Cidades, trajetórias urbanas, políticas públicas e proteção social: questões em debate

AutorMaria Carmelita Yazbek; Raquel Raichelis
Páginas65-76

Entrevista especial com Vera Telles

Entrevistadoras: Maria Carmelita Yazbek e Raquel Raichelis1. Realizada na PUC-SP, em 27 de maio de 2009.

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Vera da Silva Telles é doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (1992) e professora assistente doutora da Universidade de São Paulo. Possui Pós-Doutorado na École de Hautes Etudes en Sciences Sociales - Paris, França (1999-2000). É pesquisadora convidada (posto CNRS) nos quadros da Maison de Sciences de l'Homme Ange Guepin, Nantes, França (dezembro 2006-março 2007). Atua em Sociologia, com ênfase na Sociologia Urbana. Como resultado de seis anos de pesquisa desenvolvida em parceria com o Institut de Recherche pour le Developpement (Acordo CNPq-IRD) publicou, em co-autoria com Robert Cabanes, "Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios" (São Paulo: Humanitas, 2006). Atualmente é coordenadora da equipe brasileira em um programa de cooperação franco-brasileiro (Acordo Capes-Cofecub, 2007-2011), com o projeto "Trajetórias, circuitos e redes urbanas, nacionais e transnacionais e o seu impacto sobre a arquitetura institucional democrática", tendo como parceiros pesquisadores do Centre Interdisciplinaire de Recherches Urbaines etSociologiques (CIRUS-CERS, Université de Toulouse II) e Centre d'Analyse et d'Intervention Sociologiques (CADIS-EHESS, Paris).

O percurso

Entrevistadora - Inicialmente, seria interessante você nos contar um pouco do seu percurso expresso nas suas pesquisas, na produção do conhecimento, na forma de enxergar e interpretar a realidade, enfim, que você veio nos brindando desde a sua tese de doutorado, lá pelos idos dos anos 90, quando você excursionou pela periferia de São Paulo entrevistando famílias de trabalhadores. Trabalhadores, que a gente chamaria hoje, fordistas, da fábrica fordista, num momento da sociedade brasileira extremamente diferente daquele em que estamos vivendo hoje. De lá para cá você desenvolveu vários estudos e, mais recentemente, pelas suas últimas publicações, observa-se certo deslocamento (um termo que você usa) nas suas análises e especialmente nas suas referências teórico-metodológicas. Então, começaríamos perguntando: Qual é o balanço que você faz da sua produção, tão conhecida e incorporada pelo serviço social, no âmbito da discussão dos direitos sociais, no campo da construção das formas de apropriação por parte da população de seus direitos, ou seja, que balanço você faz do seu percurso teórico-metodológico, que lhe faz, hoje, rever muitos desses parâmetros?

Vera - Meu percurso tem vários momentos. Defendi meu doutorado em 1992. Foi uma tese, portanto, realizada com base em uma pesquisa iniciada nos anos 80. Como você colocou, era um mundo fordista. Era o mundo organizado em torno do trabalho. Claro, havia o desemprego, o sempre expansivo trabalho informal, havia pobreza, mas a referência (expectativas, sonhos, possibilidades) era o chamado "trabalho organizado": uma configuração social muito diferente do que iríamos conhecer no correr dos anos 90. A questão dos direitos era central e essa tese foi muito influenciada pela minha leitura de Hannah Arendt. A noção de espaço público e de "mundo comum", cuja medida seria dada pelo reconhecimento do "direito a ter direitos" pautou a maneira como eu tratei as questões que eu encontrava no meu trabalho empírico. E o que eu encontrava em minha pesquisa de campo era a fragilidade das relações de direito e as fragilidades dos arranjos familiares para enfrentara instabilidade no trabalho, salários baixos, desemprego freqüente, etc. Quer dizer, toda uma configuração societária que parecia se desenhar no ponto de junção das limitações dos direitos do trabalho e dos direitos sociais.

