Categorização do lote

AutorJosé Roberto Fernandes Castilho
Páginas127-155

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Todo o Cidadão tem em sua casa um asilo inviolável. De noite não se poderá entrar nela, senão por seu consentimento, ou para o defender de incêndio, ou inundação; e de dia só será franqueada a sua entrada nos casos, e pela maneira, que a Lei determinar.

Constituição Imperial de 1824, art. 179/VII.

1. Certas categorias

O termo “lote” exprime conceito e, como tal, expressão genérica e abstrata que, no plano da realidade, abrange inúmeras situações específicas e particulares. De fato, pode ele ser categorizado com base no zoneamento urbano, expressão do planejamento, ou com base nas características concretas da parcela, seja de posição na quadra, seja de “transformação física” (Parada), de destino atribuído, etc. Do zoneamento funcional – que limita o potencial do lote em nome da ordenação urbana – cuidaremos no capítulo seguinte. Quanto ao segundo critério, várias podem ser as categorias em que se acha inserido o lote, de acordo com o desenho do parcelamento e o destino efetivamente dado a ele – e aqui o termo “categoria” parece melhor empregado já que, no sentido aristotélico de “gêneros supremos”, abrange formas preexistentes à própria ideia de ordenação urbana, cujas diretrizes incidirão sobretudo a posteriori. Longe de ser gratuito, o advérbio é empregado porque, se o zoneamento institui pré-condições para o loteamento, o fato é que ele pode ser alterado posteriormente, mas respeitará as características físicas ou posicionais dos lotes, sob pena de implicar indenizações.

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Uma primeira (e suposta) categoria, já referida no capítulo anterior, separaria o “lote encravado” dos demais. No entanto, como já vimos, a expressão “lote encravado” é uma contradição nos termos porquanto todos os lotes devem ter acesso à via, condição essencial para sua ocupação. O Código “Saboya” fazia a distinção entre lote de frente ou de fundo: este seria o lote que “situado no interior da quadra, se comunica com a via pública por corredor de acesso de um metro e meio, no mínimo, de largura” (art. 2º/5/”d”). Tal desenho de lote, que aproveita o interior da quadra (o “coeur d’îlot”), já foi muito comum no passado quando as quadras eram quadradas, normalmente com 100 m lineares por quarteirão (como no centro de Presidente Prudente). Porém, tendo em vista que a Lei nº 6.766/79 exige testada de, pelo menos, cinco metros lineares, fica claro que não se pode admitir, hoje, lote com simples corredor de acesso. O acesso do lote deve se dar pela testada, na divisa com a via pública. Se houver mais de uma edificação no lote, a pretensão de alienação de uma delas pode gerar um condomínio ordinário, com a propriedade de toda a parcela dividindo-se em frações ideais.

O requisito do acesso também é válido para a unidade autônoma de condomínio edilício. Tanto o art. 1.331/§ 2º do CC/02 quanto o art. 2º da Lei nº 4.591/64 estabelecem que o acesso ao logradouro público, mediante passagem coletiva (ou “hall”), é parte comum da edificação, não podendo ser alienada separadamente ou mesmo dividida. Portanto, seja o lote, seja a unidade autônoma, o contato com a via pública constitui requisito básico e essencial que não pode ser jamais eliminado, como antes visto. Se, eventualmente, na divisão de uma quadra surgir uma área encravada, é certo que ela não ganhará autonomia – nem registral, nem urbanística – como parcela e só poderá ser anexada a um lote contíguo, que terá então sua área ampliada caso o Poder Público local concorde com o novo desenho.

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Enunciaremos em seguida três categorizações baseadas no critério (a) da ocupação efetiva e utilização do lote, (b) no uso que se faz dele, se residencial ou não, e, afinal, (c) na posição relativa, enfocando o lote de esquina. Se na primeira categoria destaca-se o lote edificado e utilizado, nas duas últimas categorias aparta-se o lote com destino residencial e o lote da esquina, porquanto ambos ganham tratamento diferenciado da legislação urbanística, considerando o direito fundamental à moradia e a situação peculiar da esquina no contexto da quadra e da própria cidade. Afinal, as categorias são criadas exatamente para que se extraiam delas consequências jurídicas relevantes o que determina o exame, em interlúdio, da questão do número de pavimentos da edificação, que separa a casa térrea, “rasteira”, do sobrado e este do “espigão”.

No que tange ao lote com destino residencial, é interessante observar que nossa língua tem muitos nomes para designar os espaços privados, edificados, em que vivem as pessoas: casa, residência, domicílio, habitação, moradia, lar, termos vários que, a par das diferenças específicas que apresentam, têm um núcleo comum de significação muito claro. O Direito, entretanto, qualifica diferentemente estes termos, tal como veremos abaixo. No passado, era comum a expressão “casa de residência” por oposição a “casa de comércio” (Casa Manon, Casa Fretin, ainda existentes, Casa Garraux, talvez a primeira livraria de São Paulo), porém esta última encontra-se em total desuso em face do predomínio absoluto da “empresa” (ou sociedade empresária), agora contemplada no próprio Código Civil.

