Entre o Crime e o Castigo: a Situação Jurídico-Trabalhista do Apontador de Jogo do Bicho no Brasil

AutorJorge Luiz Souto Maior
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho, titular da 3ªVara do Trabalho de Jundiaí
Páginas260-272

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1. Considerações iniciais

“Hey, Joe, onde é que você vai com essa arma aí na mão?

[...] esse não é um atalho pra sair dessa condição Hey, irmão, só desse jeito consegui impor minha moral, Eu sei que sou tratado e visto sempre como um animal...”

(O Rappa, “Hey Joe”)

Existem no Brasil algumas categorias de pessoas cujo trabalho é alijado do reconhecimento estatal e, consequentemente, não desfrutam da proteção legal dispensada aos trabalhadores de um modo geral.

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Não se está a insinuar que a rede de proteção social aos trabalhadores seja, no Brasil, razoavelmente eficaz. Não é. A despeito das promessas da Constituição Federal e de leis infraconstitucionais, entre elas a Consolidação das Leis do Trabalho, o trabalhador brasileiro ainda não alcançou uma real situação de proteção a seus direitos fundamentais trabalhistas.

É isso o que se vê, diariamente, na rotina dos fóruns trabalhistas. A noção que se tem é a de que o descumprimento dos preceitos legais básicos de uma relação de emprego é a regra, não a exceção. Infelizmente essa noção se confirma dia a dia.

Mas existem, como se disse no início, grupos de pessoas que se encontram em situação ainda pior: são categorias de trabalhadores cujas atividades não são, sequer, reconhecidas no âmbito de uma relação empregatícia. Eles não conseguem, sequer, colocar-se na posição de um sujeito de direitos trabalhistas. Para, em momento posterior, reivindicar o cumprimento dos direitos previstos no ordenamento jurídico.

Não. O ordenamento, segundo interpretações de maiorias mais ou menos significativas, não reconhece, nem tutela, as atividades dessas pessoas. Elas não são sujeitos de direitos trabalhistas. Estão à margem do ordenamento; são marginalizadas por ele.

Encontram-se nessa situação, entre outros, o chamado “chapa” (trabalhador de carga e descarga, “eventual e sem vínculo”), alguns imigrantes, as prostitutas, a doméstica diarista e, por fim, o chamado apontador de jogo do bicho.

O apontador é a pessoa responsável por colher a aposta do jogo do bicho, formalizá-la e receber o dinheiro correspondente a essa aposta. Não se confunda o apontador com o chamado “bicheiro”. Este é o empreendedor, por assim dizer, o dono da banca de jogo, aquele que efetivamente lucra com a realização dos jogos.

A proposta deste texto é a de refletir sobre a situação do apontador do jogo do bicho: aquele que trabalha para o dono da banca, rende-lhe lucros no mínimo razoáveis e, de outro lado, a nada tem direito, além daquilo que o “bicheiro” efetivamente lhe conceda.

A jurisprudência brasileira tem sido firme em repelir pedidos de reconhecimento de vínculo de emprego entre pessoas que trabalham como apontadores de jogo do bicho e seus respectivos tomadores de serviços, os “bicheiros” propriamente ditos.

O fundamento dessas decisões é a natureza do objeto do contrato em discussão: o objeto desse contrato seria ilícito, uma vez considerado o jogo do bicho uma contravenção penal. Por ter objeto ilícito, faltaria ao negócio um dos requisitos de validade; nulo o contrato, o direito não admitiria reconhecer-lhe nenhum efeito jurídico.

É nesse sentido que o Tribunal Superior do Trabalho possui verbete de jurisprudência consolidada: a Orientação Jurisprudencial n. 199 da Subseção 1 de Dissídios Individuais (SBDI-1).

A proposta aqui é a de questionar esse entendimento jurisprudencial e, para tanto, se busca explorar vieses da matéria que não costumam ser enfrentados nos processos trabalhistas.

Primeiramente, cuida-se do estudo do entendimento dominante e de seus fundamentos, passando pelo regime das nulidades do contrato de trabalho em razão de trabalho ilícito e, também, de trabalho proibido.

Depois, uma abordagem crítica é construída, a partir da leitura de dispositivos da Lei de Contravenções Penais similares àquele que prevê o tipo da contravenção de jogo do bicho. Apresentam-se nesse capítulo, também, algumas noções da assim chamada teoria da tipicidade conglobante, construída no direito penal, mas que parece útil para uma nova interpretação do problema do vínculo de apontador do jogo do bicho.

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Por fim, formalizam-se duas propostas de mudança na solução do problema, em caráter alternativo, é verdade, mas que buscam, além de extirpar a contradição sistêmica do entendimento atual, atuar na melhoria da condição social de uma categoria de trabalhadores hoje colocada à margem da proteção legal.

