A eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas: o caso da relação de emprego

AutorIpojucan Demétrius Vecchi
Páginas97-116

Page 97

1. Introdução

No presente texto faremos uma breve abordagem sobre um tema de grande relevância na atualidade que é o da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, em especial nas relações de emprego.

Para isso, analisaremos o assunto tendo por pano de fundo uma concepção hermenêutica do Direito, na qual interpretação e aplicação estão intimamente ligadas, fazendo parte do processo de concretização do Direito e somente sendo possíveis diante do caso concreto e de seu contexto.

Faremos, em um primeiro momento, uma abordagem geral do tema para, então, logo após, adentrarmos na análise da eficácia dos direitos fundamentais “inespecíficos” nas relações de emprego, finalizando com a análise da aplicação do devido processo legal nas relações de emprego.

2. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas

A doutrina e a jurisprudência têm constatado que, não raras vezes, não é o Estado o “grande vilão” frente aos direitos fundamentais, mas sim sujeitos privados, especialmente quando dotados de poder (social ou econômico) que se apresentam como “inimigos” desses direitos. Aliás, nos Estados Democráticos de Direito com cunho social, como o nosso1, o

Estado deve atuar como “amigo e protetor” dos direitos fundamentais, muitos deles, sem dúvidas, somente podendo ser realmente concretizados com a intervenção estatal.

Page 98

A constatação de que sujeitos privados podem ser efetivos e poderosos inimigos dos direitos fundamentais ganha em importância quando o fenômeno da globalização, sob o viés neoliberal, impõe graves restrições ao poder estatal e aumenta, de forma geométrica, o poder de grandes grupos privados.

Ora, o poder, que nas palavras de Steinmetz pode ser delineado como a capacidade que um sujeito tem de condicionar, restringir ou eliminar a liberdade de outra pessoa2, não se encontra concentrado apenas no Estado, mas sim está entranhado nas diversas relações sociais.

Aliás, cabe lembrar, quanto a isso, a advertência que Roberto Machado3 nos faz na introdução à obra “Microfísica do Poder” de Michel Foucault, um dos grandes estudiosos do fenômeno do poder.

Com efeito, lembra o autor que Foucault, com sua genealogia do poder, demonstrou a insuficiência da ciência política ao limitar ao Estado sua investigação sobre o poder. Como afirma Machado, Foucault evidencia uma relação de não sinonímia entre Estado e poder, demonstrando toda uma rede de relações de poder (poder é relacional) que não são absorvidas ou criadas pelo Estado, mas que subjazem nas relações sociais. Assim, por exemplo, uma das formas mais características de aparecimento do fenômeno do poder nas relações sociais é o chamado poder disciplinar, poder este sempre presente na estrutura empresarial e no controle dos comportamentos dos trabalhadores.

Portanto, o poder nunca deixou de estar presente nas relações privadas do capitalismo, muito embora, com as recentes mudanças econômicas e sociais, esse poder privado tenha se expandido e acentuado sua capacidade de condicionar condutas públicas e privadas.

Ubillos4 afirma, categoricamente, a expansão do fenômeno do poder, o que torna uma ficção o entendimento de que nas relações privadas há o desfrute da liberdade pela simples proclamação do princípio da igualdade formal. Afirma o autor que

... Hoy como ayer la realidad desmiente la existencia de una paridad jurídica en buena parte de los vínculos entablados entre sujetos privados. El derecho privado conoce también el fenômeno de la autoridad, del poder, como capacidad de deter-minar o condicionar jurídicamente o de facto las decisiones de otros, de influir eficazmente en el comportamiento de otros, de imponer la propria voluntad. Basta con mirar alrededor y observar atentamente la realidad que nos rodea. Es un hecho fá-

Page 99

cilmente constatable la progresiva multiplicación de centros de poder privados y la enorme magnitud que han adquirido algunos de ellos ... .

Diante do agigantamento do poder privado, Juan Ramón Capella5 chega a falar de um “soberano privado supra-estatal difuso”. Afirma o autor A denominação de soberano privado supra-estatal difuso se atribui ao titular “privado” de um poder supra-estatal que produz efeitos de natureza pública ou política. Há, efetivamente, um novo poder que impõe aos estados determinadas políticas, sobretudo na configuração do âmbito econômico; esse poder possui um caráter supraestatal.

Ao favorecer o monetarismo, a desregulação, o livre câmbio comercial, o fluxo de capitais sem travas e as privatizações massivas os responsáveis políticos possibilitaram o traspasso de decisões capitais da esfera pública à esfera privada. A transferência de financiamento aos entes da esfera privada da etapa anterior já havia feito intensamente poderosos a estes entes.

