A ação coletiva passiva na jurisprudência brasileira

AutorGustavo Viegas Marcondes
Ocupação do AutorBacharel em Direito pela Universidade Estadual Paulista (UNESP)
Páginas92-101

A despeito das divergências teóricas que cercam o efetivo cabimento da ação coletiva passiva no Direito brasileiro, parece-nos claro que, partindo-se da concepção de ação coletiva que propugnamos no presente trabalho1, as ações coletivas passivas, há bastante tempo, já são uma realidade incontestável na jurisprudência brasileira, ainda que não se as tenha designado expressamente como tais.

Tendo em vista a estrutura de conhecimento do litígio e efetiva entrega da prestação jurisdicional empregada pelos Tribunais, pode-se afirmar que, à míngua de uma regulamentação legislativa mais clara e particularizada, esses conflitos têm sido resolvidos pelo Poder Judiciário, sob um verdadeiro amálgama de Leis processuais.

Os casos concretos levados ao Poder Judiciário, no entanto, revelam uma estrutura de conflitos que, em última análise, não admitiria uma solução processual individualizada, uma vez que são, de fato, conflitos tipicamente coletivos. Não apenas por envolverem um grande número de sujeitos, ligados direta ou diretamente ao litígio, mas porque envolvem grupos cujos interesses se revestem de indivisibilidade e indeterminabilidade de titulares. O que se verifica cotidianamente é que existem cada vez mais conflitos multipartidários, protagonizados por grupos coesos, e não por uma mera aglutinação ocasional de indivíduos.

Tais grupos, com efeito, tanto causam, quanto sofrem lesões e ameaças de lesão a seus respectivos interesses jurídicos. Daí porque não há que se admitir uma modalidade especial de tutela jurisdicional apenas para aquelas hipóteses em que o grupo deduza uma pretensão, mas também para aquelas em que a pretensão seja deduzida em face do grupo, independentemente de se tratar de uma pretensão individual ou coletiva. O que importa é a qualidade da parte (o grupo) e o modo de entrega da jurisdição, ou seja, os efeitos subjetivos da coisa julgada.

Os exemplos são fartos: invasões de áreas urbanas e rurais por grupos ou entidades de luta pela reforma agrária; invasão de prédios públicos e privados por grupos defensores dos direitos dos “sem-teto”; danos ao patrimônio público e privado causados por torcidas organizadas; invasões de prédios e demais dependências de universidades pelos próprios estudantes; entre outros.

Em todas essas hipóteses há, no seio do grupo, os mesmos elementos agregadores que denotam os interesses coletivos lato sensu, de acordo com a definição do art. 81 do Código de Defesa do Consumidor, ou seja, os interesses próprios daquele grupo são, em linhas gerais, indivisíveis e indetermináveis.

O estudo dos casos concretos permite-nos deitar olhos sobre alguns dos pontos fundamentais do presente trabalho, especialmente no tocante ao adequado conceito de ação coletiva, o papel preponderante da representatividade adequada para as ações coletivas passivas e, por fim, o próprio cabimento e emprego da ação coletiva passiva no Direito brasileiro.

Veja-se, por exemplo, o caso dos conflitos agrários e fundiários, que envolvem proprietários de áreas rurais e grupos organizados de trabalhadores “sem terra”. Nessa modalidade de conflitos, a invasão, ou ocupação, de terras é uma prática corriqueira desses grupos, restando aos proprietários das áreas invadidas ou ocupadas os meios jurídicos adequados para a retomada da posse, ou para evitar o esbulho.

As ações possessórias não são ajuizadas individualmente em face de todas as pessoas que participam do ato. Por sua vez, as decisões de reintegração de posse ou interdito proibitório, quando deferidas, vinculam uniformemente todas as pessoas que se enquadrem naquela situação de sujeição, tenham elas participado da demanda, ou não.

Veja-se, nesse sentido, que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já se posicionou dessa forma ao julgar a apelação interposta em ação de interdito proibitório movida pela Prefeitura Municipal de Taboão da Serra2. A ação foi proposta em face do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e do Movimento Sem Teto de Taboão da Serra, tendo sido inicialmente extinta, sem exame do mérito, por ilegitimidade passiva, ante a ausência de personalidade jurídica própria de tais “movimentos”.

Reformando a decisão, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo não apenas reconheceu a legitimidade passiva dos referidos “movimentos”, como julgou procedente o pedido, assentando o entendimento de que a existência fática do grupo antecede sua formalização jurídica, devendo-se admitir a sua representação em juízo por aqueles que assim se apresentam.

Em que pesem as doutas opiniões em contrário, a arguição preliminar “... o Movimento (...) não possui personalidade jurídica própria...” (fls. 123 e 196) acolhida pela r. sentença “... os movimentos dos trabalhadores dos sem teto e dos trabalhadores dos sem teto de Taboão da Serra não detém personalidade jurídica, mas apenas personalidade judiciária.” (fls. 177) merece ser afastada.

Ora, tais 'movimentos', embora sejam sociedades não personificadas, possuem capacidade ativa e passiva nas relações jurídico-processuais. Irregular constituição porque não providos de personalidade jurídica não pode ser oposta em sua defesa (art. 12, VII, § 2º, do CPC).

Segundo ARAKEN DE ASSIS, a personalidade processual equipara-se à personalidade jurídica e o legislador foi atento à evidência de que grupos não

personalizados titulam direitos e obrigações. Para ele, “... as chamadas comunidades de fato e as organizações sociais por exemplo, o Movimento dos Sem-Terra (MST) têm personalidade processual.” (grifei “Manual da Execução” 13ª ed. Ed. Revista dos Tribunais 2010 p. 439).

Além do mais, inadmissível socorrer-se da própria torpeza a fim de se esquivar de eventuais responsabilidades. Esses movimentos (sem teto, sem terra, dentre inúmeros...

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