Cidadania, democracia e acesso à justiça.

AutorDaury Cesar Fabriz
CargoMestre e Doutor em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (FD/UFMG); Professor adjunto do Departamento de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
Páginas1-35

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1. Introdução

O princípio constitucional da cidadania tem sido na atualidade, alvo de atenções e estudos, vez que vários seguimentos da sociedade têm se mobilizado em torno dessa idéia, em busca dos seus direitos, de maior participação na vida pública e por mais justiça.

A expansão dos direitos dos cidadãos e as novas imposições do mundo globalizado nos obrigam a uma avaliação do real conceito de cidadania que se busca em nossos dias. A Constituição brasileira de 1988 permitiu a expansão dos direitos fundamentais ambientados em um espaço público que se instituiu na perspectiva do princípio democrático. O acesso à justiça expressa, na Constituição, de forma simbólica, a demanda reprimida por direitos, negados na vigência do período ditatorial. Nesse sentido, democracia, cidadania e acesso à justiça são dimensões interdependentes da convivência constitucional.

A idéia de cidadania é manipulada sendo utilizada em diferentes sentidos. Seja como expressão de igualdade, ou como capacidade de exercício dos direitos e deveres, ou ainda como participação política. Desse modo presenciamos uma recorrente reapropriação do vocábulo cidadania por diferentes pessoas e instituições.

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O constante uso dessa expressão - cidadania - tem como pano de fundo o resgate de certa cidadania. Mas em que medida esses discursos ou políticas são eficazes na viabilização do exercício da cidadania, nos moldes em que hoje a mencionada idéia exige? A Constituição brasileira de 1988 estabelece no Inciso II do art. 1º a Cidadania como Princípio Fundamental da República. Qual é o significado dessa disposição constitucional?

Não resta dúvida tratar-se de um fato juridicamente relevante. Verifica-se que há uma gama de institutos garantidores dos direitos de cidadania em choque com os mais variados discursos em torno do tema, constituídos por atores socialmente distintos e mesmo antagônicos entre si. Estes aspectos indicam que a cidadania pode estar significando um apelo geral na perspectiva de maior integração e harmonização social.

Tomando por base essa recorrente apropriação da idéia de cidadania por diferentes atores sociais e órgãos públicos, é válido pensar em que medida as políticas aí implementadas apontam para a reversão do se denomina de Cidadania Concedida, de sorte a produzir mudanças na cultura política da dádiva, aonde “proteção, favor e patronagem vêm a ocupar o lugar de direitos civis inexistentes.” 1

Inquestionavelmente a reelaboração da idéia em torno da cidadania adquire um perfil das palavras mito, no sentido de expressar toda necessidade latente, incrustada no imaginário coletivo, em meio ao vácuo deixado pelo “fim das utopias”.

A filosofia da linguagem, a semântica e a semiologia poderão ajudar a desvendar esse mistério de como e por que os vocábulos possuem vários níveis, mais ou menos profundos e intensos. Como e porque, de repente, o sentido mais forte ganha maior importância e, por isso, determinado vocábulo se impõe miticamente, funcionando assim, como um entreposto dos desejos individuais e coletivos.

A partir do questionamento em torno do tema cidadania, ergue-se uma discussão, contextualizando o assunto em seus vários processos históricos, quando então se imprime uma breve construção teórica sobre a reelaboração e reapropriação da idéiaPage 3de cidadania, pelo Brasil contemporâneo. Nessa onda, uma reflexão do acesso à justiça como uma das formas de expressão do indivíduo-cidadão, em busca da animação dos seus direitos fundamentais. O acesso à justiça na condição de acesso ao mundo dos direitos.

Toma-se por base o sentido universal do conceito de cidadania tal como desenvolvido na Europa nos séculos XVIII, XIX e XX, estabelecemos um contraponto com o seu desenvolvimento aqui no Brasil; problematizando a reelaboração do conceito na atualidade, mostrando a ampla reabilitação do tema nas últimas décadas, como fruto da reconstrução da sociedade civil a partir da redemocratização pós-1988.

Num primeiro momento indagamos se os projetos de resgate da cidadania implantados pelos órgãos públicos sejam eles federais, estaduais ou municipais, não estariam sendo realizados no sentido de se anteciparem aos desejos coletivos, canalizando-os e alinhando-os às novas necessidades emergentes, às novas exigências do contexto mundial do capitalismo integrado. Em que termos o debate em torno do acesso à justiça está sendo percebido pela população cidadã? Em que medida o direito constitucional fundamental de acesso à justiça encontra verdadeira ressonância no mundo da vida, da concretude social? São indagações que exigem respostas a partir de uma reflexão compreendida no plano da evolução histórica do existencialismo constitucional brasileiro. Por outro lado a idéia de resgate pode representar a imposição, sob a forma de concessão, de uma cidadania reelaborada a partir do conceito desenvolvido na Europa nos últimos três séculos: direitos civis, participação política e justiça social, acrescido ao pleito de acesso à justiça, hodiernamente. Tudo dentro de um novo contexto, ditado pela era globalizada, que pode levar a uma cidadania desfocada, desconstruída.

