A 'Certeza' da Paternidade Através da Perícia Genética

AutorIonete de Magalhães Souza
Ocupação do AutorGraduada em Direito e Pós-Graduada lato sensu pela Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes. Advogada
Páginas91-120

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1 Origem genética e cidadania

Para os fins de se realizar justiça é importante conhecer a história do reconhecimento da paternidade, uma vez que sempre estiveram em jogo a proteção, a saúde, a igualdade, o interesse pessoal e social de quem tem direito a uma satisfação da Justiça. Com as lutas, mudanças e crescimentos, aprende-se a valorizar a conquista.

A partir do direito romano, como fonte originária de vários ramos do direito (especialmente no Ocidente), veem-se que as relações civis aconteciam em torno da família, particularmente organizada com deuses e cultos exclusivos. O culto era transmitido de varão a varão e o casamento era o cerimonial de admissão da mulher a ele. A filiação não consistia na consanguinidade e a família romana apresentava as características de uma entidade política, fundada no princípio da autoridade. Com tais conceitos, é coerente que essa sociedade não atribuísse efeito ao reconhecimento de paternidade, não obstante a licitude de o pai realizá-lo, porque o “filho natural” continuaria a ser um estranho, mesmo após o reconhecimento. Portanto, o filho nascido de uma mulher que não tivesse sido associada ao culto do esposo, pelo casamento, não podia ter parte nesse culto e na continuidade da família.

Foi sob o império de Constantino que surgiu o primeiro meio geral de tornar legítimo e colocar sob o “pátrio poder” os

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“filhos naturais”, sendo que essa parte da legislação romana se desenvolveu nos impérios precedentes e deu continuidade nos posteriores.

A influência do Cristianismo foi tão grande sobre as últimas leis romanas, e sobre as leis de todos os países, que se torna indispensável não citar as condições dos “filhos ilegítimos” em face dos legisladores católicos da Idade Média. Mas os costumes foram minando, pouco a pouco, o rigor dos preceitos canônicos e, a jurisprudência, tendo praticamente em vista as ações alimentares, foi-se insurgindo contra os princípios contidos nas Decretais.

No século XVII já se admitia a prova de paternidade, inclusive por indicação da mãe, durante a gravidez, com efeito alimentar e não para se fixar definitivamente a paternidade. Caio Mário da Silva Pereira cita antigas legislações sobre o tema, oriundas de vários países (PEREIRA, 1977, p. 15-21)1:

  1. no Direito Francês de 1793, a investigação de paterni-dade era proibida; tendo persistido até a Lei de 16 de novembro de 1912, quando foi alterado;

  2. no Código Argentino de 1860 o “filho natural” não faz parte da “família legítima” e a ação só pode ser proposta em vida do pai;

  3. no Código Italiano de 1865 é vedada a pesquisa paternal. Mas o Código de 12 de dezembro de 1938 passou a admitir o reconhecimento judicial da paternidade, desde que precedido de ação de investigação;

  4. o Código Chileno de 1865 permite o reconhecimento dos “filhos ilegítimos” e admite a investigação de paternidade para fins alimentares;

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  5. no Código Português de 1867 há a proibição da investigação de paternidade, salvo nas hipóteses de reconhecimento por escrito do pai (confissão ou declaração), posse de estado, além do estupro ou do rapto. Posteriormente, a Lei Portuguesa n.º 2, de 25 de dezembro de 1910, chamada de “proteção aos filhos”, permite a investigação paternal;

  6. o Código Uruguaio de 1868 também proíbe a investigação de paternidade, a não ser em casos de rapto ou violação. O filho reconhecido tem direitos sucessórios e alimentares;

  7. no Código Civil Alemão de 1896 há a permissão da investigação de paternidade e considera o “filho natural” parente dos parentes de sua mãe, mas estranho aos parentes paternos. Não lhe concede direitos sucessórios;

  8. no Direito Inglês, o “filho ilegítimo” não possui direito sucessório e é considerado uma pessoa sem ascendentes;

  9. no Código Suíço de 1907 admite-se a “filiação ilegítima paterna”, por reconhecimento ou julgamento, podendo o filho usar o nome de família do pai, receber pensão alimentar e direitos sucessórios;

  10. o Direito Soviético não só equipara os “filhos naturais aos legítimos”, como também suprime toda diferença jurídica entre uns e outros.

    Outras legislações estrangeiras ainda poderiam ser apresentadas, mas as indicadas bem exemplificam as diferenças, dificuldades e evoluções no decorrer das etapas da investigação e mesmo do reconhecimento voluntário dos filhos não advindos de um casamento civil.

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    O movimento doutrinário, no Brasil, a partir do século XIX, liderada por Clóvis Beviláqua, criticava os preconceitos contra os “ilegítimos” e reivindicava para os “filhos naturais” um tratamento humano (PEREIRA, 1987, p. 199). Buscava-se o reconhecimento dos “filhos naturais” e a permissão para a investigação de paternidade. O Código de 1916 estabeleceu as duas espécies de reconhecimento: voluntário e compulsório. O “filho ilegítimo” passou a ser reconhecido pelos pais, conjunta ou separadamente.

