Uma breve introdução ao SUS para compreensão do direito à saúde no Brasil

AutorLeticia Canut
CargoProfessora, advogada, mestre e doutoranda em direito na Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC
Páginas186-214

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1. Introdução

Da análise dos preceitos constitucionais relativos ao direito à saúde - artigos 6o, e 196 a 200 - constata-se a complexidade desse direito social que, ao ser garantido a todos, exige atuação positiva do Estado para a sua concretização.

Em conformidade com a Constituição de 1988 essa atuação dar-se-á por meio da formulação e execução de políticas públicas no âmbito de um Sistema Único de Saúde a ser organizado de forma descentralizada, regionalizada e hierarquizada e com participação da comunidade para assegurar a universalidade, a equidade e integralidade das ações e serviços de saúde.

Desta forma, dando ênfase à dimensão objetiva do direito à saúde1, ou seja, ao dever do Estado em concretizá-lo por meio do Sistema Único de Saúde-SUS, procurar-se-á traçar uma visão geral desse sistema para que todos os interessados e, principalmente os operadores do direito, possam atuar nessa área jurídica com conhecimento mínimo de tal arranjo institucional que é o instrumento principal e primeiro para a efetivação do direito à saúde em todos os aspectos: de prevenção, recuperação e cura.

Além desse panorama geral do SUS apontar-se-ão, a titulo de especulação e não de conclusão, alguns desafios que ele deve enfrentar para concretizar-se. Para tanto o artigo organizar-se-á em sete tópicos: 1) Introdução; 2) breve histórico da assistência à saúde no Brasil no período que se estende da década de 20 à década de 80; 3) definição e descrição do Sistema Único de Saúde; 4) Instituições que formam o SUS; 5) Princípios e Diretrizes do SUS; 6) descentralização no âmbito do SUS e as competências dos entes federativos e relações intergestores ; 7) considerações finais para apontar alguns desafios a serem enfrentados pelo SUS.

2. Breve histórico

Para compreender a atual configuração do SUS, o seu processo de implementação e os desafios que este sistema enfrenta para se concretizar, é preciso retornar ao século XX, principalmente no ano de 1923. Neste momento, com a publicação da Lei Elóy Chaves, que criou as Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPS), foram dados os primeiros passos rumo à formação do modelo de seguro social (RODRIGUES; SANTOS, 2009, p. 65; ANDRADE; BARRETO, 2007, p.27) brasileiro.

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Esse momento marcou o início da separação dicotômica entre a atenção médica de caráter preventivo e a de caráter curativo: de um lado as ações de saúde pública, coletivas, como as campanhas sanitárias e, de outro, a assistência médica individual pelas CAPs aos trabalhadores urbanos mediante a disponibilização de serviços comprados do setor privado por meio de credenciamento médico. (COHN; NUNES; JACOBI; KARSCH, 2006, p. 15).

As CAPs eram entidades públicas que mantinham sua autonomia em relação ao Estado e que se organizavam por empresas. Em 1933 elas foram substituídas pelos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs), autarquias que a partir de então institucionalizaram o seguro social e organizaram-no por setores da atividade econômica (COHN; NUNES; JACOBI; KARSCH, 2006, p. 15; 16) e não mais por empresas (COHN, 2008, p. 238).

As CAPs e os IAPS prestavam assistência aos seus segurados, que eram empregados urbanos, e aos familiares destes em virtude das contribuições pagas paralelamente às contribuições dos empregadores e do Estado2. Além da diferença acima referenciada e da origem de recursos para financiá-los, com os IAPs houve tratamento diferenciado para a concessão dos benefícios em virtude da categoria profissional de cada segurado (MATIJASCIC apud RODRIGUES; SANTOS, 2009, p.66; RODRIGUES; SANTOS, 2009, 73 -75). Nesse sentido, Rodrigues e Santos reforçam que "Aos invés de cidadãos com direitos, trata-se de segurados com benefícios. (RODRIGUES; SANTOS, 2009, p.67).

Com a criação do Ministério da Saúde em 1953 intensificou-se a dicotomia entre atenção médica de caráter curativo e a de caráter preventivo, já iniciada com a formação das CAPs, e que é acompanhada pela dicotomia serviços privados x serviços públicos (COHN; NUNES; JACOBI; KARSCH, 2006, p. 15; 16). Foram divididas as responsabilidades dos IAPs e do novo Ministério da seguinte forma: aqueles mantiveram suas responsabilidades previdenciárias e de assistência médica enquanto este deveria dedicar-se a ações preventivas de caráter coletivo (RODRIGUES; SANTOS, 2009, p.66; 73,74).

