Capacidades' como postulado para ampliar a comunidade jurídica e moral na proposta de Martha Nussbaum

AutorSamantha Buglione - Neide Köhler Schulte
CargoDoutora em Ciências Humanas pelo Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina - Doutora em Design pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
Páginas212-236
http://dx.doi.org/10.5007/1807-1384.2013v10n1p212
Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 3.0 Não
Adaptada.
“CAPACIDADES” COMO POSTULADO PARA AMPLIAR A COMUNIDADE
JURÍDICA E MORAL NA PROPOSTA DE MARTHA NUSSBAUM
Samantha Buglione1
Neide Köhler Schulte2
Resumo:
Quem são os membros de uma comunidade moral e por quê? É possível responder
essa pergunta de várias formas e essas formas irão navegar por diferentes
concepções teóricas. O desenvolvimento das capacidades foi utilizado por autores
como Amartya Sen e Martha Nussbaum no sentido de fundamentar pressupostos
como liberdade e igualdade. Nessa esteira, Nussbaum usa a mesma lógica para
pensar a relação entre humanos e não-humanas. A discussão sobre a proteção dos
animais não-humanos, desde o seu reconhecimento como sujeitos de direitos até o
dever de respeito, encontra diferentes teorias na ética prática. O presente artigo
analisa a proposta de Martha Nussbaum, cujo argumento do desenvolvimento das
capacidades fundamenta o reconhecimento do dever de respeito e reconhecimento
dos animais não-humanos como sujeitos de direitos.
Palavras-chaves: Nussbaum. Animais não-humanos. Desenvolvimento das
capacidades.
Introdução
No julgamento do habeas corpus impetrado em favor de Lili e Megh3, dois
chimpanzés de nome científico Pan Troglodyte, o relator do processo, ministro
Castro Meira, disse ser incabível a impetração desse instrumento jurídico em favor
1 Doutora em Ciências Humanas pelo Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências
Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, Mestre em Direito, Professora de ética e
filosofia no curso de Administração Pública e Administração Empresarial da Universidade do Estado
de Santa Catarina na Escola Superior de Administração e Gerência, Florianópolis, SC, Brasil. E-mail:
buglione.s@gmail.com.
2 Doutora em Design pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ,
Brasil. Professora titular da Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. E -
mail: neideschulte@gmail.com.
3 Destaca-se que o primeiro caso desta natureza, no B rasil, foi o habeas corpus em favor de “Suíça”,
chimpanzé também de nome científico: Pan troglodytes, que se encontra aprisionada no Parque
Zoobotânico Getúlio Vargas (Jardim Zoológico), em 19 de setembro de 2005. O habeas corpus foi
impetrado pelos Promotores de Justiça Heron José de Santa, Luciano Rocha Santana, Antonio
Ferreira Leal Filhos, juntamente com a Associação Brasileira Terra Verde Viva, União Defensora dos
animais Bicho Feliz, Associação Brasileira Protetora dos Animais, além de vários estudantes de
direito.
R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.10, n.1, p. 212-236, Jan./Jul. 2013
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de animais não-humanos. Para ele, o habeas corpus, previsto no inciso LXVIII do
artigo 5º da Constituição Federal, que diz: "conceder-se-á habeas corpus sempre
que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua
liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder", refere-se
exclusivamente a humanos. A conclusão, a partir do argumento do ministro, é que
os direitos fundamentais previstos na carta constitucional são humanos, portanto, os
destinatários dessas prerrogativas são apenas seres da espécie humana. Ser
humano torna-se categoria e condição para que alguém se torne titular de direitos
fundamentais. Mas, uma condição necessária, ao invés de suficiente. A titularidade
de direitos, com isso, é antropocêntrica, fazendo com que o “alguém”, a que se
refere o inciso LXVIII do artigo , seja somente o humano4 e exclua
automaticamente, do âmbito de proteção da norma, qualquer outro ser.
A defesa dos animais, feita pelo advogado Rubens Forte, autor do habeas
corpus, fundamentou-se na tese de que os símios possuem 99% do DNA humano e
que, por essa razão biológica, deveriam, por analogia, receber o mesmo tratamento
jurídico dos humanos. Na tentativa de reconhecer direitos aos não-humanos, o
advogado adota a estratégia de aproximar os símios dos humanos. Isso não só
limita o debate sobre os sentidos dados, histórica e moralmente, a categorias como
pessoa e sujeito de direitos, mas também reforça lógicas antropocêntricas.
Ao pensar a igualdade apenas a partir da aproximação biológica com a
espécie humana, o autor do habeas corpus ignora outros argumentos
desenvolvidos na ética prática. A igualdade, como um princípio prescritivo, não está
na semelhança biológica entre os seres, pois, se assim fosse, negros e mulheres
padeceriam do esforço em provar que se equiparam ao padrão hegemônico do
“humano homem branco”. Negros e mulheres foram considerados sujeitos, não
porque seriam iguais biologicamente ao modelo de humano aceito, mas porque o
conceito de igualdade foi aplicado de forma mais coerente: tratar seres semelhantes,
em situações semelhantes, de forma semelhante (no caso dos negros e mulheres:
estarem vivos, sentir, ter linguagem). É possível, ainda, afirmar que os sentidos de
4 No Brasil, conforme algumas decisões judiciais não é necessário ser "humano nascido" ou "pessoa
humana" para ser sujeito de um habeas corpus. Em 2003, um padre católico impetrou no Superior
Tribunal de Justiça um habeas em favor de um feto anencéfalo (Habeas n. 32.129). O habeas,
tecnicamente inadequado para o propósito, não só foi aceito, o pedido foi deferido. A consequência
foi que a mulher não pôde interromper a gestação, conforme decisão anterior do Tribunal do Rio de
Janeiro. Essa ação foi determinante para toda a discussão pública sobre anencefalia que culminou no
julgamento realizado em 2012 no STF liberando a interrupção da gestação para esses casos com o
argumento de que não há ser vivo em caso de anencefalia.

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