Uma crítica à sociedade burguesa à luz da utopia anarquista - uma relexão sobre os direitos humanos

AutorLoiane Prado Verbicaro
CargoProfessora do Centro Universitário do Pará nas disciplinas Introdução ao Estudo do Direito e
1 Introdução

O presente1trabalho tem como objetivo fazer uma análise, sob os pontos de vista social, político e moral da sociedade burguesa, à luz da teoria anarquista e apresentar a possível conciliação entre termos aparentemente antitéticos entre si: anarquismo x direitos humanos.

Com este recorte da teoria anarquista, pretende-se desmistificar alguns préconceitos e equivocados estereótipos construídos em torno do movimento ácrata, para que se possa repensar a sociedade atual sob uma nova luz, a partir da (re) construção de utopias (deduções racionais dos princípios básicos de uma sociedade ideal) – resgate das utopias – que acenem a um horizonte de sentidos e a uma modificação do real (realidade social) a partir do ideal.

2 Considerações preliminares sobre o anarquismo

O anarquismo, assim como o comunismo e o socialismo, desenvolveram-se em um contexto de consolidação do modo-de-produção capitalista e da sociedade burguesa, pós-revolução industrial. Trata-se de um movimento social emancipatório e oposicionista (radical) à forma de organização humana vigente à época da solidificação do capitalismo como sistema econômico preponderante nas relações econômico-sociais existentes em meados do século XIX.

Filósofos e pensadores como Saint-Simon (socialista utópico), Pierre-Joseph Proudhon (anarquista), Karl Marx (comunismo marxista), Mikhail Bakunin (anarquista) e Kropotkin (anarquista) passaram a idealizar pensamentos para a consagração de uma sociedade igualitária, em contraste à organização do capitalismo e sua estrutura social classista. Tais articulações originaram movimentos sociais revolucionários denunciadores da exploração, da imoralidade e injustiça do Estado liberal burguês individualista.

A despeito da semelhança em aspectos centrais do movimento contestador do status quo, comunistas e anarquistas apresentaram fundamentais divergências quanto ao caminho a ser seguido para alcançar a utopia de uma sociedade sem classes3. Para os marxistas (comunistas), deveria haver uma fase intermediária em que sobreviveria, ainda, o poder político do Estado (fase socialista), através de uma ditadura do proletariado. Trata-se da idealização de um Estado revolucionário transitório viabilizador das condições de implementação do comunismo. Os anarquistas, ao contrário, idealizavam uma transição imediata, de uma sociedade burguesa, para uma sociedade comunista sem classes, sem qualquer hierarquia e sem poder político algum. Desta divergência, surge uma cisão na primeira AIT (Associação Internacional de Trabalhadores)4: os comunistas, liderados por Karl Marx e os comunistas libertários (anarquistas), comandados por Bakunin, defendendo meios distintos para se alcançar o objetivo final comum às duas correntes teóricas: o fim da nefasta trilogia: capital, religião e estado. A partir daí, as teorias seguem rumos distintos.

3 Desconstruindo um mito

O termo “anarquismo” comumente é utilizado no sentido pejorativo para designar uma situação caótica onde impera a mais absoluta desordem. Trata-se de uma construção equivocada. Anarquismo não significa o reinado da anomia, a total ausência de leis, projetos e programas de ação. Não representa um total niilismo político, social e moral. Ao contrário, ao criticar as bases do sistema sócioeconômico capitalista e suas leis, poder e instituições, propõe os seus próprios projetos de ação e suas leis para estabelecer um programa capaz de criar uma sociedade livre, igualitária e sem hierarquias.

A palavra “anarquismo” deriva da raiz grega an (não, sem) e archê (governador). Trata-se de um termo que designa a idéia de que a sociedade existe de forma independente ao poder e à coação exercidos pelo Estado, sendo este considerado nocivo e dispensável ao estabelecimento de uma autêntica comunidade humana livre e emancipada. Neste sentido, anarquia não representa a ausência de ordem, mas a ausência de coação, de hierarquia, de poder político. Anarquia, na verdade, pressupõe ordem; não a ordem burguesa; mas uma ordem pautada em organizações horizontais e libertárias sem exploração, sem dominação; sem imposição; sem arbítrio. A harmonia e a ordem social são, ao contrário da construção mítica em torno do termo, os principais objetivos a serem alcançados pelo movimento anarquista.

4 Um olhar crítico à sociedade contemporânea

Principais expoentes da teoria anarquista, Proudhon (1809-1865), Bakunin (1814-1876) e Kropotkin (1842-1921) representam, à história dos movimentos sociais libertários e emancipacionistas, um profundo empenho por analisar criticamente a estrutura sócio-econômica capitalista e por dotar o anarquismo de uma base científica. Á luz da teoria anarquista, serão examinados os mais relevantes aspectos e críticas à sociedade burguesa contemporânea.