Entre 1950 e 1960, mediante a possibilidade de fornecer a assistência médica e hospitalar diretamente ou mediante contratos com outras entidades oficiais ou com particulares, verificou-se a opção dos IAPs pelo credenciamento dos serviços privados. (BAHIA, 2005, P. 413-416)

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Apesar de os IAPs terem contemplado mais trabalhadores, o número dos excluídos ainda era alto, como exemplo dos trabalhares rurais e do setor informal (RODRIGUES; SANTOS, 2009, p.66). Algumas CAPs remanescentes conviveram com os IAPs até o ano de 1966, tendo ocorrido no ano seguinte a unificação do sistema previdenciário brasileiro no Instituto Nacional de Previdência Social - INPS (COHN; NUNES; JACOBI; KARSCH, 2006, p. 16). Com este Instituto o atendimento dos segurados e seus dependentes passa a ser fornecido de forma igualitária, diferenciando-se do esquema anterior dos IAPs. (RODRIGUES; SANTOS, 2009, p. 79)

Com o INPS a dicotomia entre atenção médica de caráter curativo e a de caráter preventivo é mantida e estende-se até meados da década de 70 diante da "clara divisão de tarefas e clientelas [....]", principalmente quando "[...] a rede pública de serviços passa a assumir crescentemente a assistência médica individual". (COHN; NUNES; JACOBI; KARSCH, 2006, p. 16).

Além dessa continuidade, a nova estrutura herdou e aprofundou o padrão"[...] de transferência de atividades assistenciais mediante contrato à iniciativa privada [...]". A década de 70 marca, assim, a "intensificação da privatização da assistência médica hospitalar". A regulamentação desse período sobre essas relações entre o público e o privado reflete-se ainda hoje na delimitação da atuação do mercado e do Estado na área da saúde. (BAHIA, 2005, p. 422; 427).

A criação do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) em 1974 e do Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (Sinpas) em 19773, com os seus três institutos - I Inamps4, INPS e Iapas5, colaborou para esse cenário. (ESCOREL, 2008, p. 402-404).

Com o Inamps consolidava-se a diferenciação entre as funções deste Instituto e as do Ministério da saúde criando um "duplo sistema de saúde profundamente estratificado". Um sistema em que o Ministério da Saúde assumiu, além das funções para com a saúde pública, "[...] os serviços de assistência médica hospitalar e ambulatorial para os pobres, sem emprego fixo, sem carteira de trabalho e, conseqüentemente, sem o status de cidadão (Santos, 1978)", configurando um sistema para pobres e trabalhadores em situação não regularizada de um lado, e de outro, por meio do Inamps, um sistema com serviços médicos para trabalhadores que atuavam no mercado formal6. (GERSCHMAN; VIANA, 2005, p. 311).

Tendo em vista o contexto ora traçado pode-se sintetizar, de maneira simplificadora, esse quadro de dicotomias por meio dos dizeres Cohn, para quem, com a divisão e dualidade entre a área previdenciária e a específica da saúde para a implementação de políticas de saúde

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[...] criam-se então duas grandes clivagens no sistema de saúde brasileiro, esta constitui uma herança: a primeira delas, oriunda diretamente do sistema previdenciário que diferenciava as categorias de trabalhadores por sua inserção no mercado de trabalho [...]. Já a segunda clivagem diz respeito a mudanças acentuadas na estrutura da demanda e da oferta de serviços de saúde que ocorrem no País a partir da década de 1970, criando-se com isso um sistema de saúde, em particular de assistência médica, compostos de dois subsistemas de saúde: um subsistema público e outro privado, diferenciando com isso o acesso dos indivíduos aos serviços de saúde segundo sua posição no mercado de trabalho e de consumo.

Isso porque a partir da década de 1970 o setor público de serviços de saúde, vinculado ao Ministério da Saúde, passa a ofertar assistência médica individual à população previdenciária e não previdenciária, para além dos tradicionais programas que ele já desenvolvia, sobretudo na área materno-infantil. É dessa época que a própria previdência social comprava serviços de assistência médica sob responsabilidade do Ministério da Saúde e/ou dos estados e dos municípios, pagando a produção dos serviços estatais para esse público previdenciário por produção, tal como fazia o setor privado. [...] (COHN, 2008, p. 240,241).

Desta forma, a assistência médica individual curativa assumida pelo Ministério da saúde caracterizou-se pela organização de programas segmentados, ou seja, pela convivência de vários programas, cada um com um foco específico: um programa para adultos ao lado de programas de atenção à mulher e de saúde do trabalhador e etc. Não havia integração entre as políticas nem superação da dicotomia curativo x preventivo. (COHN; NUNES; JACOBI; KARSCH, 2006, p. 18,19).

O Sistema Nacional de Saúde, criado pela lei n ° 6.229/75, reforçou essa dicotomia ao estabeleceras especialidades do Ministério da Previdência eAssistência Social, criado em 1974, e as do Ministério da Saúde. (COHN; NUNES; JACOBI; KARSCH, 2006, p. 16,17).

A previdência social, associada ao investimento e gastos da União nesse setor, atuava no fornecimento de serviços de saúde por meio da "compra dos serviços privados - seja sob a forma de credenciamento ou sob a forma de convênios [...]" . Assim, as opções da década de 70 permitiram o florescimento e capitalização...

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