    A Lei n.º 883, de 21 de outubro de 1949, veio possibilitar a legitimação do filho concebido fora do casamento, considerada liberal à época. Mas necessitava ainda mais de evoluções, especialmente na linha de amparo social e equiparação integral com os “filhos legítimos”. A investigação de paternidade tem lugar quando não há reconhecimento voluntário do genitor, garantindo o direito à existência e realizando justiça quanto ao nome, alimentos, sucessão, etc. Caracterizar-se-á, assim, como uma ratificação de direitos humanos fundamentais.

    A partir de 1980, a cidadania veio se ampliando em espaços, conquistados muitas vezes pelos movimentos sociais. O perfil da própria cidadania está em aberto para a construção o mais consolidada, ampla e eficaz possível, em que a efetividade de direitos civis e políticos conduz a sociedade a uma participação mais ativa da vida pública.

    Cidadania é exercer direitos garantidos pelo Estado, mas também respeitar deveres para com a coletividade. Exigem-se, para tanto, condições mínimas nas áreas da saúde, educação, bem-estar econômico e segurança. Infelizmente, grande parte dos direitos contidos na CRFB/1988 não tem aplicação concreta no dia a dia de muitos cidadãos brasileiros. A título ilustrativo pode-se mencionar a Lei n.º 9.265, de 12 de fevereiro de 1996,

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    que trata da gratuidade dos atos necessários ao exercício da cidadania, entre eles, o direito ao registro civil de nascimento, de forma gratuita, que é desrespeitado e desconhecido por grande parte da população2.

    Thomas Humphrey Marshall se apresenta como um ícone para se conhecer o sentido do termo “cidadania”. Essa é dividida entre direitos civis, políticos e sociais, o que seria a base da diferenciação institucional da própria sociedade (MARSHALL, 1988, p. 9). Entretanto, para a Organização das Nações Unidas (ONU) não existem categorias de direitos (civis, políticos e sociais), por entender que a realização plena dos direitos passa por todas as ditas categorias, compondo um conjunto indivisível. Não obstante as divergências comuns, pode-se dizer que a questão da classe social, em cada momento ou fase vivida pela humanidade, desafia o conceito de cidadania.

    A CRFB/1988, no seu artigo 227, § 6º, estabelece um princípio informativo de igualdade dos filhos no exercício de seus direitos: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. E no Código Civil Brasileiro de 2002 (CC/2002), com vigência iniciada em 2003, consolidam-se vários dispositivos Constitucionais.

    Em 29 de dezembro de 1992, foi sancionada a Lei n.º 8.560, que regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento e suas devidas providências, o que não deixou de ser um importante passo em busca da legitimidade cidadã.

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    Chega-se ao avanço dos métodos técnicos, que foram paulatinamente ocorrendo, com maior ou menor probabilidade, como no caso do sistema de grupos de sangue - ABO, dos fatores no sangue - Rh ou pelo sistema de histocompatibilidade humano -HLA (Human Leukocytes Antigens).

    Hoje, os testes de paternidade pelo exame direto em ADN (ácido desoxirribonucléico) ou DNA, que foram introduzidos no Brasil em 1988, pelo Núcleo de Genética Médica de Minas Gerais (GENE), situado na cidade de Belo Horizonte, permitem tanto a exclusão quanto a inclusão de paternidade, com confiabilidade superior a 99,9999%. Tal representação numérica é suficiente para externar o grau de “certeza” da paternidade. Portanto, um resultado considerado absoluto. Falar-se-á um pouco mais desses exames em item específico. O citado laboratório foi pioneiro no Brasil na realização de diversos exames genéticos, entre eles a determinação de paternidade pela técnica das impressões digitais de DNA e PCR (Reação em Cadeia da Polimerase). Essa técnica permite a utilização mínima de material biológico para a realização do exame.

    Se é desumano não ter, o filho, o direito à paternidade, injusta também é a declaração de uma filiação inexistente. Seria, ainda, por demais desumano e vexatório admitir-se que o direito material ou processual – que não é um direito natural e imutável, e sim circunstancial – pudesse impedir a verdadeira paternidade por simples questão formal, ou seja, não se declarar uma paternidade existente pela insuficiência de provas. Trata-se, portanto, de direito humano fundamental.

    A cidadania, assegurada no artigo 1º da CRFB/1988, possui conceito amplo, que passa necessariamente pelos direitos humanos e pela postura ética. Dessa forma, fortalece-se o Estado de Direito pelas vias de acesso à educação, à segurança, à dig-

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    nidade e a tantas outras garantias. A humanidade tem sede de ética e de cidadania. A educação é um meio capaz de minimizar tal sede, contribuindo de forma efetiva para a sua formação. Defender e divulgar direitos humanos é tarefa...

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