A contribuição de christian thomasius ao processo de formação do ideal dos direitos fundamentais

AutorMarcos Leite Garcia
Páginas417 - 450

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Palavras-Chave

Direito Natural; Racionalismo; Secularização; Direitos Fundamentais; Moral.

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Abstract

The scope of this work is to demonstrate the contribution and influence of the German Christian Thomasius, in the process of forming the ideal of fundamental rights, as well as the construction of the current concept of these rights. The contribution of Thomasius was at the theoretical level of Natural Rationalist Law, with the separation between Law and Morality and the struggle initiated by Thomasius for the humanization of criminal and criminal procedure law and against the processes of witchcraft and heresy.

Key Words

Natural Law; Rationalism; Secularization; Fundamental Rights; Morality.

1. Introdução

Na *elaboração histórica das idéias modernas dos direitos do homem, entre tantos autores, um de suma importância será Christian Thomasius1 , considerado como o iniciador da Ilustração (Aufklärung) na Alemanha2 . A importância de Thomasius na construção do conceito dos direitos do homem pode ser condensada em sua fundamental contribuição na evolução do novo modelo de direito natural, o iusracionalismo, e em sua destacada luta contra os processos de feitiçaria e defesa da humanização do direito penal, sendo o precursor de Montesquieu, Voltaire e do próprio Marquês de Beccaria na crítica ao processo penal da monarquia absoluta. Thomasius juntamente com Grotius, Pufendorf e Wolf será fundamental na construção do qualificado pelo professor Gregorio Peces-Barba gigantesco sistema do iusnaturalismo racionalista3 , tanto em sua esquematização e teorização na razão humana como na transformação do direito natural divino em direito natural secular. Grotius, Pufendorf, Thomasius e Wolf são os autores iniciadores dessa posição, homens de seu tempo, que, já no século XVII e início do XVIII, utilizarão seus esquemas, de acordo com o protagonismo individual característico da burguesia ascendente, para conduzir o novo direito natural, o iusracionalismo, que será a base teórica dos direitos do homem que finalmente serão positivados nos documentos resultantes das revoluções burguesas do final século XVIII4.

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2. Biografia de um intelectual engajado com as causas de seu tempo

Christian Thomasius nasceu em Leipzig em 1655, no seio de uma família intelectual, seu pai era um conhecido professor de filosofia cultor de Aristóteles. Estudou inicialmente em sua cidade natal e posteriormente em Frankfurt quando ouviu lições sobre Pufendorf e conheceu sua obra que influenciará fundamentalmente o início de seu percurso como teórico do direito natural racionalista. De volta a Leipzig, ministrou suas primeiras aulas em alemão, assim inovando, pois até então as aulas eram ministradas em latim5 . Ainda em Leipzig fundou a primeira revista cultural da Alemanha6 . Depois de ruidosos problemas com os teólogos luteranos conservadores, por culpa principalmente de seu novo método de ensinar e de sua obra de caráter iluminista, foi deposto de seu cargo de professor e mudouse para Halle em 1690 para ingressar como docente na Academia de nobres (Ritterakademie). Em Halle, cidade na qual reinava uma maior liberdade e tolerância, em 1694 foi criada uma Universidade, que acabaria por converterse em um centro de cultura do país, da qual Thomasius seria seu reitor e permaneceria até sua morte em 1728.

Thomasius é considerado por muitos como o iniciador do Iluminismo na Alemanha e por isso o autêntico reformador intelectual de seu país7 . Das muitas coisas que se hão dito de sua trajetória o mais destacado seria que, além de iniciador do Iluminismo, Thomasius foi um intelectual sem misérias, como o qualifica o título de um dos escritos mais interessantes sobre sua obra de autoria de Ernest Bloch8, exatamente por seu espírito inquieto, reformista e crítico com as idéias de sua época quando de maneira destacada e com muita personalidade colocouse à frente de seu tempo defendendo a tolerância e a liberdade, especialmente a liberdade de pensamento do indivíduo frente à religião e ao Estado. Engajado com o seu tempo, sem misérias e sem a mesquinharia do viver fácil daqueles que dizem sim ou fazem vistas grossas diante das misérias de sua época, incomodado com a intromissão por parte do Estado absoluto e da Religião em assuntos particulares da vida do indivíduo, através da punição por atos relativos à vida privada de cada um, tratou de teorizar sobre a separação do Direito da Moral, além de criticar a intolerância religiosa e pedir pela humanização do Direito Processual penal. Norberto Bobbio relata que “[...] a paixão fundamental da vida dePage 420Thomasius, a qual revela seu iluminismo reformador, é a liberdade de pensamento. Em torno a esta paixão se move toda sua obra de filósofo e jurista”9 ; Manuel Segura Ortega diz que “[...] sua vida foi uma demonstração constante de luta contra o dogmatismo, a superstição e a ignorância”10. Um homem muito incômodo ao seu entorno adormecido e servil, como relata Ernest Bloch, que se houvesse cumprido os desejos de seus contemporâneos, o irritante inovador teria sido aniquilado11. Sem nenhuma dúvida, sua influência é percebida por sua obra extensa, devida à precocidade de seus primeiros escritos, em diversos âmbitos da cultura, seja na filosofia, no Direito ou na religião.

