O casamento igualitário no Brasil

AutorMaria Berenice Dias
Páginas83-102

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Apresentação

Há temas complicados de enfrentar. A homossexualidade é um desses. Para amenizar um pouco o preconceito, ao invés de homossexualidade melhor mesmo é falar em homoafetividade, que ressalta mais a natureza afetiva do que sexual da união entre pessoas do mesmo sexo. A origem do repúdio ao amor entre iguais é de ordem religiosa. O exercício da sexualidade sempre foi aceito exclusivamente para ins procriativos. Sob o nome de lascívia, o prazer era considerado pecaminoso. Era reconhecida como família exclusivamente a constituída pelos “sagrados” laços do matrimônio. O cristianismo, inclusive, até hoje, proíbe o uso de qualquer meio contraceptivo e anula o casamento que não se “consumou”, ou seja, em que não houve prática sexual. Em nome da preservação da família, sempre foi execrado tudo o que se afastava do modelo: casamento, sexo e procriação. As uniões homoafetivas, por desatenderem ao designo divino de “crescei e multiplicai-vos”, eram consideradas uma perversão. Apesar da laicização do Estado, a sociedade permanece refém de uma religiosidade cada vez mais conservadora. O ódio contra homossexuais é incentivado. Atos de intolerância são absolvidos e a homofobia não é criminalizada. As uniões homoafetivas permanecem alijadas do sistema jurídico. Certamente, não há forma mais perversa de exclusão. É enorme a diiculdade em se aprovar uma legislação que assegure direitos, bem como a construção de um arcabouço teórico-cientíico para o reconhecimento de se estar frente a um novo ramo do direito: direito homoafetivo. Estudos, debates e discussões são os alicerces para se construir uma sociedade mais livre e tolerante. Ainal, é necessário reconhe-

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cer que a diferença é o iel da balança da igualdade. Só assim será possível sonhar com um mundo melhor e transformar em realidade o sonho que embala a todos: a tão almejada e merecida felicidade!

1 Um olhar no tempo

A homossexualidade sempre existiu. É tão antiga quanto a própria humani-dade. Na Idade Antiga era não só aceita, mas enaltecida e até gloriicada.

Tanto o estado como todas as religiões, credos e crenças, sempre tentaram amarrar e eternizar os vínculos afetivos, ao menos os heterossexuais. Para isso foi criado o casamento, uma instituição, um sacramento com a inalidade de obrigar o casal a se multiplicar até a morte.

Apesar de todos os dogmas, princípios e regras, que buscam assegurar a primazia dos direitos humanos, a sociedade, em nome da moral e dos bons costumes, impõe rígidos padrões de comportamento. Com seu peril nitidamente conservador, cultua valores absolutamente estigmatizantes, insistindo em repetir os modelos postos.

É no âmbito das relações familiares onde mais se evidencia a tendência de formatar os vínculos afetivos segundo os valores culturais dominantes em cada época.

Tal postura gera um sistema de exclusões baseado, muitas vezes, em meros preconceitos. Tudo o que se situa fora do estereótipo acaba sendo rotulado de “anormal”, ou seja, fora da normalidade, por não se encaixar nos padrões aceitos pela maioria. Essa visão polarizada é extremamente limitante.

Não se pode esquecer o que a sociedade fez com o negro: em face de sua cor, o tornou escravo. Também as mulheres foram – e ainda são – alvo de discriminações. Só em 1932 adquiriram a cidadania e até 1962, ao casar, perdiam a plena capacidade. O mesmo ocorreu com os ilhos que, antes de 1988, tinham direitos limitados, sendo alvo de expressões ultrajantes pela singela circunstância de haverem sido concebidos fora de uma família constituída pelo casamento.

Sempre houve a tentativa de engessar o exercício da sexualidade ao casamento. Sua mantença tinha acentuada inalidade patrimonial: permitir a identidade dos elos de consanguinidade e assegurar a transmissão do patrimônio familiar aos sucessores legítimos do pater familiae. Por isso é regulada a própria postura dos cônjuges, chegando ao ponto de se invadir a privacidade do casal. Basta ver a imposição do dever de idelidade.

A família consagrada pela lei – a sagrada família – é matrimonializada, patriarcal, assimétrica, hierarquizada, patrimonializada, indissolúvel e heterosse-

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xual. Pelas regras do Código Civil de 1916, os relacionamentos que fugissem ao molde legal, além de não gerarem quaisquer direitos ou obrigações, estavam sujeitos a severas sanções. Chamados de marginais, os vínculos afetivos extramatrimoniais nunca foram reconhecidos como família.

