificações para essa maneira de compreender as normas jurídicas.

Com efeito, a legislação trabalhista, que surge historicamente com o objetivo declarado de proteger os trabalhadores hipossuficientes, por meio da regulação da produção e da limitação do poder econômico, começa a conviver com outras formas de normatividades.

De início, o Direito do Trabalho é estruturado a partir da relação jurídica fundamental existente entre trabalhador e empregador, sendo, portanto, decorrência de um tipo específico de contratação de prestação de serviços, eminentemente de natureza civil.

No entanto, com o surgimento de um movimento trabalhista e sindical mais articulado, que se constitui a partir da contestação das péssimas condições de trabalho e das jornadas extenuantes herdadas do primeiro período da Revolução Industrial, esse cenário começa a passar por mudanças fundamentais.

A afirmação de grupos sociais que, em suas interações recíprocas individuais e coletivas, passam a produzir normas é um dado fundamental para compreender a natureza social do Direito do Trabalho.

Nas relações coletivas, os sujeitos são os grupos de trabalhadores e de empregadores, representados, em regra, pelos sindicatos profissionais e patronais, apresentando-se como relações intersindicais. São coletivas as relações entre sindicatos de trabalhadores e, diretamente, uma empresa, ou mais de uma empresa. Quando o sindicato representa os trabalhadores da empresa perante esta, sem a intermediação do sindicato patronal, estar-se-á diante de uma relação coletiva. O sindicato pode representar interesses dos trabalhadores de uma única empresa e, quando o faz, trata-se de uma relação coletiva, uma vez que o grupo, e não cada trabalhador, é o representado.

As relações coletivas, que podem ser vistas como uma nova dimensão do Direito, complementam as relações individuais. Desempenham uma função

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ordenadora das relações individuais. Criam normas gerais e instituem obrigações. São, portanto, integrativas dos ordenamentos jurídicos, enquanto as relações individuais não têm o mesmo escopo constitutivo, embora da autonomia individual possam resultar acordos individuais, fundados no princípio contratual do pacta sunt servanda. A dimensão constitutiva e normativa das relações coletivas é ampla e genérica, enquanto a das relações individuais é restrita e concreta à esfera do individual. Das relações coletivas, podem resultar convenções coletivas de trabalho. Das individuais, decorrem contratos individuais de trabalho, ajustes negociais, dos quais resultam cláusulas do contrato individual de trabalho, denominadas, no Direito do Trabalho, de normas e condições de trabalho, denominação que tem a finalidade de realçar o aspecto material, mais do que o formal, do contrato de trabalho.

As relações coletivas têm, ainda, finalidade compositiva dos conflitos coletivos. Paradoxalmente, são relações que podem ser de conflito. Delas nasce o conflito e pode surgir, também, a solução do conflito. Daí a sua fisionomia dupla, conflitiva e pacificadora.

Diante desse cenário complexo de multiplicidade de sujeitos e interesses, as leis em sentido formal, sempre abstratas e universais, acabam demonstrando suas insuficiências para dar conta de um universo diverso das relações de trabalho que vai surgindo a partir da realidade econômica das empresas e dos mercados de trabalho.

Daí existir, sem dúvidas, uma íntima ligação das reflexões doutrinárias sobre o Direito do Trabalho com outros campos do saber, como a Economia e a Sociologia. Talvez em nenhum outro ramo jurídico a importância das variáveis econômicas e dos indicadores sociais seja tão relevante para modular a efetividade da legislação.

Não à toa, diversos fatos que pertenciam mais ao mundo da Economia e da Política, como as greves e o chamado "custo-trabalho", migram para os debates em torno do Direito do Trabalho.

No presente artigo, nosso objetivo será refletir sobre as feições atuais da negociação coletiva, um procedimento típico do Direito do Trabalho que tem uma evolução bastante peculiar por conta da conturbada história política brasileira no século XX. A constante mudança entre regimes autoritários e democráticos, além da presença persistente do corporativismo enquanto forma principal de concertação social no campo das relações de trabalho, acarretou também oscilações no estatuto e no reconhecimento jurídico conferidos à prática da negociação coletiva. Ora vista como perniciosa à estabilidade e à ordem, ora vista como um importante capítulo de construção de uma vida associativa mais democrática, fato é que o Direito do Trabalho sempre teve de conviver com as negociações entre os atores sociais na defesa dos seus interesses.

De modo geral, pode-se dizer que as normas coletivas procuram suprir a insuficiência do contrato individual de trabalho. Cronologicamente, o contrato individual de trabalho posiciona-se, em relação às convenções coletivas de trabalho, como um antecedente, estas significando uma evolução natural daquele, passando a negociação de individual e singular - entre o trabalhador e o empregador - para coletiva - entre os órgãos representativos do trabalhador e o empregador.

Desse modo, no presente texto, a proposta é examinar como, na atualidade, está se dando a relação entre a legislação estrita e o plano coletivo das relações de trabalho. Em que medida está preservada a autonomia negocial no Direito do Trabalho? Quais os limites legais e convencionais para a livre estipulação das condições de trabalho? Qual o estatuto de importância conferida à negociação coletiva nesse cenário de recontratualização dos formatos de relações individuais de trabalho e de pluralismo jurídico?

Essas são algumas das questões examinadas a seguir.

O pluralismo jurídico como marca do direito do trabalho

A despeito de ser um tema transversal de teoria do direito, que envolve os diversos ramos dogmáticos, o pluralismo jurídico assume uma importância central no Direito do Trabalho.

Isso porque o pluralismo jurídico, compreensão do direito como fruto de uma produção normativa do Estado e também dos grupos sociais, beneficia a organização do sindicalismo e a potencialidade da negociação coletiva. Já o seu oposto, o monismo jurídico, ao defender que Direito é unicamente aquele emanado do próprio Estado, ao negar o reconhecimento de qualquer juridicidade a fontes não estatais, impediria completamente a efetividade de uma organização sindical livre, pois ficaria difícil (senão impossível) conciliar normas coletivas de trabalho com o monismo estatal.

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Não por outra razão, na história do pensamento jurídico, o pluralismo surgiu como uma reação contra a identidade entre o Estado e o Direito, levada ao máximo pelo monismo que esteve, historicamente, em forte associação com o positivismo jurídico.

Sem mencionar a versão medieval do pluralismo, sua formulação moderna tem raízes mais sólidas nas compreensões sociológicas do direito que colocaram em questão o excessivo legalismo dos países que desenvolveram uma obra codificadora, tendo como precursores Eugen Ehrlich (1862-1922) e Hermann Kantorowicz (1877-1940).

Na França, também foi fundamental para a valorização de fontes normativas não estatais o institucionalismo de Maurice Hauriou e de Georges Renard1.

Essa relação mais horizontal e recíproca entre os ordenamentos estatal e social moldará uma experiência jurídica mais aberta às novidades trazidas pelo pluralismo do Direito do Trabalho.

Um marco importante desse reconhecimento do pluralismo é a afirmação da teoria do direito social, que encontra em Georges Gurvitch (1894-1965) um de seus maiores expoentes. Ele afirma, em sua obra clássica Le temps présent et l’idée du droit social (1931) que "o estado atual do Direito do Trabalho é caracterizado, antes de mais nada, pelo papel crescente do direito extraestatal e inoficial que emana dos grupos espontâneos de interessados e os seus acordos". Exemplifica com a organização particular dos sindicatos, resultante dos costumes operários e, especialmente, das convenções coletivas de trabalho.

Mais recentemente, o pluralismo encontra em Norberto Bobbio e na sua teoria do ordenamento jurídico uma importante contribuição2. Bobbio considera insuficiente, para o conceito de direito, o estudo da norma jurídica, sustentando a necessidade de deslocar a análise para o ordenamento jurídico, o que implica levar em conta outros elementos jurídicos e não jurídicos para além da norma.

Dentre os juspensadores brasileiros, destaca-se o filósofo Miguel Reale com sua teoria sobre o tridimensionalismo do fenômeno jurídico e o direito como experiência. Sua formulação aponta que, embora o Estado seja detentor da legítima coação jurídica, existe direito, também, em outras instituições, tal como o grupo profissional ou sindical que regulamenta as atividades de classe e estabelece normas protegidas por sanções organizadas3.

Segundo essa perspectiva, pode-se afirmar que o fenômeno jurídico se perfaz a partir de quatro manifestações centrais do Direito: a legal, que resulta do poder estatal de editar leis; a...

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