Cidade, Cidadania e Moradia: a Perspectiva Histórica da Instituição de Direitos

AutorLoreci Gottschalk Nolasco
Páginas35-68

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Para entendermos e compreendermos o que é a cidade, como começou, que processos promove, que funções desempenha, que finalidades preenche, é preciso, antes de tudo, conhecermos sua história, até chegarmos aos seus componentes originários, ou seja, da vida social do homem com os outros animais ao cemitério final, a Necrópole em que uma após outra civilização tem encontrado o seu fim.1O historiador acrescenta ainda que:

[...] Se quisermos identificar a cidade, devemos seguir a trilha para trás, partindo das mais completas estruturas e funções urbanas conhecidas, para os seus componentes originários, por mais remotos que se apresentem no tempo, no espaço e na cultura, em relação aos primeiros tells que já foram abertos. Antes da cidade, houve a pequena povoação, o santuário e a aldeia; antes da aldeia, o acampamento, o esconderijo, a caverna, o montão de pedras; e antes de tudo isso, houve certa predisposição para a vida social que o homem compartilha, evidentemente, com diversas outras espécies animais.

O primeiro espaço arquitetônico que o homem conquistou foi a caverna, onde intensificava a receptividade espiritual e a exaltação emocional, uma vez que os aspectos originais da colonização temporária não vislumbravam apenas sobrevivência física, mas, muito mais valioso e significativo, era conservar uma consciência entre passado e futuro, envolvendo o prazer do sexo e da morte e do após morte. E, enquanto a cidade toma forma,

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outros fatores serão acrescentados, fundamentando a própria razão da sua existência, entre eles, o econômico.2A ascensão das cidades deu-se pelo ajuntamento dentro da reclusão de suas muralhas de vários elementos, tais como: santuário, fonte, aldeia, mercado e fortificação, ampliando todas as dimensões da vida, passando a ser um símbolo do possível, do utópico para a realidade, anteriormente idealizada pelas pequenas comunidades.

As cidades, nesse sentido, são verdadeiras instituições, não são aglomerados de casas. Lembrando uma frase importantíssima de Rousseau, podemos dizer: "Casas fazem uma cidade, mas cidadãos fazem uma civilidade".3As cidades são, portanto, um espaço humano que se opõe e distingue-se do espaço natural, meramente geográfico. A praça e o fórum, criados pelos gregos e romanos, são verdadeiras invenções sociais e humanas, que têm a mesma importância que a invenção da roda ou da escrita. Os palácios, templos e cemitérios das cidades orientais antigas, especialmente no Egito e Mesopotâmia, constituem novidades insubstituíveis na vida e na história da humanidade.

As marcas características da nossa cultura urbana são: redução da distância física, concentração da população na cidade, combinando concentração e mistura, com isolamento e diferenciação. As cidades criam, progressivamente, algumas novidades importantíssimas. Do ponto de vista do Direito, é preciso destacar duas: a) nas cidades, dissolvem-se, naturalmente e progressivamente, os laços de sangue, de família, de tribo e de clã; b) nas cidades, estabelece-se a diferença entre ricos e pobres.

Evidentemente, a dissolução dos laços de sangue varia muito e tem graus diferentes em cada época histórica. Mas a cidade só pode constituir-se em espaço de cidadania se a solidariedade para com a família for limitada, ou melhor, se a solidariedade para com a família estender-se para além da própria família e tornar-se uma solidariedade para com os outros habitantes da cidade. É muito significativo que, na história do Direito das cida-

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des ocidentais, este movimento apresente-se com muita clareza. Para ficar com dois exemplos apenas, vamos lembrar que nas cidades greco-romanas as primeiras leis impuseram a dissolução dos laços tribais. As leis de Drácon e de Sólon na Grécia dissolveram esses laços ao proibirem a vingança familiar e impor a aplicação de decisões dos magistrados e da assembléia da cidade acima da justiça privada, ou seja, da vingança tribal/familiar. Em Roma, da mesma maneira, a Lei das Doze Tábuas e a Constituição Monárquica já organizam a convivência das tribos (gens) de uma maneira totalmente nova. No outro grande e insuperável período de organização urbana que o Ocidente conheceu, as comunas medievais eram normalmente conjurações de defesa mútua, organizadas em guildas4e associações que ultrapassavam outra vez os limites estreitos da defesa familiar. A carta ou foral da cidade medieval levava a sério a defesa da cidade, acima da defesa do parente. As rixas familiares destruíam as cidades.