A união entre o homem e a mulher gerava um vínculo indissolúvel. Apesar de o matrimônio ocorrer por vontade dos nubentes, era mantido independente e até contra a vontade dos cônjuges. Mesmo com o advento da Lei do Divórcio, a separação e o divórcio só eram deferidos, ou após o decurso de determinado prazo, ou mediante a identiicação de um culpado – o qual não podia tomar a iniciativa do processo – o que evidencia a intenção de punir quem simplesmente queria se desvencilhar do casamento. Foi a Emenda Constitucional 66/2010 que acabou com a separação, a perquirição da culpa e a imposição de prazos para a concessão do divórcio, que pode ser obtido inclusive extrajudicialmente.

Como a única inalidade da família era a atividade reprodutiva, a prática sexual antes ou fora do casamento – ao menos para as mulheres – além de proibida, era punida. Daí o dogma da virgindade feminina, que só agora deixou de agregar valor à mulher. A ausência da virgindade era causa de anulação do casamento. Se a noiva casava virgem e se mantinha casta, os seus ilhos seriam ilhos do marido. É o que a lei, até hoje, presume.2Em contrapartida, como os ilhos concebidos fora do casamento não podiam ser reconhecidos, a liberdade sexual dos homens sempre foi incentivada e até invejada.

Com a evolução político-cultural, deixou o estado de se submeter aos rígidos dogmas da igreja, que atribuía à família uma natureza divina. Esse movimento, denominado secularização ou laicização, é a base da cultura liberal. Conforme Belmiro Pedro Welter, a moral, a contar da separação entre a igreja e o Estado, não é mais um mandato das alturas, não é sacra, e sim profana.3A diiculdade de as relações extramatrimoniais serem identiicadas como famílias ? nem sequer por analogia, mecanismo para colmatar as lacunas da lei – revela a visão sacralizada do conceito de família. Ainda que não exista qualquer diferença estrutural com os relacionamentos oicializados, a negativa sistemática

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de estender a outros arranjos as normas do casamento evidencia a tentativa de preservação da família dentro dos padrões convencionais.

Apesar da proibição legal, estruturas de convívio fora do casamento, sempre existiram. Mesmo sem nome, mesmo sem lei, acabaram forçando sua inserção social e foram bater às portas do Poder Judiciário. Primeiro procurou-se identiicá-las a uma relação de natureza trabalhista, e só se via labor onde existia amor. Depois, a jurisprudência passou a permitir a partição do patrimônio, considerando uma sociedade de fato o que nada mais era do que uma sociedade de afeto.

As causas da evolução foram muitas: a revolução industrial, o movimento feminista, o surgimento dos métodos contraceptivos, a engenharia genética. Mas a consequência foi uma só: a juridicização do afeto, o que levou à pluralização do conceito de família.

Mesmo quando a Constituição Federal albergou no conceito de entidade familiar o que chamou de “união estável”, resistiram os juízes em inserir o instituto no âmbito do Direito das Famílias, mantendo-a no campo do Direito das Obrigações.

O movimento que acabou inserindo as relações extramatrimoniais no âmbito famíliar, não foi suiciente para que as uniões de pessoas do mesmo fossem dignas da tutela jurídica. Continuaram condenadas à total invisibilidade, como se assim fossem desaparecer.

Há 25 anos as uniões homossexuais não eram reconhecidas em nenhum país do mundo. Os parceiros, ainda que vivendo juntos por décadas, nunca tiveram qualquer direito. Por exemplo, quando um morria o outro era alijado da casa, do patrimônio, de qualquer direito. Tudo icava com parentes, muitas vezes distantes. Seguidamente eram expulsos do lar comum ao retornar do enterro do companheiro de uma vida inteira.

Foi a Dinamarca, no ano de 1989, que admitiu a união civil, ainda assim fora do direito das famílias.

Há 15 anos os homossexuais não podiam casar. Tal só foi possível a partir de 2001, na Holanda.

Agora 14 países admitem o casamento, todos por força de lei. Mas no Brasil, tal possibilidade decorre de decisão da justiça.

2 Família e casamento

A família sempre foi abençoada por todas as religiões, que buscam perpetuá-la por meio do casamento. O matrimônio é considerado um sacramento, sendo

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invocada a interferência divina para garantir sua indissolubilidade: o que Deus uniu o homem não separa!

Parece que o casamento confere uma áurea de santidade aos seus membros, única forma de justiicar o injustiicável: negar aos pares do mesmo sexo acesso ao casamento.

A naturalização da ideia de que o casamento é entre um homem e uma mulher é de tal ordem que sequer o Código Civil faz esta exigência. Ao ser lagrada dita omissão surgiu a teoria do casamento inexistente, com o só intuito de não admitir o casamento homoafetivo. Isto porque as demais hipóteses que a doutrina elenca como exemplos de casamento inexistente, dão ensejo tão só à sua nulidade. A ausência de manifestação da vontade é causa nuliicante por vício de vontade,4e o prazo para a propositura da ação de anulação é de 180 dias.5A incompetência do celebrante, também torna o casamento anulável,6estando a ação de anulação sujeita ao prazo decadencial de dois anos.7Ou seja, casamento inexiste não existe...

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