2. Lote vazio e ocupado

Independente do que determina o planejamento, a categorização urbanística mais importante verifica que o lote pode estar (a) vazio ou (b) ocupado, ou seja, edificado ou não edificado. O lote vazio ou vago é vulgarmente chama-

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do de “terreno baldio”, que grassa em nossas cidades deter-minando indevida expansão horizontal delas (É preferível a expressão “lote vazio” que “lote vago” porque esta pode indicar lote sem dono, adéspota como diria Pontes, sentido diverso). Como já ressaltado, aderindo ao solo, a edificação marca a conclusão do processo de urbanização, o que compete ao proprietário do lote e não propriamente ao loteador que apenas cria as condições necessárias para ela. E da edificação surgem consequências de várias ordens: por exemplo, somente sobre o imóvel edificado – seja a edificação legal ou ilegal1, edificação ou mera construção habitada – é que pode incidir a usucapião especial urbana, chamada usucapião pró-moradia, que é um modo expedito de regularização fundiária trazendo a exigência da moradia do usucapiente ou de sua família (art. 183 da CF). Portanto, pressupõe não um lote qualquer mas um lote edificado e habitado que receberá a proteção constitucional, o mesmo não ocorrendo em outras situações: num lote vazio a usucapião se consumará, em princípio, no prazo de dez anos (art. 1.242 do CC/02).

Mais genericamente, o lote será considerando ocioso se estiver vazio, porém não só. Será ocioso também se tiver ocupação abaixo do mínimo estabelecido no plano (CA mínimo) – quando aparece o conceito de subutilização, explicitado pela lei – ou ainda se, apesar de ocupado, não estiver sendo utilizado. Estas três são caracterizações desviantes de lote, apontando urbanização deficiente pelo non usus, que, à

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luz do nosso ordenamento urbanístico, ensejam a aplicação de sanções ao proprietário posto materializarem comportamentos antissociais. Para que seja cumprido o seu destino, a lei e o Direito exigem a urbanização secundária plena, ou seja, que o lote seja devidamente edificado e utilizado, o que afastará a incidência de qualquer punição.

2. 1 A utilização do solo como valor constitucional

Dentre os seus princípios básicos, o Estatuto da Cidade expressamente pretende “evitar a utilização inadequada dos imóveis urbanos” (art. 2º/VI/”a”). Em decorrência, o direito de edificar transforma-se, pois, em obrigação de edificar para eliminar o lote ocioso do espaço urbano: como já dizia a Constituição alemã de Weimar, de 1919, “a propriedade obriga. Seu uso constituirá, também, um serviço para o bem comum” (art. 153, segunda alínea2). Assim, da categorização do lote conforme o critério da utilização decorre importantes sanções ao proprietário, que, sucessivas, vão se agravando com o transcorrer do tempo, estando previstas pelo art. 182/§ 4º da CF (dispositivo inserto em inédito capítulo de nossa Constituição, referente à política urbana). Ele foi, ao depois, disciplinado dentre os principais instrumentos jurídicos e políticos do Estatuto (art. 4º/V/”i”).

Na verdade, os instrumentos urbanísticos do Estatuto podem ser classificados, dentre outras, da seguinte forma:

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Quadro 7 – Instrumentos do Estatuto da Cidade

(1) Esta classificação será explorada adiante, no Capítulo IV.

Longe de constituir sanção irrevogável, os primeiros, ditos instrumentos de punição do proprietário por exercício antissocial do direito de propriedade urbana, visam provocar (ou forçar) a utilização adequada do lote, que é aquela prevista pelo plano local, democraticamente instituído. Assim, o processo punitivo será imediatamente levantado se for cumprida a imposição constitucional de utilização adequada no prazo prescrito na lei. O IPTU progressivo no tempo, por exemplo, constitui sanção claramente extrafiscal3: sua instituição não visa ampliar a arrecadação do ente local. Da mesma forma, a desapropriação com pagamento em títulos, que é a sanção mais grave porquanto retira o domínio: o lote assim obtido pode ser usado pelo Poder Público municipal, alienado ou mesmo concedido a terceiros (art. 8º/§ 5º do EC).

Para dar-se o início do processo de punição sucessiva do proprietário por força da utilização inadequada do lote

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é necessário que se façam, antes, algumas distinções fáticas referentes às condições específicas da parcela. A situação ótima é a do lote que está edificado e utilizado, obedecendo tanto as normas urbanísticas quanto as normas edilícias. Como dito, neste caso o processo de...

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