A globalização e o ressurgimento da lex mercatoria

AutorCícero Krupp da Luz
Páginas227-242

Cícero Krupp da Luz. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS com bolsa CNPq. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela UNISINOS, onde foi bolsista de Iniciação científica do CNPq. Também é membro-colaborador do Grupo de Pesquisa Teoria do Direito, que tem o apoio e financiamento do CNPq e da UNISINOS. “O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – Brasil”.

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1 Introdução

A globalização é a ruptura mais radical que a modernidade e a contemporaneidade presencia desde o final do século XX. Os maiores problemas que enfrentamos em nossa era – meio ambiente, terrorismo, pobreza – para citar alguns, podem ser relacionados a esse fenômeno. Mas é necessário bastante cuidado e sutileza para não cometer enganos e também não ser enganado com a globalização.

Um dos objetivos desse artigo será buscar compreender as mais importantes concepções que levaram ao planeta se tornar global, tanto no seu âmbito político e tecnológico quanto aos reflexos para a sociedade como um todo. Esse item terá um caráter desvelador e questionador, pois sugere, mas não determina que a globalização tenha sido um projeto político com o objetivo de trazer mais riquezas em nível global, mas que trouxe relativos benefícios a poucos, inclusive aos países mais ricos.

Esses reflexos não se deram exclusivamente no plano social ou ambiental. O aspecto político ao interferir na ordem global também sofre mudanças, aliás, deixando claro que uma característica da globalização é a indeterminação. O Estado sofre mudanças significativas em relação a sua soberania. Por isso a governança é uma das possibilidades de constituição de um melhor aproveitamento dos recursos estatais e também de um projeto onde a sociedade civil seja mais participativa impondo também limites ao poder econômico.

Inclusive o sistema econômico terá tanta preponderância que irá reconfigurar planos jurídicos. A lex mercatoria tem uma sobrevida e ganha muita força com essa nova estruturação global. Esse direito tem características que remetem ao medievo, onde os Estados pouco valiam, forçando a criação de regras próprias frente à dificuldade atual de convergências políticas comerciais.

A lex mercatoria irá estabelecer possibilidades novas para o direito, o Estado e para as instituições que esparsamente iniciam um espontâneas produções jurídicas inserindo as regras que faltam no jogo comercial internacional, e para isso resta à crescente utilização de cortes arbitrais que tem o poder de decisão de crescente validade jurídica.

2 Globalização
2. 1 A gênese dentre o projeto político e a propulsão tecnológica

Verifica-se uma forte modificação na estrutura global da sociedade no final do século XX. A revolução tecnológica, o fim da guerra fria, e a liberalização dos mercados nacionais são apontados como os principais motivos para oPage 229 desencadeamento de um processo vertiginoso que não apenas reordenou a economia mundial, mas estabeleceu novos paradigmas para todos os sistemas da sociedade, no direito, na religião, nas artes, na política e na ciência: a globalização. “A globalização é um fenômeno complexo que teve efeitos de grande alcance, com uma força benigna e irresistível que pode ou não oferecer prosperidade econômica às pessoas em todo o mundo.” (WORLD COMMISSION ON THE SOCIAL DIMENSION OF GLOBALIZATION - WCSDG, 2004. p. 27)

Esse desenvolvimento tem uma decisiva natureza econômica, sendo referido como um processo de expansão do mercado global, tendo, portanto, o sistema econômico como seu líder em grande escala. A partir dessa globalização econômica, seguiu-se a redistribuição da geografia industrial do planeta, fazendo com que certas inovações tecnológicas fossem garantidas como fontes constantes de expectativas de maior lucro.

Dentre suas características fundamentais estão a expansão do comércio, o investimento externo direito, fluxos financeiros e a tecnologia. A expansão do comércio tornou-se mais rápida que o próprio crescimento do PIB mundial de maneira não uniforme, onde países mais industrializados e de mão de obra qualificada tendem a levar vantagens. O investimento externo direto foi possibilitado principalmente pela revolução tecnológica, aliada a uma rápida integração dos mercados financeiros, que permitiu conhecer melhor e mais rápido os mercados estrangeiros, enquanto favoreceu o desenvolvimento de transações financeiras em todo o mundo 24 horas do dia. (WCSDG, 2004, p. 28, 32).

