A constituição do paradigma científico da época moderna e a crise do modelo individualista

AutorWillians Franklin Lira dos Santos
Ocupação do AutorMestre em Direito Empresarial e Cidadania pelo UNICURITIBA. Especialista em Direito pela UFPR e pela PUCPR
Páginas29-67

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1.1. Processo, paradigma e episteme

A crescente complexidade das relações humanas na sociedade contemporânea tem-se refletido num questionamento no sentido de reavaliar, numa perspectiva geral, a própria validade do estatuto epistemológico de cada ramo do saber, não apenas em si mesmo considerado, mas em relação aos demais ramos com os quais dialoga, e o papel das ciências em sua relação com a sociedade, cabendo ao Direito2 papel destacado nesse panorama.

Os operadores do direito, em geral, cumpre que se reconheça, nem sempre têm clara a noção das limitações da cientificidade do objeto de seu estudo, das dificuldades teóricas a ele inerentes, e de como isso está relacionado ao paradigma científico que lhe concedeu o estatuto epistemológico de ciência a partir da época moderna.

Ademais, o Direito, enquanto ciência da cultura, precisa ser pensado não sob o viés da matematização, que marcou sua assunção como ciência na modernidade, e menos ainda dentro do critério da limitação dogmática ao dever ser, condição prescritiva e hermenêutica da norma posta, frente à qual o operador pouco poderia intervir, mas pela busca da interpretação mais consentânea com a mens legis do legislador. Aliás, como bem adverte João Caraça, tal problema, embora de cariz vetusto, ainda carece de muita reflexão:

O século XIX, o século da mecânica e do positivismo, dos caminhos de ferro e do telégrafo, constrói uma visão da classificação dos conhecimentos que tenta consagrar definitivamente não só uma organização, mas também uma hierarquia dos saberes: no topo da pirâmide está a matemática (a rainha das ciências), ocupando estratos sucessivamente inferiores à física, à química e às ciências naturais e depois, mais abaixo, as humanidades, as artes e a religião. Esta classificação dos saberes permaneceu praticamente indisputada até a década de 1960.3 (grifo nosso)

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Ovídio Araújo Baptista da Silva4 alerta para a "geometrização"5 do direito, que tomou corpo no racionalismo do século XVII, posteriormente reproduzida por Savigny, mediante o exame dos casos concretos em prol de regras gerais, já que a complexidade daqueles jamais poderia ser captada por estas últimas.

Francesco Carnelutti, com peculiar propriedade, observa que não se pode "confundir a ciência com o progresso da ciência"6 para explicar que a ciência jurídica encontra dificuldades de subsunção ao método próprio das ciências naturais, em razão de seu peculiar objeto prescritivo7. Nessa perspectiva, parece-lhe que o estudo do direito haverá de ser feito considerando-se sua função8 e estrutura9.

Ovídio Araújo Baptista da Silva10 considera que o pacto do direito processual civil com o paradigma racionalista, aliado às filosofias liberais do iluminismo europeu, convergiram para a tentativa de impor ao direito os mesmos princípios metodológicos utilizados pelas ciências naturais, o que transformou o direito num sistema de conceitos, desvinculado da realidade, sendo que o direito processual civil "[...] foi o domínio jurídico mais danificado por essa metodologia, por ser o processo aquele ramo do conhecimento jurídico mais próximo do mundo da vida, da prática social".11

Detectado esse perigoso viés de matematização do direito, conclui o mesmo doutrinador, encarecendo que:

[...] É necessário, porém, ampliar o debate a respeito dessas questões, com o objetivo de superar a redução metodológica que o sistema impõe, tanto ao ensino universitário, quanto à experiência forense. Em resumo, superar o dogmatismo, fazendo com que o direito aproxime-se de seu leito natural, de ciência da cultura.12

Com base nessas premissas é que se inicia a investigação sobre a crise paradigmática que assola o direito processual, para analisar em que medida tem

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relação com o talhe liberal-individualístico em que foi forjado e quais as alternativas que o ordenamento disponibiliza em prol da efetividade da tutela dos direitos sociais. Isso porque, é preciso reconhecer, nem sempre se tem clara a devida noção das dificuldades teóricas13 que cercam a ciência jurídica, e de como isto está relacionado ao paradigma que lhe concedeu o estatuto epistemológico de ciência.

Em vista disso, a partir do momento em que se compreende o modo como o conhecimento utilizado hoje foi construído e reconhecem-se suas limitações, pode-se, assim, não apenas construir-se uma visão mais crítica do direito processual, como também abrir-lhe novas perspectivas hermenêuticas.

Daí a importância do pensamento de Thomas Kuhn para bem visualizar esse fenômeno, na proporção em que desenvolve a noção de paradigma para demonstrar como os modelos de racionalidade se impõem em cada época14; bem como, de tempos em tempos, a transição entre um modelo e outro, o que ocorre sempre que um paradigma já esgotou sua capacidade enquanto tal. Nesse sentido é que se insere a crise do dissídio individual, na medida em que não dá conta da realidade fática a que está instrumentalmente ligado.

Também no direito material convém observar uma certa15 transição do tratamento patrimonialista que marcou o Código Civil de 1916 para o de 2002, revelando também a caducidade do paradigma individualista, parâmetro que propõe o tratamento individual das demandas. Em termos processuais, merece registro também a transição da ordinariedade do procedimento, como regra, para o advento das tutelas diferenciadas, com vistas à efetividade da tutela jurisdicional, também como reflexo da crise do paradigma patrimonialista.

Seguindo no raciocínio, Michel Foucault, por sua vez, desenvolve a noção de episteme, contribuindo também para a compreensão da hegemonia de um modelo de racionalidade em cada período histórico:

Por episteme entende-se, na verdade, o conjunto das relações que podem unir, em uma dada época, as práticas discursivas que dão lugar a figuras epistemológicas, a ciências, eventualmente a sistemas formalizados; o modo segundo o qual, em cada uma dessas formações discursivas, se situam e se realizam as passagens à epistemologização, à cientificidade, à formalização;

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a repartição desses limiares que podem coincidir, ser subordinados uns aos outros, ou estar defasados no tempo; as relações laterais que podem existir entre figuras epistemológicas ou ciências, na medida em que se prendam a práticas discursivas vizinhas mas distintas. A episteme não é uma forma de conhecimento, ou um tipo de racionalidade que, atravessando as ciências mais diversas, manifestaria a unidade soberana de um sujeito, de um espírito ou de uma época; é o conjunto das relações que podem ser descobertas, para uma época dada, entre as ciências, quando estas são analisadas no nível das regularidades discursivas.16

A análise conjunta da ideia de crise em Thomas Kuhn e Michel Foucault permite o entendimento da forma como se organiza o conhecimento e de como se relacionam entre si áreas de saber aparentemente distintas.

Com isso, abre-se a perspectiva para se compreender a extrema relação que os vários saberes surgidos ou institucionalizados como ciência no século XIX reciprocamente possuem e como influem na forma de pensar até os dias de hoje, determinando não somente o método de conhecimento, mas o próprio conteúdo a ser pesquisado.

Essa problematização, ainda mais incisiva em Michel Foucault, das condições de gênese e permanência no processo de constituição de um paradigma científico, permite descortinar as razões fundantes do paradigma e de sua sobrevivência, ponto cujo discernimento é imperioso para o estudo de tema em franca transição, pois o direito, sobretudo o processual, cruza os umbrais do positivismo em busca de uma resposta mais plural e concorde com a realidade; ao passo que o direito processual reconhece a falibilidade de seus métodos na medida em que não encontra soluções efetivas aos conflitos que lhe são propostos, sobretudo quando se pensa na solução de conflitos entre capital e trabalho, que ressoam tensões históricas.

1.1.1. Resgate de Elementos Constitutivos do Paradigma Científico

Um primeiro ponto a ponderar diz respeito à formação dos paradigmas científicos, que são os modelos descritivos de realidade aceitos pelo establishment como retrato fiel da realidade.

As ciências humanas, quadro maior onde se insere o direito, herdaram das ciências naturais o desejo de se constituir como ciência propriamente dita, muito embora não fosse assim admitida em sua gênese, exatamente porque seu objeto não se identificava com o método científico das ciências naturais. A par disso, também lhe era inviável a demonstração empírica, restando-lhe o reconhecimento paulatino de seu objeto e o desenvolvimento de métodos específicos de abordagem dos fenômenos que lhe cabia analisar.

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Num recorte histórico, Thomas Kuhn17 demonstra que o paradigma científico tornou-se hegemônico18 na época moderna e se constituiu a partir das ciências naturais. Seu gérmen pode ser localizado no século XVI, sobretudo na revolução científica de Nicolau Copérnico, Galileu Galilei e Isaac Newton.

As descobertas ali empreendidas desautorizavam todo o conhecimento até...

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