Das Relações entre o Direito e a Moral (Um Ensaio sobre o Pensamento de Kant)

AutorFabiana Silveira Karam
CargoJuíza de Direito dos Juizados Especiais - Curitiba
Breve introdução ao tema

As relações entre o Direito e a Moral1 constituem dos mais importantes assuntos de que se ocupa a Filosofia do Direito.

A Filosofia do Direito não é uma disciplina jurídica ao lado de outras; não é sequer rigorosamente uma disciplina jurídica. É um ramo da Filosofia que se ocupa do Direito.

A Filosofia como disciplina e forma de atividade mental do homem não é aplicada somente a certos e limitados setores da realidade.

Pode-se dizer que a Filosofia é um certo prisma de visão das coisas, um certo modo de olhar para elas e para a realidade e de sobre estas interrogar. Por ela vemos levantarem-se determinados problemas e dúvidas, com que não se preocupam as ciências ou já os pressupõem resolvidos.

Esta visão ou contemplação, ainda que das coisas do Direito, é precisamente a filosófica – nos termos em que foi definida.

É uma transposição do jurídico para o campo daquelas interrogações fundamentais que se impõem a respeito de tudo o que possa ser objeto do pensamento – numa palavra – para o campo das preocupações habituais da Filosofia.

A Filosofia do Direito não pode ser cultivada, em harmonia com o que fica exposto, por homens que sejam apenas juristas.

Terá de ser cultivada por homens que, tendo alguma coisa de juristas, sejam sobretudo filósofos.

E um dos grandes desafios aos jusfilósofos sempre foi o das relações entre Direito e Moral.

Escreveu JELLINEK que ele era o Cabo Horn da ciência jurídica: perigoso escolho contra o qual muitos sistema têm naufragado.

O mundo antigo não conheceu a perfeita separação entre os domínios da Moral, do Direito e da Religião.

Entre os preceitos jurídicos de ULPIANUS, por exemplo, achamos honeste vivere, que é antes um preceito moral. CELSO define o Direito como ars boni et aequi.

Mas o grande jurisconsulto PAULUS nos legou uma distinção: non omne quod licet honestum est (nem tudo o que o direito permite é conforme a moral).

Apenas em época recente, encontramos uma teoria genuína desta distinção. THOMASIUS, em 1705, foi o primeiro a encarar a questão. Para ele, a Moral respeitava apenas ao forum internum, à vida interior; o Direito, ao forum externum, à vida exterior. Daí resultava que a Moral não é coercível e o Direito é coercível.

O seu pensamento foi levado a extremos e J. A. FICHTE chegou a cavar um valo quase intransponível entre o Direito e a Moral.

KANT salientou o aspecto da exterioridade do Direito, de modo especial. Realçou os motivos da ação e o seu aspecto físico. Os motivos constituem as ações internas, campo da Moral. O aspecto físico é foro externo, o campo do Direito. Mas o Direito também leva em consideração a vida interior do homem quando, por exemplo, procura discernir a boa-fé, o dolo ou a culpa.

HEGEL não separa – como KANT – o ser da Moral do dever ser do Direito. Ambos partem da mesma premissa, que é a LIBERDADE. Mas, para HEGEL, a liberdade é o signo do Direito: o sistema do Direito é o reino da liberdade realizada.

Mas esta liberdade não pode ser plena ou perfeita. Entra ela em conflito consigo mesma e se supera pelo conceito oposto (antítese), que a depura e a aperfeiçoa: faz-se então moralidade. O Direito se manifesta no mundo do espírito objetivo, a Moral é o momento subjetivo do dever. Deste conflito entre a tese (causa livre) e da antítese (dever moral) surge a síntese: os costumes.

Ao sistema dos costumes pertencem três formas de organização: família (espírito natural), sociedade (espírito fenomenal) e Estado (espírito orgânico).

Certas tendências filosóficas quase acabaram por cavar verdadeiro abismo entre a Moral e o Direito.

Mais recentemente tem tido ampla aceitação a tese do mínimo ético formulada por JELLINEK e desenvolvida, entre outros, por BENTHAM.

O Direito seria parte da Moral. Um conjunto de normas éticas necessárias à vida social e, por isso, dotadas de certas características formais. O Direito deve ser precisamente determinado. A Moral, porém, vive principalmente na consciência individual. Por este motivo, os elementos essenciais da ética adquirem consistência jurídica; os não essenciais permanecem na forma moral.

BENTHAN deu formas geométricas às idéias de JELLINEK. Representou a Moral e o Direito por dois círculos concêntricos. O Direito teria o mesmo centro que a Moral, mas não a mesma circunferência. O círculo menor representaria o campo do Direito e o maior o campo da Moral.

Mas a inclusão de todo o Direito no campo da Moral é desarrazoada. Como dizia PAULUS, nem tudo o que é permitido pelo Direito está de acordo com a Moral. O Direito, verbi gratia, nega execução à dívida prescrita. Mas o devedor tem a obrigação moral de pagá-la.

