O bem-estar dos cães domiciliados em apartamento

AutorMarcia Graça Graminhani
CargoEspecialista em Bem Estar Animal pelo Cambridge E-Learning Institute
Páginas187-205

Ver nota 1

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Introdução

Vítimas da solidão, as crianças de famílias pouco afetivas e os adultos ilhados em um mar de automação recorrem aos animais em busca de companhia. As crescentes dificuldades de convivência, especialmente nos grandes centros, frustram a necessidade humana de estabelecimento de vínculos. Para essas pessoas, são os animais que desempenharão o papel de interlocutores para a aceitação almejada.

Para muitos idosos o animal de estimação "pode representar a compensação para o ‘ninho vazio’, a vida sem sentido, falta de convívio com os familiares [...] [porque] não há pessoas em suas vidas, somente animais". (BERZINS, 2000, apud UYEHARA )

Não faltam comprovações científicas de que as crianças "formam ligações poderosas com seus bichos de estimação, que em muitos casos podem ser tão fortes quanto a que têm com os pais" (BECKER, 2003, p.45). Convivendo com os animais de estimação, elas desenvolvem-se cognitiva, emocional e socialmente e tendem a ser pessoas mais respeitosas, responsáveis e equilibradas. É com os animais de estimação que elas ensaiam a viver em sociedade.

A Terapia Assistida por Animais e suas vantagens para a manutenção da saúde humana está documentada em inúmeras pesquisas2. Os tratamentos são os mais diversos: "asma, alergias, envelhecimento, artrite, depressão, transtorno do déficit de atenção / hiperatividade (TDAH), dor crônica, câncer, diabetes e problemas cardíacos" (BECKER, 2003, p.8). Uma das pesquisas mais referidas nessa área foi conduzida na Universidade Estadual de Nova Iorque3, em Búfalo, Nova Iorque. Nela constatou-se que os animais de estimação foram mais efetivos que os esposos na recuperação de doentes cardíacos.

Sem entrar no mérito se é ético privarmos os animais dos seus "direitos morais básicos, incluindo o direito a liberdade, a integridade física e

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a vida" (REGAN, 2006, p.9), se a criança, o idoso, o convalescente, ou o solitário for um dos 12.569.039 brasileiros que moram em apartamento na área urbana do país (IBGE42000), e desejar ali conviver com um animal de estimação, deverá considerar algumas questões que se imporão. O ponto mais visível delas, em nossa cultura antropocêntrica, serão as situações de vizinhança, oriundas da rejeição à presença de cães nos prédios. Contratos de locação e convenções de condomínio comumente proíbem a permanência de animais, e existe uma série de jurisprudências visando a resguardar o direito de propriedade (os animais como "coisas") dos condôminos. As outras questões envolvem os animais. Embora Woolston (2006) tenha dito que acariciar um animal baixa não somente a pressão e os batimentos cardíacos dos humanos, mas do animal também - dando a entender que há troca entre homens e animais, e não o uso puro e simples feito pelo homem -, fica a pergunta: como fica o bem-estar dos cães que moram em apartamento?

Este trabalho é o resultado da busca por uma resposta. A Origem, o Comportamento e as Necessidades Básicas do cão buscam servir como pano de fundo para os princípios da Ciência do Bem-Estar Animal e da Guarda Responsável de animais: o que se espera dos humanos que pretendem lidar de maneira respeitosa com os animais. O Estudo de Caso possibilita que se apliquem os fundamentos apresentados e seus desdobramentos para o animal e a comunidade. As reflexões e sugestões foram alocadas nas Considerações Finais. A base da metodologia adotada foi empírica, baseada na minha experiência em três anos como voluntária de uma Organização Civil de proteção aos animais.

Para conferir consistência às inquietações que deram origem a este trabalho e fundamentar tanto as reflexões quanto as sugestões ora apresentadas, buscou-se o auxílio de teóricos e autores de diversas áreas do saber, tais como: Psicologia; Veterinária; Etologia e Direito. A pesquisa bibliográfica, com a seleção do pensamento desses estudiosos, está relacionada em Referências Bibliográficas.

