CIPA e dissimetria estabilitária: até quando?

AutorGeovane de Assis Batista
CargoJuiz do Trabalho Substituto (TRT5 ? BA). Mestre em Filosofia (UFBA). Doutorando em Filosofia (UCSF ? Orientador: Dr. Juan Carlos Pablo Ballesteros)
Páginas70-93

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1. Introdução

Sob as rubricas dos direitos e garantias fundamentais e dos direitos e deveres individuais e coletivos, o legislador constitucional de 1988 declarou1 que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros a inviolabilidade do direito à liberdade e à igualdade.

Não obstante, dizer que todos são iguais perante a lei revela apenas uma relação de igualdade puramente formal; e que, na vida mundana, muita vez, pode ser cindida pela mácula da desigualdade material — malgrado a inferência lógica no sentido de que a legitimidade fática e jurídica deve pressupor sempre o encontro harmônico dos binômios: igualdade-formal e igualdade-material.

Sem a concretude desse binômio, a igualdade formal decorrente da equivalência ou equipolência política, moral ou jurídica2 — como nos casos em que a doutrina e a jurisprudência, por não conseguirem ou por não desejarem determinar o alcance e a extensão do conceito literal da lei3, preferem impor uma restrição não autorizada.

Desse vício parece padecerem os exegetas do Direito Constitucional e do Direito do Trabalho, ou, por assim dizer, do Direito Constitucional do Trabalho. Tome-se como exemplo o art. 10, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), ao rezar que, até que seja promulgada a lei complementar a que se refere o art. 7º, I, da Constituição, ?ca vedada a dispensa arbitrária ou sem justa causa do empregado eleito para cargo de direção de Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (CIPA), desde o registro de sua candidatura até um ano após o ?nal de seu mandato.

Não precisa ser um bom hermeneuta para entender que a evidência nuclear dessa norma constitucional contrária à despedida arbitrária e sem justa causa do empregado eleito para ocupar cargo de direção da CIPA é a estabili-dade provisória4. Mas pode ocorrer de o intérprete inferir que o legislador constitucional garantiu a estabilidade apenas ao “empregado eleito”, deixando de fora aquele representante destituído do status eletivo.

A proposição assim formulada não parece absurda, já que a previsão contida na CLT se coloca exatamente no sentido de que cada CIPA deve ser composta por representantes da empresa e dos empregados, onde os destes (titulares e suplentes) devem ser eleitos por eles, e os daqueles (titulares e suplentes), pelos

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membros por ela designados. Daí por que parte bastante signi?cativa da doutrina e da jurisprudência trabalhista não hesitar em acolher a tese restritiva de direitos estabilitários aos membros da CIPA.

A prevalecer essa racionalidade a priori, então, três perguntas devem ser respondidas:
(a) a estabilidade provisória que se deseja exclusiva aos representantes eleitos pelos empregados decorre do conceito literal da lei, ou da vontade dos exegetas? (b) Decorrendo de uma ou de outra possibilidade, ou até mesmo do encontro semântico das duas, qual o fundamento determinante para a pretensa assimetria estabilitária? (c) E considerando a igualdade constitucional entre os homens, até quando será possível sustentá-la entre os membros da CIPA? (d) Qual a solução jurídico-?losó?ca disponível para pôr ?m à dissimetria?

Eis a problemática que o presente trabalho enfrentará com o objetivo (I) de determinar o alcance e extensão objetiva da estabilidade provisória assegurada aos membros da CIPA na alínea “a”, do inciso II, do art. 10, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) quando confrontada com a dição do inciso I, do art. 7º, da CF/88; e (II) demonstrar que, sob o prisma constitucional, há margem para uma intencionalidade em que o imperativo hermenêutico seja o direito de todos os membros da CIPA à estabilidade no emprego.

Para consecução desses ? ns, far-se-á um recorte metodológico visando trazer a lume a dogmática jurídica, doutrinária e jurisprudencial acerca da estabilidade ou instabilidade dos membros da CIPA. A analítica linguística em muito auxiliará na corroboração dos fundamentos jurídicos e ?losó?cos na defesa de uma simetria estabilitária irrestrita dos cipeiros na arqueologia do Direito do Trabalho e do Direito Constitucional.

Em ?na consonância com as balizas estabelecidas pela Constituição Federal de 1988, revela-se oportuna a presente contribuição, na medida em que tenta oferecer um ponto de vista capaz de fomentar, na busca da justa medida, um debate voltado para efetivação da estabilidade da representação paritária na CIPA. Ainda que tal propósito não seja atingido, a tentativa de emersão do fundo da caverna certamente já será signi?cativa em prol da minimização da desigualdade de direitos entre os trabalhadores brasileiros.

