A Experiência Brasileira do Código de Defesa do Consumidor - De setembro de 1990 a julho de 2013

AutorLuiz Antonio Rizzatto Nunes
CargoDesembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Páginas67-104

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Excertos

"Ninguém mais duvida da mudança ocasionada pela legislação consumerista na relação fornecedor-consumidor e que fez com que não só a qualidade da produção melhorasse como também da comercialização, com ofertas mais honestas, informações mais adequadas, atendimento mais bem qualiicado, enim, a norma fez o mercado amadurecer"

"Não será possível interpretar adequadamente a legislação consumerista se não se tiver em mente este fato de que ela comporta um subsistema no ordenamento jurídico que prevalece sobre os demais - exceto, claro, o próprio sistema da Constituição, como de resto qualquer norma jurídica de hierarquia inferior -, sendo aplicável às outras normas de forma supletiva e complementar"

"O caráter principiológico especíico do CDC é apenas e tão somente um momento de concretização dos princípios e garantias constitucionais vigentes desde 5 de outubro de 1988 (data do início de vigência da atual Constituição Federal brasileira - CF) como cláusulas pétreas, não podendo, pois, ser alterados"

"Para interpretar adequadamente o CDC, é preciso ter em mente que as relações jurídicas estabelecidas são atreladas ao sistema de produção massiicado"

"Antes da Lei 8.078/90, nós consumidores, muito provavelmente ingerimos toneladas de produtos vencidos e sorvemos milhares de litros de bebidas ultrapassadas"

"O Código de Defesa do Consumidor regula situações em que produtos e serviços são oferecidos ao mercado de consumo para que qualquer pessoa os adquira, como destinatária inal"

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1. Introdução

Neste ano de 2013, a Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, isto é, o Código de Defesa do Consumidor brasileiro (CDC), completa 23 anos de existência. Como sempre dissemos, a boa notícia é que o CDC é daquelas leis que comemoram aniversário, sempre lembrada tanto em setembro (mês da edição) como em março (mês em que entrou em vigor e o mês em que também se comemora o dia mundial dos direitos dos consumidores). Isso tem colaborado para marcar sua presença, ajudando a manter viva em nossa mente a existência dessa lei tão importante para o exercício da cidadania no Brasil.

E, claro, com 23 anos de idade seria de se esperar que a lei fosse cumprida por todos o tempo todo. Infelizmente, não é bem assim. Todavia, os avanços sociais advindos da aplicação do CDC superam em muito as violações ainda praticadas. Há vários fatores que levaram ao sucesso da lei. Focaremos em alguns deles, especialmente apresentando o modelo principiológico da lei e seu caráter de abrangência, que permitiu regular todo o mercado de consumo capitalista, escapando da tradição privatista que tanto impediu que os consumidores fossem respeitados.

Com um início de vigência que, lembramo-nos bem, assustou empresários em geral, muitos publicitários e os grandes conglomerados em especial, aos poucos o CDC foi se irmando e deixando de ser o bicho-papão de que o acusavam injustamente. Ao que consta, ninguém mais duvida da mudança ocasionada pela legislação consumerista na relação fornecedor-consumidor e que fez com que não só a qualidade da produção melhorasse como também da comercialização, com ofertas mais honestas, informações mais adequadas, atendimento mais bem qualiicado, enim, a norma fez o mercado amadurecer.

Para icarmos apenas com um exemplo: antes do CDC, a maior parte dos produtos não trazia estampada nas embalagens seu prazo de validade. Era de se espantar com o curto prazo de validade de alguns produtos. Até água em garrafa ou em copo plástico tem curto prazo de validade! Antes da Lei 8.078/90, nós consumidores, muito provavelmente ingerimos toneladas de produtos vencidos e sorvemos milhares de litros de bebidas ultrapassadas. (Ocorre-me um fato tão terrível quanto peculiar: sou da época dos refrigerantes em garrafa - apenas em garrafa - e agora me vem a memória de quantas vezes, quando garoto, retirei a tampinha e com a mão limpei as marcas de ferrugem que estavam no vidro do lado de fora do gargalo, antes de beber o refrigerante... Sabe-se lá, das vezes que adoeci, quantas não estavam relacionadas com produtos e bebidas deteriorados.)

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Pois bem, o susto dos empresários passou. A lei teve, como tem, muito boa eicácia - ou, como se costuma dizer no Brasil, é "uma lei que pegou".

2. Lei principiológica

Antes ainda de ingressarmos no exame das normas estabelecidas na Lei

8.078/90, é necessário colocar uma questão preliminar, que deve nortear o trabalho de todos aqueles que pretendem compreendê-la. É preciso que se estabeleça claramente o fato de o CDC ter vida própria, eis que foi criado como subsistema autônomo e vigente dentro do sistema constitucional brasileiro.

Além disso, os vários princípios constitucionais que o embasam são elementos vitais ao entendimento de seus ditames. Não será possível interpretar adequadamente a legislação consumerista se não se tiver em mente este fato de que ela comporta um subsistema no ordenamento jurídico que prevalece sobre os demais - exceto, claro, o próprio sistema da Constituição, como de resto qualquer norma jurídica de hierarquia inferior -, sendo aplicável às outras normas de forma supletiva e complementar1.

A edição do Código de Defesa do Consumidor inaugurou um novo modelo jurídico dentro do sistema constitucional brasileiro, ainda pouco explorado pela teoria do direito. Em primeiro lugar, a Lei 8.078/90 é código por determinação constitucional (conforme art. 48 do ADCT/CF), o que mostra, desde logo, o primeiro elemento de ligação entre ela e a carta magna.

Ademais, o CDC é uma lei principiológica, modelo até então inexistente no sistema jurídico nacional. Como lei principiológica entende-se aquela que ingressa no sistema jurídico fazendo, digamos assim, um corte horizontal, indo, no caso do CDC, atingir toda e qualquer relação jurídica que possa ser caracterizada como de consumo e que esteja também regrada por outra norma jurídica infraconstitucional. Assim, por exemplo, um contrato de seguro de automóvel continua regulado pelo Código Civil e pelas demais normas editadas pelos órgãos governamentais que regulamentam o setor (Susep, Instituto de Resseguros etc.), porém estão tangenciados por todos os princípios e regras da Lei 8.078/90, de tal modo que, naquilo que com eles colidirem, perdem eicácia por tornarem-se nulos de pleno direito.

E mais e principalmente: o caráter principiológico especíico do CDC é apenas e tão somente um momento de concretização dos princípios e garantias constitucionais vigentes desde 5 de outubro de 1988 (data do início de vigência da atual Constituição Federal brasileira - CF) como cláusulas pétreas, não podendo, pois, ser alterados.

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Com efeito, o que a lei consumerista faz é tornar explícitos, para as relações de consumo, os comandos constitucionais. Dentre estes destacam-se os princípios fundamentais da República, que norteiam todo o regime constitucional e os direitos e garantias fundamentais.

Assim, à frente de todos está o superprincípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), como especial luz a imantar todos os demais princípios e normas constitucionais e apresentando-se a estes como limite intransponível e, claro, a toda e qualquer norma de hierarquia inferior. A seguir, no texto constitucional estão os demais princípios e garantias fundamentais, que são reconhecidos no CDC e que aqui relembramos: o princípio da igualdade (CF, art. 5º, caput e inciso I); a garantia da imagem, da honra, da privacidade, da intimidade, da propriedade e da indenização por violação a tais direitos de modo material e também por dano moral (CF, art. 5º, V, c/c os incisos X e XXII); ligado à dignidade e demais garantias está o piso vital mínimo insculpido como o direito à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à segurança, à previdência social, à maternidade etc. (CF, art. 6º); e unidos a todos esses direitos está o da prestação de serviços públicos essenciais com eiciência, publicidade, impessoalidade e moralidade (CF, art. 37, caput).

Não se pode olvidar que é também cláusula pétrea como dever absoluto para o Estado a defesa do consumidor (CF, art. 5º, XXXII). Resta ainda lembrar que a Constituição Federal estabelece que o regime econômico brasileiro é capitalista, mas limitado (CF, art. 1º, IV, c/c arts. 170 e ss.): são fundamentos da República os valores sociais do trabalho e os valores sociais da livre iniciativa (CF, art. 1º, IV), e a defesa do consumidor é princípio fundamental da ordem econômica (CF, art. 170, V).

Ora, o CDC nada mais fez do que concretizar numa norma infraconstitucional esses princípios e garantias constitucionais. Assim está...

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