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1. Origem, etologia e necessidades básicas do cão

Os cães são da família dos canídeos (Canidae), como a raposa, o lobo e o chacal, dentre outros, e essa é a única certeza que a Ciência nos dá sobre a história deles. A teoria de origem aceita pelo maior número de cientistas aponta que os cães são descendentes dos lobos cinzentos (Canis lupus) e, mesmo sem consenso, estudos estabeleceram a sua domesticação como tendo acontecido há 15 mil anos - ambas as teorias apóiam-se na variabilidade genética de cães do mundo todo.

Pesquisadores supõem que a longevidade da convivência entre homens e cães se deva às vantagens que estes dela obtiveram - possivelmente os cuidados, em forma de proteção e alimento. Domesticado, o cão foi companheiro do nômade e caçador homem primitivo e pastoreou e cuidou dos rebanhos quando os humanos se estabeleceram. A despeito do uso que desde a pré-história vimos fazendo desses animais, por milênios eles compartilharam de aparência e morfologia suficientes para as tarefas a eles reservadas. Supõe-se que o homem de então tenha criado três grupos de cães: os de caça (lebréis5e seus cruzamentos); os de guarda e defesa (os pré-molossos6e seus cruzamentos); e os pastores. O interesse pelo cão como companhia se fortaleceu a partir do Renascimento, assim, a maior parte das cerca de 400 raças hoje existentes resulta de mudanças genéticas provocadas pelos humanos nos últimos 500 anos. Cada raça tem o seu perfil comportamental e mazelas, posto que a busca estética ignora a morfologia dos animais, ocasionando doenças e dores e comprometendo o bem-estar dos animais (GIRLING).

Apesar dessa diversidade, observa-se uma constância na forma como os cães se comportam, socializam e comunicam, explicada por Dethier e Stellar quando afirmam que "nenhum animal é capaz de se

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libertar completamente da sua herança, seu comportamento deve ser visto como inevitavelmente ligado à sua história evolutiva" (1973, p.XII).

Um apanhado sobre a conclusão de pesquisadores a respeito do comportamento dos cães foi feito por McGreevy e, em linhas gerais, eles gostam de brincar, roer, cavoucar para esconder comida, arranhar o solo para deixar uma marca visual e o cheiro de suas glândulas sudoríparas; morder (mesmo que por brincadeira), se deitar na terra e demarcar o território com urina. Os machos procuram ininterruptamente por fêmeas no cio e estas, por sua vez, tendem a cruzar com mais de um animal para que a cria tenha múltipla paternidade e, assim, aumente a diversidade genética.

São animais biologicamente sociais, que andam em matilhas e seguem um líder. A hierarquia formada não necessariamente obedece ao porte do animal e ela sempre existirá independentemente do tamanho da matilha. Os cães tendem a estabelecer forte ligação de confiança e companheirismo com o seu guardião, prezam a sua companhia e sentem sua ausência. Os cães são capazes de aprender e de solucionar problemas, ou seja, de ter um comportamento adquirido.

Não restam dúvidas de que esses animais precisam mais do que alimentação, higiene, cuidados de saúde e treinamento. Muitas das suas necessidades não serão atendidas em um apartamento, Isto os motivará a buscar formas de evitar o sofrimento daí decorrente, porque os seus registros biológicos os encaminham para que lutem para aumentar as chances de sobrevivência e para capacitá-los para a reprodução, porque "a continuação da existência de [...] uma espécie depende da efetividade das ações do indivíduo" (DETHIER; STELLAR, 1973, p.XI), com o que concorda Konrad Lorenz7(apud COBRA) "as espécies animais estão geneticamente construídas para aprenderem tipos específicos de informação que são importantes para a sobrevivência da espécie".

No apartamento, sem os devidos cuidados dos guardiões, os desvios comportamentais não tardarão a surgir, e considerando-se que "muitos

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cães apresentam pelo menos uma forma de comportamento inadequado e as atividades de 25% dos cães implica em excessivo barulho" (MCGREEVY), comprometendo o bem-estar do animal e causando questões de vizinhança.

2. A ciência do bem-estar e a guarda responsável de animais

Uma vez que o sistema nervoso dos animais humanos e nãohumanos tem o mesmo modelo de organização - medula espinhal, tronco...

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