No século XVIII, a burguesia francesa revolucionária, para atender aos seus anseios contrários às arbitrariedades do antigo regime (estrutura estamental baseada na servidão e no privilégio do clero e da nobreza), pautou-se no reconhecimento dos direitos do homem, ao afirmar que todos, em decorrência da sua humanidade, têm direitos inalienáveis à igualdade, à liberdade e à fraternidade. Trata-se da existência de direitos humanos que possuem uma existência prévia às estruturas de poder vigentes. Esse jusnaturalismo racionalista de fundamento dos direitos humanos foi utilizado como trunfo às pretensões transformadoras e revolucionárias da burguesia ascendente para conseguir a adesão do imprescindível apoio do povo para a tomada do poder. E eis que, em 14 de julho de 1789, o povo invadiu a bastilha (símbolo máximo do absolutismo), marcando o início do processo revolucionário francês.

Posteriormente, após a consolidação da burguesia no poder por intermédio dos Estados Liberais, a idéia de direito natural (a priori) foi convertida em direito positivo (a posteriori), agora não mais decorrente de um elemento intrínseco à razão humana, mas da imposição de ditames jurídicos pela autoridade competente, exemplo típico da materialização do paradigma científico da modernidade, que “reduziu a complexidade da vida jurídica à secura do dogmatismo”5.

Esta mudança de paradigma, do jusnaturalismo ao juspositivismo, deu-se em virtude das novas aspirações da burguesia ao estabilizar-se no poder. À burguesia não interessava, verdadeiramente, promover uma igualdade efetiva de todos, mas a preservação de seus privilégios de classe. Assim, estabeleceu a igualdade formal de todos perante a lei sem assegurar as necessárias condições materiais para que essa igualdade fosse efetivamente exercida no plano empírico. Desta forma, transmitiu-se ao povo uma simples aparência de igualdade e liberdade capaz de conter os possíveis ânimos revoltosos e de garantir a intangibilidade de seus interesses classistas.

Assim, o direito, instrumento de legitimação da ordem posta, compatibilizou-se às aspirações do Estado liberal burguês individualista, dando-lhe o necessário suporte institucional ao seu pleno desenvolvimento. Desta forma, os sistemas jurídicos pós-revolução assentaram-se na tutela individual da liberdade, da propriedade e da segurança, introduzindo ao mundo uma concepção formal de Constituição baseada em duas características fundamentais: na idéia de separação dos poderes do Estado e na idéia de declaração de direitos negativos – direitos de oposição e de resistência contra o Estado. Trata-se da consolidação dos direitos de primeira dimensão, materializados nos direitos civis e políticos.

Esse modelo jurídico liberal burguês representa um dos suportes fundamentais de atuação política da burguesia, ao propiciar uma ordem pautada em critérios de certeza jurídica, previsibilidade, garantia das expectativas, respeitabilidade aos direitos subjetivos, garantia ao princípio da estrita legalidade, proteção à propriedade privada e respeito ao pactuado, à livre iniciativa e à livre concorrência, propiciando, desta maneira, a plena satisfação dos interesses da elite burguesa, uma aparente harmonia social (com a universalização da igualdade formal, coesão das relações sociais), a ocultação das reais condições sociais de vivência do homem em sociedade, a exclusão do povo de uma efetiva política de inclusão, emancipação e transformação social e a conseqüente preservação do modo de produção capitalista fundado em bases liberais.

Percebe-se que, paradoxalmente, a burguesia lutou, ao lado e com o apoio do povo, em favor da construção de um novo status quo político, social e jurídico, de uma nova visão do mundo e da vida, contra o dogmatismo e a autoridade do poder real dos Estados Modernos, mas, em contraste, passou, com a total exclusão do povo que outrora lhe apoiara, a pautar-se na mesma idéia de dogmatismo e autoridade, com a simples diferença de que agora, defende não mais o arbítrio do antigo regime, mas a continuidade do poder burguês, com a exclusão de qualquer outro.

Em decorrência desta atitude de desprezo, os anarquistas acusam a burguesia de ingratidão e de traição (a burguesia não soube ser igualitária na repartição dos benefícios da revolução e, por isso, surgem as idéias comunistas, socialistas e anarquistas em todas as suas diferentes vertentes para repensar e modificar a nova ordem implementada) por ter ela renegado o ideário liberal e reprimido a verdadeira revolução popular libertária e emancipatória, conformando-se com a satisfação de seus privilégios de classe e com a total negação do povo – povo este sem o qual sua ação insurrecional contra a nobreza e o clero não teria sido possível. A burguesia, ao longo da sua trajetória, desprezando o seu potencial transformador da realidade social, seguiu um caminho de infâmias, espoliação, arbitrariedade e arrogância, afirmam os anarquistas6.

E é contra esta...

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