3. O processo de formação do ideal dos direitos fundamentais

Dentre as linhas de evolução dos direitos fundamentais desenvolvidas pelo professor Gregorio Peces-Barba estariam os processos de positivação, de generalização, de internacionalização e de especificação12. Antes, porém, do início do processo de positivação, ou melhor, do primeiro processo de positivação levado a cabo com as revoluções burguesas do século XVIII, nos parece acertado e didático falar em um anterior processo de evolução que seria o qual chamamos de processo de formação do ideal dos direitos fundamentais. Esse processo de evolução estaria diretamente relacionado com a fundamental pergunta da filosofia dos direitos fundamentais que seria: qual deve ser seu conteúdo? Essa seria, em nossa opinião, a terceira pergunta fundamental relativa aos direitos, uma vez que a primeira e segunda respectivamente seriam: o por quê (?) e o para quê (?) dos direitos fundamentais13.

Esse processo de formação do ideal dos direitos fundamentais é iniciado na época que o professor Peces-Barba chama de trânsito à modernidade14. Para o autor espanhol, os direitos fundamentais são um conceito do mundo moderno resultantes exatamente das condições que surgem justamente nessa época de trânsito da Idade Média para a Idade Moderna. O trânsito à modernidade será um longo período, que se iniciará no século XIV e chegará até o século XVIII, no qual pouco a pouco a sociedade irá se transformando e preparando o terreno para o surgimento dos direitos fundamentais. Com as mudanças que se darão no trânsito à modernidade, a pessoa reclamará sua liberdade religiosa,Page 421intelectual, política e econômica, na passagem progressiva desde uma sociedade teocêntrica e estamental a uma sociedade antropocêntrica e individualista.

No trânsito à modernidade as estruturas do mundo medieval serão progressivamente substituídas por umas novas, ainda que algumas permanecerão até as revoluções liberais do século XVIII. Ao longo do período em questão é quando se formará a, chamada pelo professor Peces-Barba, filosofia dos direitos fundamentais como aproximação moderna da dignidade humana, em meio das feições características das mudanças que se influem e se entrelaçam. Estas se dariam resumidamente nos campos da economia, da política e da mudança de mentalidade. A profunda mudança na situação econômica com o surgimento e progressivo amadurecimento do capitalismo e com o crescente protagonismo da burguesia, favorecerá a mentalidade individualista diante da visão do homem em estamentos15.

No campo político, o pluralismo do poder será substituído pelo Estado como forma de poder racional centralizado e burocratizado. O Estado é soberano, na construção doutrinal que se inicia com Jean Bodin, ou seja, o Estado não reconhece superior e tem o monopólio no uso da força legítima. Seu crescente poder como Estado absoluto e a utilização do Direito como intrumentum regni exigirão como antítese, para garantir ao individuo um espaço pessoal, a reclamação de uns direitos. Mas, o Estado absoluto é uma etapa imprescindível. Seu esforço de centralização, de robustecimento de uma soberania unitária e indivisível, sua consideração do indivíduo abstrato, o homo juridicus como destinatário das normas, criará as condições necessárias para o aparecimento dos direitos fundamentais positivados exatamente com as revoluções liberais contrárias ao Estado absoluto16.

Uma nova mentalidade, impulsionada pelo humanismo e pela Reforma, se caracterizará pelo individualismo, o racionalismo e o processo de secularização. Em concreto, a Reforma protestante, com a ruptura da unidade eclesial, gerará o pluralismo religioso e a necessidade de uma fórmula jurídica que evite as guerras por motivos religiosos. Neste espaço, a tolerância, precursora da liberdade religiosa, será o primeiro direito fundamental17.

Todos estes elementos citados, e com o fim do domínio intelectual da teologia, o auge da nova ciência e a exaltação do naturalismo,Page 422em suas influências complexas, desembocaram em uma importância...

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