O caminho chinês ao estado de direito

AutorWei Dan
CargoProfessora Auxiliar na Faculdade de Direito da Universidade de Macau; Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
1 Noção do estado de direito
1. 1 Importância do Estado de Direito

Durante a transformação social, a economia e o direito constituem as duas áreas mais importantes2. O desenvolvimento económico autêntico não se encontra sem um sistema jurídico efectivo. O sistema jurídico de qualquer país desempenha uma função muito importante de garantia de estabilidade e justiça social, desenvolvimento e protecção dos interesses e valores das várias camadas sociais e dos estrangeiros. O mercado global coloca enormes responsabilidades nos Estados e empresas que querem participar na economia mundial. A necessidade da integração do sector privado, da luta contra a corrupção, da melhor regulação e da transparência torna-se uma preocupação global e uma parte componente do desenvolvimento das instituições democráticas e dos sistemas económicos abertos3.

A fim de realizar os objectivos de desenvolvimento do país, particularmente criar um sistema social dinâmico, competitivo e justo, restabelecer o sistema da civilização moderna e reforçar a coesão da nação para enfrentar a mudança impetuosa global, a China deve adoptar a estratégia do Estado de Direito e rever com antecedência o seu ordenamento jurídico para adaptar-se às novas realidades, usando como referências as experiências valiosas dos países estrangeiros e, ao mesmo tempo, baseando-se na sua situação nacional. Trata-se de uma questão de grande importância política e não apenas técnica.

1. 2 Várias concepções da noção de “Estado de Direito”: o mundo ocidente e a China

Nascida no ocidente, a noção de “Estado de Direito”4 (em língua inglesa Rule of Law ou Rule-based State) remonta ao pensamento helénico. Desde Platão, Aristóteles, e através dos juristas romanos, pensadores do Direito Natural medievais, neo-estoicismo, pensadores do Direito Natural modernos, Montesquieu, Rousseau, fundadores norte-americanos, estudiosos alemães que defendem “rechtsstaat”, até juristas contemporâneos como por exemplo, Friedrich Hayek, John Rawls, Lon Fuller e Theodore Lowi, entre outros, os esforços em favor do “Estado de Direito” têm sido sempre uma premência ou, pelo menos, uma realidade da vida política do ser humano.

Em primeiro lugar, tentamos descobrir o seu significado recorrendo aos dicionários jurídicos. De acordo com Black´s Dictionary of Law, o Estado de Direito refere-se “a legal principal, of general application, sanctioned by recognition of authorities, and usually expressed in the form of a maxim or logical proposition… sometimes called “the supremacy of law”, provides that decisions should be made by the application of known principles or laws without the intervention of discretion intheir application5. Segundo a interpretação dada por Diniz6, o Estado de Direito é a “situação criada em razão da lei, trazendo limitação do poder e das actividades estatais pelo Direito. O Estado de Direito tem por escopo a garantir dos direitos fundamentais, mediante a redução dos poderes da intervenção estatal, impondo-lhes restrições fundadas em lei”. Para De Plácido e Silva7, o Estado de Direito “É a organização de poder que se submeta à regra genérica e abstracta das normas jurídicas e aos comandos decorrentes das funções estatais separadas embora harmónicas”.

Do ponto de vista doutrinal, o “Estado de Direito” é sem sentido unívoco, mesmo que se concorde que esta é uma designação oposta à “governação arbitrária pelos particulares”. Diferentes escolas jurídicas, com base em diferentes teses, entendem o conceito do “Estado de Direito” através de diferentes pontos de vista. Geralmente, é aceite uma classificação das diversas teorias sobre o Estado de Direito, sendo a perspectiva formal e a perspectiva substancial8. Segundo a primeira, as ordens normativas têm de ser imperativas, clarificadas e têm efeitos prospectivos ou retroactivos, entretanto, a segunda procura ir além dos atributos formais e reconhece certos direitos substantivos. As diferenças entre duas perspectivas provêm de concepções distintas sobre o Direito.

A Escola do Positivismo Legal9 considera que a existência e o conteúdo da lei dependem dos factos sociais e não seus valores, visto que a mente humana não poderia ir além dos ensinamentos ministrados directamente pelos factos, além disso, não existe nenhum ideal de Direito10. O Direito positivo caracteriza-se apenas pelo formalismo da lei. De acordo com o sistema construído por Hart, em cada sociedade há regras sociais relacionadas com a moral e com a obrigação. As regras relacionadas com a obrigação são subdivididas em moralidade e regras jurídicas (o Direito) primárias e secundárias11. Para este efeito, há dois requisitos a preencher: primeiro, regras válidas da responsabilidade têm de ser cumpridas pelos membros da sociedade, segundo, as autoridades têm de aceitar regras secundárias do ponto de vista interno12. Sobre o entendimento do Estado de Direito, Hans Kelson defende que “…the attempt to legitimise the State as governed by law, as a Rechtsstaat, is revealed as entirely useless because…every State is governed by law in the sense that every State is a legal order. This, however, represents no political value judgment13; Joseph Raz, por sua vez, aceita a importância do Estado de Direito e esclarece que “rule of law is just one of the virtues which a legal system may process and by which it is to be judged…the rule of law is negative virtue in two senses: conformity to it does not cause good except through avoiding evil and the evil which is avoided is evil which could only been caused by the law himself14. A julgar pelo exposto, na abordagem positivista, o Estado de Direito não se deveria confundir com a democracia, a justiça, a igualdade e os direitos fundamentais dos cidadãos.

A abordagem positivista foi criticada pelo jusnaturalismo e pelo sociologismo jurídico pelas seguintes razões: no Direito faz falta a consideração de valor15; regras, ordens ou normas em si não explicam plenamente a realidade, o que ainda abrange o funcionamento do Direito e o papel judicial; o positivismo legal simplesmente não apresenta uma visão clara e acessível do Direito16; além disso, falta-lhe uma qualquer conexão entre o Direito e a moralidade. No famoso debate com Hart, Lon Fuller na sua obra The Morality of Law17, procura mostrar que o Direito tem uma moralidade interna (internal morality)18 e dá sua definição sobre o Direito19, ou seja, o Direito tem de satisfazer certas necessidades morais ou requerer a legitimidade prática.

A doutrina do Direito natural20, sob as diversas modalidades que apresentou ao atravessar os séculos, sempre fornece uma intersecção entre o Direito e a moral. Nos tempos modernos, o Direito natural desempenha o papel decisivo de lutas políticas, quer revelando-se revolucionário, quer conservador, quer limitando-se a alguns principais fundamentais, quer pretendendo a elaboração de Códigos eternos de preceitos racionais. Os jusnaturalistas defendem por vezes o individualismo e outras vezes o contratualismo21, destacando a natureza da função judicial. As normas jurídicas estatais, para a doutrina jusnaturalista, são frutos de uma árvore que tem suas raízes no espírito e na adesão volitiva dos sujeitos22. A abordagem jusnaturalista sobre o Estado de Direito diz respeito a elementos substanciais, tais como os princípios à luz do espírito do Direito e as instituições jurídicas determinadas pelos princípios, mais especificamente, o poder público, a responsabilidade do Estado, os direitos individuais, a liberdade social, os deveres cidadãos23e regulação democrática e a independência judicial, entre outros, no contexto moderno. Num Estado de Direito, o Direito prevalece sobre qualquer outra instituição ou interferência social, como por exemplo, a religião, a tradição ou a política.

Então, quais são as inspirações para nós, ou seja, o que podemos aprender através de discussões académicas? Claro, o presente trabalho não tem como objectivo comparar detalhada e profundamente as semelhanças e as divergências doutrinais entre o positivismo e o jusnaturalismo. Na nossa opinião, no mundo de hoje, o Estado de Direito necessita tanto dos requisitos formais como dos requisitos substanciais. Seja qual for a posição ou o critério adoptado, os requisitos formais na perspectiva positivista garantem a efectividade institucional do Direito, isto é, de uma ordem jurídica (seja ela boa ou má), diferente das normas religiosas, morais e costumeiras24, somente funciona com um conjunto de instituições e normas necessárias25. A construção de um sistema jurídico formalmente satisfatório, destacando a função instrumental do Direito para aperfeiçoar a sociedade, não quer dizer a ausência da possibilidade de caminhar para o Estado de Direito substancialmente qualificado, desde que princípios fundamentais e o espírito da justiça e da moral sejam nutridos26 e o foco do Direito seja o seu empreendimento (“dever ser” v. “ser”). Na realidade, isso constitui um modelo de desenvolvimento para os países em transição.

Como se sabe, a noção e a tradição do Estado de Direito têm uma história remota no mundo ocidental. Lancemos agora, porém, os olhos para a cena oriental.

A cultura chinesa não é orientada pelo Direito. De todo o modo, a China segue uma evolução própria. O sistema jurídico tradicional da China foi integrado numa concepção filosófica, sobretudo, o confucionismo27 e influenciado, em grande medida, pelos pensamentos jurídicos do confucionismo e do legalismo28. O confucionismo descreve uma sociedade ideal e desejada. O conceito chave da escola...

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