Quando eu terminei o doutorado, aconteceu algo que suponho ocorrer com todos ou quase todos os doutorandos. Ficamos anos seguidos envolvidos na pesquisa, entre trabalho de campo e leituras e, depois, ao final, quando se olha para os lados, se percebe que o mundo está muito mudado. Pois, então, levei, vamos dizer, um susto. O meu espanto vinha da proliferação de espaços de participação popular, e que eu desconhecia. Mas a possibilidade de acompanhar essa experimentação política e refletir sobre ela não veio da pesquisa acadêmica. Logo após a defesa de meu doutorado, SílvioPage 66 Caccia-Bava, amigo e parceiro de longuíssima data, me convidou para compor a diretoria do Polis. Foi essa minha passagem pelo Instituto Polis que me abriu os horizontes, na medida em que pude então conhecer e acompanhar, um pouco que fosse, toda uma dimensão pública, política, da qual eu estava afastada. Isso foi em 1993. As datas são importantes. Muita coisa estava acontecendo no país naqueles anos. O Polis já era muito ativo na época. Boa parte do que eu escrevi nos anos 1990 sobre direitos e espaços públicos é muito devedora dessa minha experiência no Polis, alimentou-se dessa experiência e da interlocução que eu tive na época e que me foi aberta no e pelo Polis. Foi um momento importante nesse meu percurso, também, porque me fez perceber o quanto a Universidade, no caso a Universidade de São Paulo, estava encapsulada em si mesma e pouco aberta ao que estava acontecendo no mundo social e no mundo político. O fato é que alguns dos textos que eu escrevi nesses anos, textos que circularam e que tiveram alguma ressonância na época, não foram derivados de meu doutorado, mas sim dessa experiência fora da Universidade. Talvez isso explique algo de uma ambivalência ou duplicidade que marca esse meu percurso intelectual, talvez uma ambivalência presente no próprio mundo social e que eu, de alguma forma, termino por registrar no registro de paradoxos, aporias sem saídas evidentes. De um lado, as pesquisas em torno dos mundos da pobreza, o bloqueio de perspectivas e a questão que sempre esteve no centro de minhas inquietações, a questão da liminaridade, de ordens de vida que se estruturam no fio da navalha, sempre a ponto de desabar por conta dos "azares" do destino. De outro lado, a potência dos espaços públicos e as possibilidades de construção de um "mundo comum". Na formulação de cada um desses lados, meu fio condutor sempre foram as reflexões de Hannah Arendt; esse talvez seja justamente o fio de tudo o que eu escrevi nesses anos. Mas a fenda aberta no mundo social, essa eu não poderia resolver, o descompasso entre o lado "luminoso" dos espaços públicos e esse persistente e sempre reposto bloqueio de possibilidades do mundo social. O fato é que eu sempre transitei entre esses dois lados, a junção desses dois lados não é nada evidente: um descompasso que faz parte do meu percurso, mas que, talvez, esteja alojado no mundo. Retomando o fio da meada, o fato é que os meus textos sobre direitos e espaços públicos, escritos no correr dos anos 1990, alimentam-se dessa aporia, se é possível dizer assim, mas são, sobretudo, devedores dessa minha passagem pelo Polis. E também da minha interlocução com vocês, do Serviço Social. Aliás, se não me falha a memória, afinal já se vai um bocado de anos, essa aproximação foi realizada através do Polis. Acho importante lembrar e enfatizar isso. É algo que eu sempre digo de público e que eu gostaria, aqui, de reafirmar: tenho absoluta convicção de que as boas coisas que eu escrevi em todo esse período eu devo muito ao trabalho de vocês, do Serviço Social. Em particular, dois textos: "No fio da Navalha ..." e "A nova questão social brasileira", ambos publicados em 1998.2 No caso desses dois textos, mais ainda "A nova questão social", eu teria que dividir os créditos com a Carmelita e com a Raquel, que estão aqui me entrevistando neste momento. Esses créditos têm que ser inteiramente partilhados porque, na verdade, eu me apropriei abertamente, explicitamente de coisas que vocês fizeram, de textos que vocês publicaram. Sempre digo, sempre reafirmo e o faço mais uma vez agora, o quanto eu sou devedora de tudo o quanto eu aprendo com o(a)s profissionais e o(a)s colegas do Serviço Social. Dívida intelectual também acompanhada por infinitiva admiração pelo trabalho que vocês realizam. Para ir direto ao ponto: vocês, as colegas e profissionais do Serviço Social, atuam ali onde está o nervo exposto do mundo social e, portanto, também no olho do furação de todas as turbulências que vêm atravessando as sociedades. É aquele ponto - ou aquele "posto de observação" (no caso de vocês, não observação passiva, mas campo de atuação) - que não permite fazer o "jogo do contente" ou o jogo do faz de conta (tão comum na cenografia política), é onde a equação não fecha, a fenda está aberta e sempre aberta, cada vez mais aberta, aquele ponto justamente que exige mais do que nunca a reflexão crítica e a atitude crítica perante o que se passa. E isso para mim é decisivo e foi decisivo em boa parte do que escrevi nesses anos.

Foram também os trabalhos e textos de vocês que me alertaram, antes de tudo, para um esgotamento da linguagem, da linguagem dos direitos, justamente na virada dos anos 1990. Essa é a questão central que eu tento trabalhar no "A nova questão social" e também no "Direitos, afinal do que se trata?", também publicado em 19983 . Na verdade, para mim foi importante escrever esses textos: marcaram um limiar justamente em meu percurso, um ponto de não-retorno. Sem conseguir resolver (acho que ainda não consegui) a questão, são textos que falam de um ponto de virada no mundo que seria preciso entender, a "linguagem dos direitos" estava sendo ou já havia sido devorada pelos tempos, já não dizia muita coisa, já estava esvaziada de sentido. O ponto zero de sentido, como disse Paulo Arantes em um texto que trata justamente do esvaziamento das noções de direitos, de cidadania, de democracia.

Novos rumos

Vera - Nesse momento, eu dei uma parada. Viajei, passei um ano fora, um pós-doutorado na França (1999-2000). Um tempo para um...

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