Portanto, na sociedade atual não se pode mais desconhecer que o fenômeno do poder alcança não só as relações entre indivíduos e Estado, mas também perpassa as relações travadas na chamada “sociedade civil”, em que poderes privados atuam com desenvoltura e colocam em xeque, muitas vezes, as próprias estruturas e políticas estatais (sobre estas, basta lembrar a possibilidade do dumping social”).

Tendo em conta isso, cabe referir que a expressão “eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas” é utilizada no sentido de afirmar que esses direitos vinculam também os sujeitos privados; que são passíveis de serem invocados e aplicados em determina situação em que não esteja presente o poder estatal. Portanto, esses direitos geram posições passivas (obrigações, deveres) frente a determinados entes, que estão obrigados, vinculados, por esses direitos, sejam públicos ou privados6.

Necessário se faz, ainda, esclarecer que o problema da eficácia dos direitos fundamentais em relações privadas não se apresenta sempre. Ele só surge realmente como tema em algumas circunstâncias, pois, em outras esses direitos são aplicados nas relações privadas sem maiores questionamentos. Por outro lado, também em certas circunstâncias sequer é cabível falar de uma eficácia desses direitos em relações privadas.

Com efeito, existem determinados direitos fundamentais que, sem a menor sombra de dúvida, são aplicáveis nas relações privadas, como, por exemplo, a indenização por dano moral e o direito de resposta previsto no inciso V art. 5º da CF de 1988, ou muitos dos direitos dos trabalhadores, como, por exemplo, o gozo de férias anuais remuneradas, previsto no inciso XVII do art. 7º da CF de 1988. Por outro lado, existem direitos funda-

Page 100

mentais que são somente dirigidos ao Estado. Como exemplos, podemos citar a proibição de juízo ou tribunais de exceção e o direito do brasileiro nato de não ser extraditado, previstos respectivamente nos incisos XXXVII e LI do art. 5º da CF de 1988.

Tendo em conta esses dados, cabe aos intérpretes-aplicadores do Direito, tomar consciência das mudanças contextuais, que mostram que o fenômeno do poder não se restringe à esfera estatal, cabendo, assim, a abertura de novos sentidos para os direitos fundamentais, já que verdadeiros “trunfos frente ao poder”. Os intérpretes não podem ficar atrelados a uma concepção liberal dos direitos fundamentais, que congelou o sentido desses direitos impedindo-os de fundar não só as relações indíviduo-Estado, mas, também, as relações entre privados.

Segundo Pérez Luño a necessidade de se estender a aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas é fruto de dois argumentos básicos. Um deles no plano teórico e outro no plano prático. O teórico é corolário da exigência de coerência interna do ordenamento jurídico e do princípio da segurança jurídica. Afirma o autor, que não admitir a eficácia desses direitos em relações privadas suporia reconhecer uma dupla ética no seio da sociedade, uma aplicável entre os sujeitos frente ao Estado e outra nas relações inter-individuais, totalmente divergentes entre si e com valores diversos, o que é um absurdo. Já o argumento prático, segundo o autor, obedece a um imperativo político contemporâneo e está ligado ao fato da existência de poderes privados (econômicos, sociais, fáticos) muitas vezes mais implacáveis que o Estado na violação desses direitos.7

Diante da ocupação dos espaços públicos por entes privados, implicando no crescimento dos chamados “poderes privados”, a preocupação na busca de proteção dos direitos humanos e dos direitos fundamentais começa a se fazer também presente no chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos. Ora, a proteção dos direitos humanos, diante do agigantamento dos poderes privados, não pode mais se restringir ao campo estatal, pois, de outros centros de poder, podem provir atentados e violações a estes direitos.

Nesse sentido, afirma Cançado Trindade8 que as fontes de violação dos direitos humanos se diversificam, havendo a necessidade de superação da rígida distinção entre Direito Público e Direito Privado para a proteção da pessoa humana. Essa distinção rígida não resiste ao imperativo de proteção dos direitos humanos, seja nas relações interindividuais ou nos atentados praticados por agentes não identificados, conglomerados econômicos,

Page 101

órgãos de comunicação ou outros entes não estatais. Afirma, ainda, que os Estados têm o dever de proteção dos direitos humanos de acordo com a normativa internacional, por meio de medidas positivas, cabendo a responsabilização do Estado no caso de omissão dessas medidas. Aliás, lembra que mesmo o pretenso enfraquecimento do Estado e a erosão de seu poder na atualidade, não podem servir de escusas e não eximem a responsabilização do Estado nos casos de não proteção dos direitos humanos. Esta responsabilidade subsiste mesmo no caso de violação dos direitos humanos praticados por agentes não-estatais...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT