O Código Buzaid (CPC/1973) e o Código Reformado (CPC/1994-2010)

AutorFernando Rubin
CargoAdvogado. Mestre em Processo Civil (UFRGS). Professor da graduação e pós-graduação do Centro Universitário Ritter dos Reis (UNIRITTER)
Páginas28-35

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Temos com o presente ensaio o objetivo de analisar, em linhas gerais, a estrutura processual montada a partir de 1973 (publicação do último CPC, conduzido por Alfredo Buzaid), com as alterações que se seguiram até o presente momento (onda reformista ao Código originário).

Cientes de que estamos discutindo a possibilidade de entrada em vigor de um novo Código de Processo Civil (tendo já sido aprovado, pelo Senado, o Projeto 166 no recente dez./2010), importante retomarmos, em maiores detalhes, a estrutura que ora vige - até mesmo para podermos discutir, mais a frente e com maior embasamento, a respeito da necessidade de uma reforma ampla (que permanece sendo estudada no Congresso Nacional).

Desenvolveremos, portanto, nesta sede, o estudo da construção do CPC/1973 (substituindo o modelo anterior de 1939) e da construção do Código Reformado (reformas estruturais ao Código Buzaid incrementadas no período de 1994-2010) - tratando oportunamente de

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mencionar a grande tensão entre os princípios da efetividade e da segurança jurídica, os quais se figuram claramente como importantes fios condutores presentes nas reformas - sendo inclusive analisado se pela onda reformista há uma evidente inclinação na satisfação prioritária de um deles.

Ainda com o objetivo de ma-pear as características do diploma processual vigente, discorreremos a respeito dos pilares que sustentam o Código, quais sejam: o respeito ao princípio dispositivo, os limites à relativização da causa de pedir/pedido, e as matérias reco-nhecíveis de ofício; como também o sistema recursal; e, por fim, a técnica preclusiva.

A partir dessas grandes premissas cremos que uma análise mais ampla da problemática possa ser construída, auxiliando o estudo para melhor reflexão a respeito do sistema processual vigente e dos pontos negativos e positivos das reformas que vêm sendo implementadas.

2. O modelo do Código Buzaid

O Código Buzaid (CPC/1973), substituindo o modelo defasado de 1939, foi enaltecido desde o seu surgimento pela cientificidade de suas disposições. A partir dele, restou construído sistema coerente e racional, de acordo com a melhor doutrina e legislação alienígena - notadamente alemã e italiana -, embebidas nas concepções do Processualismo (corrente científica que destacava a autonomia do direito processual na Europa), vigentes no Velho Continente do final do século XIX e início do século XX1.

Destaca a melhor doutrina que o Código de 39 não espelhou o grau científico que o processo civil na Europa já havia alcançado, sendo, além disso, teórico demais, o que acarretava extrema complexidade na sua aplicação prática2; e que o Código de 39 acumulava termos ambíguos aplicados indistintamente a institutos e fenômenos processuais heterogêneos, tornando imprecisas muitas de suas conceituações e preceitos3. Por fim, com menção a discurso do próprio Buzaid, completando-se o rol de críticas ao Código de 39, foi apontado que o sistema processual pretérito mantinha uma série exaustiva de ações especiais (do art. 298 ao art. 807) e englobava processos de jurisdição contenciosa e voluntária, dispostos sem ordem, sem unidade, sem sistemática4.

Eis algumas das principais razões pelas quais se fazia importante a construção de um novel modelo processual, sendo, em 1964, entregue por Alfredo Buzaid o Anteprojeto do Código de Processo Civil - que viria, após muita discussão, a ser encaminhado ao Congresso Nacional em 1972, sendo sancionado no ano seguinte.

O Código Buzaid, efetivamen-te vigendo no Brasil desde 1974, restou dividido, em termos de esquema para tutela dos direitos, em processo de conhecimento, processo de execução e processo cautelar. A relativa autonomia dos títulos é evidente, cabendo destaque central ao processo de conhecimento, já que a execução e a própria medida cautelar mantêm vinculação direta com o resultado esperado daquele - tudo repercutindo na ordem lógica e cronológica seguida pelo Código. E dentro do processo de conhecimento, embora previsto o rito comum sumário, destaca-se o rito comum ordinário, especialmente projetado para prolação de sentença de mérito pelo Estado-juiz após cognição plena e exauriente - ultrapassadas, na sequência, a fase postulatória, saneadora e instrutó-ria5.

A respeito dessa estrutura geral montada pelo Código Buzaid, é oportuna a detida investigação elaborada por Daniel Mitidie-ro, em que, ao qualificá-lo como "individualista, patrimonialista, dominado pela ideologia da liberdade e da segurança jurídica", explicita que o rito comum ordinário do processo de conhecimento só permite a decisão da causa após amplo convencimento de certeza a respeito das alegações das partes; sendo que tal concepção formatada pelo Código presta tributo a uma das ideias centrais das codificações oitocentistas, qual seja, a certeza jurídica, imaginada a partir de expedientes processuais lineares e com possibilidade de amplo debate das questões envolvidas no processo6.

Tratemos, pois, de analisar, em maiores detalhes, os pilares que sustentam esse código processual - mencionando-se, nessa ordem, o respeito ao princípio dispositivo, os limites à relativização da causa de pedir/pedido, e as matérias re-conhecíveis de ofício; o sistema recursal; e a técnica preclusiva.

A própria posição do art. 2° do Código Buzaid revela a importância do princípio dispositivo para o sistema montado, vigente a partir da década de 70. O Estado-juiz não inicia o processo, cuja atribuição é da parte (cidadão) que se sentiu

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lesada no âmbito dos seus direitos, e que deve trazer ao Poder Judiciário a sua pretensão (pedido), como também os correspondentes fundamentos de fato e de direito (causa de pedir)7.

Confirma o art. 262 do Código Buzaid que o processo civil começa por iniciativa da parte, acrescentando, no entanto, que o feito desenvolve-se por impulso oficial. Ou seja, a parte requer a prestação jurisdicional (princípio dispositivo em sentido próprio ou material) e depois de proposta a demanda cabe ao Estado-juiz conduzir o processo para a rápida solução do litígio, inclusive propondo de ofício a produção de prova que entende necessária para dirimir a controvérsia (princípio dispositivo em sentido impróprio ou processual)8 - situação que não exclui, por óbvio, que as partes participem diretamente na condução do feito, requerendo ao juízo os impulsionamentos nos termos que, no entender de cada litigante, são mais apropriados (art. 125, II e art. 130, ambos do Código Buzaid).

Da passagem supra percebe-se que não há espaço no Código Buzaid para relativizações do princípio dispositivo, quando se refere ao ato vital de propositura da demanda, com a devida limitação pela parte da causa de pedir e pedido9 - eis a razão pela qual se defende que o princípio dispositivo em sentido próprio ou material representa o grande limitador para o agir do Estado-juiz no processo10. Quanto ao princípio dispositivo em sentido impróprio ou processual, já houve acompanhamento pelo Código Buzaid do contemporâneo pensamento mundial no sentido de que o impulsionamento do feito não deve ser deixado a cargo exclusivo das partes11, a fim de que iniquidades e demoras injustificadas se perpetuem no transcorrer do iter12.

Mas, se uma das marcas do Código Buzaid, no seu tradicional rito comum ordinário do processo de conhecimento, é a rigidez quanto à aplicação do princípio dispositivo em sentido próprio ou material, outra virtude flagrante de rigidez no procedimento vem insculpida no art. 264, ao impossibilitar a alteração da causa de pedir/pedido após o saneamento do feito13. Aparte final do dispositivo, ao deixar claro que "em nenhuma hipótese" será permitida a alteração dos limites da lide após o despacho saneador, inviabiliza, nesse estágio, a relati-vização da causa de pedir/pedido mesmo que o Estado-juiz e o próprio réu estejam de acordo com a medida.

Já quanto às matérias reconhe-cíveis de ofício, outra importante base do Código Buzaid, em ainda incipiente posição já se admite que o julgador, sem intervenção direta das partes, tome determinadas medidas oficiosas, desde que devidamente catalogadas. Tratam-se de matérias específicas apontadas expressamente pelo Código como de interesse "suprapartes", em que se admite então que o julgador possa sobre elas se manifestar de plano, sem requerimento específico dos litigantes - como a temática probatória, de acordo com a primeira parte do art. 130. Assim também, cabe menção ao art. 267, § 3° ao autorizar que o juízo conheça de ofício, em qualquer tempo e grau de jurisdição, as condições da ação e os pressupostos processuais14; ao art. 245, § único ao apontar que as nulidades absolutas não estão sujeitas às penas preclusivas15; e, mais recentemente, cabe registro ao art. 219, § 5 °16 ao anunciar que o juiz pronunciará, de ofício, a prescrição.

O Código Buzaid, observando dentro do possível os avanços científicos do processo civil mo-derno, vinha estruturado com uma fase ampla de conhecimento, com apêndices autônomos importantes (execução e cautelar); preocupava-se com a consagração do princípio do devido processo legal (ao prever fases bem nítidas e duradouras - postulatória, saneadora e instru-tória), previa com rigidez a forma de impulsionamento inicial do Judiciário (sempre a cargo da parte/ cidadão - princípio dispositivo em sentido próprio ou material), bem como estatuía com rigidez a impossibilidade de qualquer um dos atores processuais (partes e Estado-juiz) modificar a causa de pedir e pedido a partir do saneamento do feito, embrionariamente admitindo, no entanto, maior participação ativa do juiz no controle do processo - sendo previstas hipóteses legais de reconhecimento de ofício em matérias elencadas como de ordem pública (temática probatória, condições e pressupostos, nulidade, e, mais recentemente, prescrição).

Pois bem. Em matéria recursal, a preocupação do Código Buzaid com...

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