Mais perfeita que a figura de BENTHAM parece a imagem do DU PASQUIER, que representa o Direito e a Moral como dois círculos secantes: a área comum contém as regras que, concomitantemente, apresentam qualidade jurídica e caráter moral.

As primeiras codificações deram primazia à letra da lei, que haveria de ser interpretada e aplicada na sua quase literalidade.

Os novos Códigos porém abriram largos espaços à eticidade, porquanto a aplicação da norma não deve prescindir de certos valores que a flexibilizem, ao invés de pretender uniformizar a realidade.

A norma não é mais um comando estático no tempo. Quando nela se fala, faz-se referência àquela interpretada, vivente, expressão do processo cultural do qual nasceu e sobre o qual é destinada a incidir. Singular é o seu destino: ela exprime uma realidade historicamente passada e é chamada, ao contrário, a intervir em uma realidade presente, às vezes muito diversa daquela originária.

Como esta nova perspectiva, sem dúvida o Direito codificado em seu todo passou a ser permeado pela Moral. Apesar da variação também da Moral no tempo e no espaço, os grandes preceitos morais se transformaram em normas jurídicas: os bons costumes, a boa-fé, a lealdade comercial, a eqüidade, foram consagrados pelo direito de quase todos os povos, sem discrepância.

Objeto deste ensaio é o de estudar o tema das relações entre o Direito e a Moral no pensamento de um dos mais geniais filósofos que a humanidade conheceu: Immanuel Kant (1724 – 1804).

A sua concepção está inserida nas premissas do um sistema filosófico, o que torna atraente o desafio, pois não se trata apenas de buscar diferenciações pontuais e alguns pontos de conexão entre as duas categorias, senão a de entendê-las dentro de um universo muito mais amplo.

1. As premissas inovadoras da filosofia kantiana

Se KANT não pode ser reputado como o fundador da Filosofia moderna – que se inicia com DESCARTES e BACON – merece ao menos ser considerado como seu grande renovador. Com ele, a Filosofia conhece nova fase. Para o seu pensamento convergiram diversas correntes filosóficas, inclusive antagônicas entre si, como o idealismo, o empirismo e o positivismo. Procurou conciliar o materialismo e o idealismo em um único sistema, embora de direções filosóficas heterogêneas e opostas. Os materialistas históricos acusam que o pensamento de KANT tem sido usado como arma poderosa pelos seus críticos, ao fazerem considerar a matéria como coisa em si (noumenon) e pois de todo incognoscível. Mas, apesar das inevitáveis discordâncias, KANT é, sem dúvida, um dos maiores filósofos de todos os tempos.

A importância de sua obra excede em muito os limites deste ensaio. Mas não se pode falar nas relações entre Direito e Moral sem se destacar a importante contribuição que KANT deu ao tema.

Convém situar algumas de suas premissas, para entender a lógica com que abordou a questão.

KANT se propusera a indagar sobre as condições, os limites e a validade do conhecimento. Antes dele, a Filosofia cuidava mais da ontologia. Com KANT, passou do estudo do ser, para o do conhecer. Para ele, não conhecemos a coisa em si (noumenon), senão pela forma pela qual ela é apreendida (fenomenon).

O conhecimento é pois relativo, pois não se conhece a realidade, apenas a sua aparência.

Se isso se passa no campo da Filosofia teorética, especialmente no campo da gnoseologia, no campo da prática (no mundo da ação) o homem já se encontra em melhores condições de chegar à certeza absoluta, que o conhecimento teorético não lhe pode dar.

KANT expõe os problemas fundamentais do Direito na Metafísica dos Costumes (1797), obra dividida em duas partes, intituladas Doutrina do Direito e Doutrina da Virtude. Torna-se também necessário o conhecimento da Crítica da Razão Prática (1788) e da Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), onde KANT expõe a sua famosa teoria da moral do dever. Para melhor conhecimento das relações entre Direito e Estado, é importante a leitura do apêndice Sobre a Paz Perpétua (1795), onde KANT expõe o seu projeto para a solução de controvérsias internacionais.

2. A lei do dever moral: o imperativo categórico

No mundo prático, temos consciência de um dado apriorístico, fruto de uma revelação, que não cabe propriamente dentro do conhecimento científico, que nos ensina o que devemos e o que não devemos fazer. KANT assim afirma o primado da razão prática sobre a teorética.

Para KANT existem certas concepções a priori, anteriores à própria experiência e cuja existência é admitida sem necessidade de comprovação. Uma dessas concepções apriorísticas é a liberdade, noção metafísica da qual não se pode dar uma demonstração teorética.

A liberdade, é pois, um postulado. Mas esta liberdade não pode ser incondicional. Quais então os limites da liberdade? Para KANT, se a causa livre, inerente à razão humana, obedecesse a alguma lei, livre já não seria. A causa - para ser livre – não pode estar sujeita à coação. KANT encontra os limites da liberdade em uma lei que não constranja, em uma lei que é acatada porque...

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