Com a civilização e, por conseguinte, com o crescimento do número de habitantes e o aumento da riqueza, surgiu na cidade outra espécie de divisão, que nasce com outra inovação da vida urbana, acorrentando o trabalhador à sua tarefa, para que os excedentes pudessem garantir a fartura do homem rico, a propriedade, que no sentido civilizado da palavra, não existia nas comunidades primitivas, a divisão entre os ricos e os pobres. Na vida tribal, no ritmo natural do pastoreio, da coleta, da aldeia simplesmente, a partilha na penúria ou na abundância parece ser a característica principal. Mas na cidade, num espaço delimitado e fechado, a partilha torna-se um problema novo e a solução de tal problema vem definida na instituição da propriedade.5Esta propriedade atravessa muitas formas e vicissitudes. Na verdade, não se trata da propriedade dos bens de uso e consumo pessoal. Esta nunca foi um problema. Mesmo nas sociedades tribais, há

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um respeito pelas coisas alheias. Mas, como não há grandes diferenças entre as coisas detidas por um ou outro, a propriedade não é um problema especial.

Nas cidades, estabelece-se um ritmo de acumulação que se faz apenas se houver privação de uns. As cidades são recipientes de coisas e de idéias, de riqueza e de poder, de instituições. O autor argumenta que:

A cidade e o urbano não podem ser compreendidos sem as instituições oriundas das relações de classe e de propriedade. Ela mesma, a cidade, obra e ato perpétuo, dá lugar a instituições específicas: municipais. As instituições mais gerais, as que dependem do Estado, da realidade e da ideologia dominante, têm sua sede na cidade política, militar, religiosa. Elas aí coexistem com as instituições propriamente urbanas, administrativas, culturais. Donde certas continuidades notáveis através das mudanças da sociedade.6Nas cidades começa a haver um controle dos ritmos da natureza. Pode-se criar um celeiro e armazenar trigo. Isto é um problema absolutamente novo. O trigo só pode ser armazenado se houver um excedente: natural, se a colheita for farta; artificial, se o consumo for restringido de algum modo. Para promover colheitas fartas é preciso criar novas condições: um incentivo ao trabalho ou um incremento das técnicas de produção ou o trabalho forçado. Muitas vezes o que ocorreu foi a combinação diferente das três formas.

Aparentando segurança e proteção, a cidade, quase desde seus primeiros momentos, trouxe consigo a expectativa não apenas de ataques exteriores, mas, igualmente, da intensificação da luta interior: guerras eram travadas no mercado, nos tribunais, no certame de danças ou na arena. "Exercer o poder sob todas as formas constituía a essência da civilização: a cidade encontrou uma vintena de maneiras de expressar a luta, a agressividade, o domínio, a conquista - e a servidão."7A despeito de suas negações, a cidade produziu uma vida dotada de finalidade, que, em muitos pontos, de maneira magnífica, superou os objetivos originais que a tinham feito existir.

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Aristóteles transforma em palavras a natureza dessa transição dos processos e funções urbanas predatórias para os processos humanos emergentes, quando afirma: "Os homens ajuntam-se na cidade para viver; ali permanecem a fim de viver a boa vida"8, sendo inquestionável que a "boa vida" somente seria possível se ele vencesse a necessidade, condição essencial para o exercício da liberdade.

Aristóteles definia duas esferas relacionadas com as atividades humanas: a oikia (casa), cujo centro era a vida familiar e privada com o domínio de uma só pessoa, e a polis, que dava ao indivíduo uma vida em comum e que era governada por muitos. Na oikia, o homem realizava as atividades ligadas às necessidades de seu corpo para manter-se vivo e nela estavam as mulheres responsáveis pela procriação e os escravos responsáveis pela supressão das necessidades da vida.9Em contraposição, na polis, os homens relacionavam-se com os seus iguais por meio de palavras e do discurso, exercitando-se continuamente na arte do acordo e da persuasão e não da violência: somente por meio da constante criação de novas relações, os homens autogovernam-se sem se dominarem uns aos outros ou se deixarem dominar uns pelos outros.10

Nas comunidades primitivas, o molde era comum para todos os homens. Na cidade, entretanto, durante toda a sua evolução exigiu-se uma formulação e reformulação das identidades, descobrindo-se novos papéis, novas potencialidades, produzindo "mudanças correspondentes no direito, nas maneiras, nas avaliações morais, no costume e na arquitetura e, finalmente, transformam a cidade numa totalidade viva".11A transformação sofrida pela cidade mudou também o modo de vida dos citadinos. A cidade deixou de ser o palco de

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um drama significativo, no qual cada um teria um papel, com falas a dizer, para ser um mostruário de poder.

Salienta José Reinaldo de Lima Lopes que as cidades, mesmo com suas diferenças e distribuição desigual de riquezas, continuam a atrair gente. Certamente, porque a penúria na cidade ainda pode ser mais suportável que o abandono à sua própria sorte no campo, quando calamidades naturais são de uma força tal que o núcleo da aldeia não pode resistir. Na cidade, a acumulação de trabalho de todos permite, algumas vezes, a sobrevida de um grupo. Entre as narrativas da tradição bíblica, relata Lopes, há uma particularmente importante: é a de José e seus irmãos. A fome que assola as tribos (os irmãos de José) faz com que elas procurem o...

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