2. Cidadania utopia

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Embora algumas vozes do fim do século passado declarem o fim das utopias ou até mesmo da história, verificamos que tais perspectivas - ou falta de perspectivas - não chegam a ter consistência quando contextualizadas na própria história. Ao imaginarmos a questão em torno dos Direitos Humanos, podemos pensá-los como uma utopia presente, e talvez, essa sim, a nossa última.

Apesar do entendimento comum de utopia ser o de coisa que não se realiza ou que não se pode realizar, o termo pode nos conduzir a outras percepções ligadas à condição humana. PEDRO DEMO ensina que “a utopia é a fonte de alternativa, a busca imorredoura de uma realização melhor, ainda que a história somente nos traga situações precárias. É na utopia que a humanidade deposita seus sonhos mais lindos, como igualdade social, autogestão, a autopromoção, a participação, à solidariedade etc.” 2

Por mais que especulemos a respeito do fim desses sonhos, jamais iremos presenciar um ocaso tão aterrador para a humanidade. Isto por que o sonho, a esperança e o desejo sempre há de instigar o espírito do homem em busca dos melhores dias. Não queremos com isto tratar das dimensões metafísicas que envolvem essas questões, mas sim, vislumbrar que certamente é inesgotável o desenrolar dessa jornada em busca dos “sonhos mais lindos”.

É desses sonhos mais lindos que nasce o ideal de democracia, utopicamente entendido como o poder do povo, onde qualquer cidadão pode votar e ser votado, podendo chegar a exercer o cargo máximo de uma nação, materializando o espírito republicano. Quando falamos em poder queremos dizer do poder político em toda sua extensão, que se expressa nas mais variadas dimensões dos elementos que constituem essência humana, que inevitavelmente permeiam as mais diversas condutas.

É na Grécia antiga que tem início a vida com significado político onde a racionalidade tem seus sabores experimentados em amplos banquetes. É na Grécia de Sócrates, Platão e Aristóteles que a política começa a ser pensada, do ponto de vista conceitual, dando significado aos jogos que envolvem a busca pelo poder.

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Política vem de polis (cidade). É pela cidade, lugar da vida excelente, que Sócrates dá sua vida em nome da ordem cívica e ao governo das leis. Para Platão, o homem da polis - o cidadão - tinha por tarefa primordial assegurar e manter a ordem geral da cidade. Para Aristóteles o indivíduo deveria preferir a vida de cidadão, ativa e prática, onde a constituição ( politéia ) ideal é, pois, a que assegura ao cidadão esse modo de vida mais desejável.

A polis tinha dimensões estreitas, possibilitando uma convivência face-a-face dos indivíduos que a compunham. Havia uma identidade entre a cidade e o cidadão:

Estes identificavam-se estritamente com a sua cidade, onde encontravam tudo o que era necessário para o seu desenvolvimento pessoal. O ethos da cidade, a sua maneira especial de ser e de viver (...) deviam total obediência à lei, expressão do bem comum cívico. Coube à cidade, ao promover a desagregação da sociedade gentílica, libertá-los da pesada tutela do clã familiar, do Génos, e convertê-los nos seres individualizados e relativamente autônomos em que se transformaram. Cidadãos até a medula. 3

Sócrates encarnou esse espírito cidadão, no melhor modelo e significado que os gregos imprimiram a essa expressão, conceito ou idéia. Mas a sociedade helênica estava longe de ser uma sociedade sem contradições, ou até mesmo um modelo de democracia que o mundo contemporâneo pudesse se espelhar. As ditas tarefas menos nobres - atividades produtivas - eram destinadas aos escravos, metécos e estrangeiros, enquanto os cidadãos ficavam livres, no ócio contemplativo, participando do contexto político citadino. Assim, quanto mais avançamos no tempo, a democracia e a cidadania daqueles tempos gregos desvanecem-se. Do contrário colocariam em jogo os lindos sonhos de nossa época, dentre os quais a igualdade e a liberdade de todos; elementos sem os quais tornam a cidadania uma expressão apenas simbólica..

As cidades modernas, bem diferente das primeiras cidades, que na verdade eram pequenos povoados bem próximos ao campo; onde se vivia uma vida impregnada de valores e crenças rurais, diferenciam-se pela questão da urbanização. KINGSLEY DAVIS in: “A urbanização da humanidade” esclarece:

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“A urbanização e o crescimento das cidades ocorrem conjuntamente, o que ocasiona certa confusão (...). O processo de urbanização - passagem de uma forma...

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