As indústrias de alta tecnologia e de alto nível de conhecimentos são os setores de crescimento mais rápido na economia global. E os seus efeitos se refletem nos diferentes setores econômicos, tipos de empresas, categorias de trabalhadores e grupos sociais. Muito embora apenas os países industrializados com uma sólida base econômica obtiveram benefícios substanciais da globalização, naqueles em vias de desenvolvimento não se observa nitidamente esses índices, com exceção da China e Índia. (WCSDG, 2004, p. 33, 38).

Além do aspecto econômico, a globalização foi impulsionada também pela Revolução Tecnológica da década de 70, que foi intensificada no final do século XX (CASTELLS, 2002). Observa-se uma grande gama de novas informações, que são difundidas de maneira jamais vista, com muita velocidade e de variados modos: tempo/espaço tem suas dimensões alteradas. “No universo de software da viagem à velocidade da luz, o espaço pode ser atravessado, literalmente, em ‘tempo nenhum’; cancela-se a diferença entre ‘longe’ e ‘aqui’. O espaço não impõe mais limites à ação e seus efeitos contam pouco, ou nem conta”. (BAUMAN, 2001, p. 36).

Embora a tecnologia tenha sido um marco essencial para o plenoPage 230 desenvolvimento da globalização da maneira que está sendo realizada, não podemos perder de vista que os Estados nacionais colaboraram ativamente para que a globalização fosse realizada, isto é, a globalização não ocorreu por acaso dos acontecimentos, não foi um acidente. “Globalização não é ‘tecnologicamente’ direcionada, mas politicamente ‘projetada’ visando a estabilidade do capitalismo através de administração econômica global.” (AXTMANN, 2004, p. 274.)

2. 2 Tanto Estado quanto Direito

Dentro desse momento histórico, se seguirmos o padrão moderno dos grupos sociais divididos a partir de seu Estado-nação, observaremos muitas transformações em todos os seus sistemas sociais, de maneiras próprias e não necessariamente simultâneas, principalmente em elementos de sua soberania: a relatividade de suas fronteiras com blocos econômicos, movimentos de imigração, choques culturais tecnológicos ocidentais:

A interação e a divisão, a globalização e a territorialização, são processo mutuamente complementares. Mais precisamente, são duas faces do mesmo processo: a redistribuição mundial de soberania, poder e liberdade de agir desencadeada (mas de forma alguma determinada) pelo salto radical na tecnologia da velocidade. (BAUMAN, 1999. p. 77.)

Ainda assim, é importante observar que a própria noção de soberania deve ser desmistificada de uma idéia construída simbolicamente a partir de 1648, com a Paz de Westphalia, onde o Estado deteve soberania dentre de seu território, com exclusiva autoridade dentro das linhas de suas fronteiras geográficas (KRASNER, 2001, p.17). “A noção de uma era dourada da soberania no qual os Estados continham ‘suas’ sociedades dentre de fronteiras territoriais é um mito. É incrivelmente surpreendente que, na base dessa dicotomia, tantos teóricos heterodoxos tendem a associar soberania e ‘globalidade’ com duas fases diferentes do desenvolvimento histórico” (LACHER, 2003, p. 529).

O corpo soberano do Estado talvez nunca tenha existido, mas de alguma maneira justificava ações de Estados, principalmente relacionados a Guerras e a movimentos colonizadores. Ou mais precisamente a soberania do Estado-nação e o seu relacionamento proporcional ao território e a formação do povo teve desenvolvimentos diferentes, em diferentes partes países do mundo, que irá inevitavelmente mudar com a globalização.

Portanto, o Estado-nação soberano da modernidade entra em colapso, ou ao menos seu conceito é transformado. Não pode mais se afirmar conceitos anteriores a uma reflexão em torno de um aporte crítico em torno da soberania, mesmo quePage 231 nunca tenha sido realizada, da mesma forma que se deve discutir o Estado de Bem-Estar Social ainda que nunca tenha sido plenamente realizado em muitas partes do mundo. “Com a ‘globalização’, verifica-se uma ruptura brutal e radical com um modo de pensar e de agir ligado à ‘modernidade’. Se não se pode ainda alegar que o direito está se tornando global ou universal, pelo menos está em mutação” (ARNAUD, 2006, p. xi). As nações perdem uma boa parte da soberania que detinham e os políticos perderam muita da sua capacidade de influenciar os acontecimentos (GIDDENS, 2001, p. 21).

Os poderes do Estado são delegados “para cima” para órgãos supraregionais e internacionais, “para baixo” para níveis locais regionais, urbanos e também “para fora,” como um resultado de cooperação transfronteiriça, para alianças...

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