2. Desenvolvimento
2.1. A Comissão Interna de Prevenção de Acidente

A prestação de serviços pelo homem a uma pessoa física ou jurídica está sujeita a acidentes capazes de provocar lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho5. Com o objetivo de prevenir acidentes e doenças decorrentes do trabalho, de modo a tornar compatível permanentemente o trabalho com a preservação da vida e a promoção da saúde do trabalhador6, o legislador consolidado estabeleceu como obrigatória a constituição de Comissão Interna de Prevenção de Acidentes, outorgando poderes ao Ministério do Trabalho e Emprego para regulamentar a composição, as atribuições e seu funcionamento7. Em consonância com essa diretriz, a CIPA é hoje disciplinada pelo regramento da Consolidação das Leis do Trabalho, da Constituição Federal de 1988 e da NR-5.

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2.2. Composição, mandato e estabilidade provisória
2.2.1. A legislação

De acordo com o arcabouço normativo identi?cado no parágrafo acima, a composição8 da CIPA é paritária, ou seja, é formada por representantes do empregador e dos empregados, onde os membros do primeiro (titulares e suplentes) serão por ele designados, e os destes (titulares e suplentes) pelos eleitos em escrutínio secreto, do qual participem, independentemente de ?liação sindical, exclusivamente os empregados interessados.

O presidente será designado pelo empregador entre seus representantes, e o vice--presidente escolhido dentre os titulares pelos representantes dos empregados. E, de comum acordo com os membros da CIPA, serão indicados um secretário e seu substituto entre os componentes ou não da comissão, sendo neste caso necessária a concordância do empregador.

A posse dos membros da CIPA, eleitos e designados, ocorrerá no primeiro dia útil após o término do mandato anterior. O mandato terá a duração de um ano, sendo permitida a reeleição9.

Ainda, em conformidade com a norma laboral, os titulares da representação dos empregados nas CIPAs não poderão sofrer despedida arbitrária — entendendo-se como tal a que não se fundar em motivo disciplinar, técnico, econômico ou ?nanceiro10.

Recepcionando a diretiva estabilitária preconizada pela norma infraconstitucional, além de outros direitos que visassem à melhoria da condição social, a CF/88 estendeu aos trabalhadores a garantia do direito à relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar11.

Suspeitando da morosidade legislativa, consubstanciada na espera da promulgação da lei complementar a que se refere o inciso I, do art. 7º, da CF/198812, o legislador constituinte logo cuidou de formatar, no ADCT, uma blindagem estabilitária ao empregado eleito para o cargo de direção da CIPA, desde o registro de sua candidatura até um ano após o ?nal de seu mandato, vedando, mais uma vez, a dispensa arbitrária ou sem justa causa.

Em sintonia com a inteligência das normas consolidada e constitucional, nova portaria ministerial se fez editar13, alterando signi?cativamente o texto da NR-5 para corroborar a vedação à dispensa arbitrária ou sem justa causa do empregado eleito para cargo de direção da CIPA. Fortalece-se, então, a estabilidade do “cipeiro”.

No entanto, como advertem Orlando Gomes e Elson Gottschalk14, não é fácil dizer o que é estabilidade. Segundo entendem, ela pode decorrer tanto da definição legal como da natureza jurídica do instituto. Anotam que a doutrina e a jurisprudência, na esteira da investigação fenomenológica da ontologia da estabilidade, muita vez, fornecem recursos de interpretação que, não raro, modi?cam o conceito literal da lei.

Sem embargo da advertência, a exegese dos textos legais relativos à CIPA parece defender que estável é o empregado eleito pelos representantes dos empregados para ocupar cargo de direção da CIPA, não podendo o “cipeiro”, em tais condições, sofrer despedida arbitrária, desde o registro de sua candidatura até um ano após o ?nal de seu mandato, exceto por motivo disciplinar, técnico, econômico ou ?nanceiro.

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Seguindo essa racionalidade, o “ser empregado eleito pelos representantes dos empregados” passaria a constituir condition sine qua non para caracterização da estabilidade dos membros da CIPA. Aliás, esse é o entendimento que vem sendo agasalho pela jurisprudência e pela doutrina.

2.2.2. A jurisprudência

Embora considerada tênue para o desvelamento da verdade real...

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