2. Contrato de trabalho do apontador do jogo do bicho — regime atual
2.1. Entendimento jurisprudencial dominante

A pessoa que ganha a vida fazendo apostas de jogo do bicho não tem o reconhecimento de sua profissão no Brasil, e muito menos o reconhecimento de qualquer efeito jurídico decorrente dos serviços que presta.

É o que a Justiça do Trabalho tem afirmado quando chamada a decidir sobre pedidos de declaração de relação de emprego entre os apontadores de jogo do bicho e os donos da banca de jogo, os bicheiros propriamente ditos.

Dispõe, nesse sentido, a Orientação Jurisprudencial (OJ) n. 199 da SBDI-1 do Tribunal Superior do Trabalho:

199. JOGO DO BICHO. CONTRATO DE TRABALHO. NULIDADE. OBJETO ILÍCITO. É nulo o contrato de trabalho celebrado para o desempenho de atividade inerente à prática do jogo do bicho, ante a ilicitude de seu objeto, o que subtrai o requisito de validade para a formação do ato jurídico.

O fundamento dessa interpretação é o entendimento de que o objeto desse contrato de trabalho seria ilícito, já que a prática de jogo do bicho constitui infração penal no Brasil, mais especificamente uma contravenção, tipificada no art. 58 da Lei das Contravenções Penais.

Esse verbete tem sido reiteradamente aplicado, tanto pelo Tribunal Superior do Trabalho quanto por Tribunais Regionais do Trabalho, o que configura a consolidação do entendimento consagrado na OJ acima transcrita.

Vejam-se, exemplificativamente, os seguintes acórdãos recentemente proferidos pelo Tribunal Superior do Trabalho:

JOGO DO BICHO. CONTRATO DE TRABALHO. OBJETO ILÍCITO. Tratando-se de atividade denominada jogo do bicho, permanece o entendimento desta Casa, de afastar o reconhecimento da relação de emprego, dada a ilicitude do objeto, de acordo com o teor da Orientação Jurisprudencial
n. 199 da SBDI-1 desta Corte, que assim dispõe: JOGO DO BICHO. CONTRATO DE TRABALHO. NULIDADE. OBJETO ILÍCITO. É nulo o contrato de trabalho celebrado para o desempenho de atividade inerente à prática do jogo do bicho, ante a ilicitude de seu objeto, o que subtrai o requisito de validade para a formação do ato jurídico. Recurso de revista conhecido e provido. (TST-RR-76160-2010-5-08-0122, Rel. Min. José Roberto Freire Pimenta, Publicação em 29.6.2012)

RECURSO DE REVISTA. VÍNCULO DE EMPREGO. JOGO DO BICHO. A teor da Orientação Jurisprudencial n. 199 da SDI-1 do TST, é nulo o contrato de trabalho celebrado para o desempenho de atividade inerente à prática do jogo do bicho, ante a ilicitude de seu objeto, o que subtrai o requisito de validade para a formação do ato jurídico. Recurso de revista conhecido e provido. (TSTRR-16490044-2009-5-06-0017, Rel. Min. Dora Maria da Costa, publicação 15.6.2012).

Assim, é conveniente, em primeiro lugar, averiguar a premissa que dirige o entendimento da OJ n. 199, qual seja o do regime jurídico das nulidades do contrato de trabalho, por se tratar de trabalho ilícito ou de trabalho proibido.

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2.2. Trabalho ilícito e trabalho proibido
2.2.1. Noções gerais

É requisito da validade do negócio jurídico a licitude do seu objeto (Código Civil, art. 104, II).

Assim, se o trabalho prestado por alguém for, em si mesmo, um ato ilícito, não se cogitará de reconhecimento de vínculo empregatício, por ausência do requisito de validade do negócio. Por exemplo, a contratação de um assassino para cometer homicídio não pode ser reconhecida como contrato nos termos legais; é o que se convencionou denominar de trabalho ilícito. Isto é, não admitido pela lei.

De outro lado, existem casos em que a pessoa não desempenha trabalho ilícito, em si mesmo, mas a sua prática, em determinada situação, é proibida pelo ordenamento jurídico, tendo em vista a proteção de bens jurídicos variados.

Por exemplo, o trabalho da pessoa menor de 16 anos é proibido pela Constituição Federal (exceção feita ao trabalho do aprendiz, art. 7º, inciso XXXIII), independentemente da licitude do serviço em si. Da mesma forma, a prestação de serviços públicos por pessoa que não prestou concurso público não é admitida pelo Direito (CF, art. 37, II), o que também atrai a regra de nulidade do contrato de trabalho.

Esses dois últimos exemplos são de trabalho proibido, não de trabalho ilícito. A distinção reside em que, enquanto no trabalho ilícito a regra de vedação incide sobre a essência do próprio trabalho prestado pela pessoa, considerado em si mesmo, no trabalho proibido a vedação não incide sobre o trabalho em si (que é essencialmente lícito), mas sobre a circunstância em que ele é prestado.

No caso do menor de idade, o trabalho pode ser lícito e até mesmo necessário, já que qualquer pessoa...

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