Um Beijo pra vocês: Literatura e imprensa alternativa, anos 70

AutorMaria Lúcia de Barros Camargo
Páginas5-60
http://dx.doi.org/10.5007/1984-784X.2012v12n18p5
5
U
M
B
EIJO PRA VOCÊS
:
LITERATURA E IMPRENSA ALTERNATIVA
,
ANOS
70
1
Maria Lucia de Barros Camargo
Seria interessante fazer um jornal que se deslocasse da p osição de
onipotência; seriam interessant es os leitores que deslocassem os jornais
de sua posição de onipotência: o fim da polarização? A tempo, a
pergunta: beijemo-nos?
Rodrigo F. Naves
No Brasil da ditadura militar, periódicos publicados à margem da grande imprensa e em
oposição ao poder vigente – conhecidos em geral como “imprensa alternativa” – proliferaram
exatamente quando e onde se via, à época, um vazio. Veículos de uma “cultura de resistência”,
constituíram, efetivamente e ao contrário do que se poderia supor, a forma hegemônica de
produção cultural letrada no Brasil dos anos 70
2
. Como se constata, esse periodismo de
resistência surge, se fortalece, entra em decadência e desaparece no mesmo compasso de sua
contraface, a ditadura militar, a qual, ao tentar “proibir” e controlar a produção cultural através
da censura e dos órgãos de repressão, acabou fomentando a melhor parte da produção cultural
do período.
Dentre esse amplo e heterogêneo conjunto de publicações periódicas, um efêmero jornal
chama a atenção tanto pela importância que lhe atribuem alguns dos textos sobre a “imprensa
alternativa” quanto, ao mesmo tempo e paradoxalmente, pela ausência de trabalhos ou ensaios
a ele dedicados. Estou me referindo ao jornal Beijo, publicado no Rio de Janeiro entre
novembro de 1977 e maio de 1978. Ou talvez tenha sido até junho de 1978. O fato é que boa
parte dos textos que se referem a esta publicação afirmam que foram publicados seis números,
sendo que o número 6 está datado de maio de 1978. Mas talvez tenha existido um sétimo
número, a que não tivemos acesso: nossa coleção do Beijo no acervo do NELIC conta com seis
números, ou seja, falta-nos o misterioso sétimo e último. Em fins de 2005, num contato com o
próprio Júlio Cesar Montenegro, um dos editores, perguntei-lhe acerca da existência ou não do
1
Este trabalho é fruto do projeto de pesquisa “Poéticas contemporâneas ”, apoiado pelo CNPq.
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Já trate i desse tema em outro ensaio: “Resistência e crítica: revistas culturais bras ileira nos tempos da ditadura”.
Cf. Bibliografia citada.
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sétimo número e das possibilidades de colocarmos uma cópia digitalizada do Beijo 1 a 6 em
nosso site na internet. Em resposta, recebi este interessante e-mail, que diz muito do espírito
lúdico que animou o jornal e que se colocava, na verdade, como resistência tanto ao
autoritarismo da direita quanto ao autoritarismo das esquerdas:
[...]. Não se preocupe com direitos autorais em relação ao B eijo, único produto da Editora Boca
Ltda. (eram tempos de censura ditatorial...), porque foi uma breve e divertida experiência anarquista
onde os 40 que participavam eram igualmente “sócios”, sem donos ou editores ou redatores
“chefes”. A recusa em seguir as regras e usos vigentes na imprensa, estatuir outr as, ou construir
pedestais para estatuar personalidades era tão visceral que a única individualidade a sair na capa foi
o peão Domingos entrevistado em A Questã o A grária no Brasil, cujo exemplar vocês têm
3
.
Lembro de quando se comemorava 10 anos de maio de 68 (a “imprensa” tem mania de comemorar
datas “cheias”...) e o Beijo fez uma capa em que estava escrito Novembro, l977 (sei lá, mas era um
ano qualquer
4
). Quando perguntavam o que havia acontecido no tal mês, a gente respondia
ironicamente: “nada, o mundo parou no dia 31 de outubro e só voltou a funcionar em 1° de
dezembro”. Os espiões da ditadura ficaram ouriçados com uma carta (inventada) que o mensár io
teria recebido das Brigadas Vermelhas, mas não conseguiram contato com nossa “redaçã o” na
Lapa que vivia fechada enquanto meu apartamento no Humaitá ficava c om a pequena sala lotada
em reuniões divertidas. Não sei se os leitores se divertiam lendo ao menos a metade do que a gente
produzindo ou mesmo vendendo: “quer um Beijo?” Pois é, acho que falta um Beijo pra vocês.
Montenegro
Algumas das características do Beijo elencadas por Montenegro “experiência
anarquista”, repúdio às “regras e usos vigentes na imprensa”, ironia, atribuição errônea, humor
– são visíveis nas páginas do jornal, mas pouco lembradas pela crítica. De modo geral, quando
o Beijo é mencionado, destacam-se os seus “vínculos” com a contracultura, a crítica à esquerda
tradicional, a temática ligada ao comportamento e à sexualidade. Assim, em um artigo
publicado nos Anais da Biblioteca Nacional, podemos ler, ao lado de uma imagem da capa do
número 2 do Beijo: “Política, cultura, sociologia, comportamento, sexo: com pauta ampla e
corpo editorial em que predominavam jovens intelectuais e poetas da Zona Sul do Rio de
Janeiro, Beijo (1977, seis números apenas) foi dos primeiros alternativos a criticar a rigidez da
3
Ver todas as capas no anexo. É curioso observar a contracapa desse mesmo número, também com uma foto,
agora anônima, mas altamente reveladora do tom lúdico e irônico que marca este periódico.
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Trata-se da capa do número 5, em anexo, e o ano citado, como se vê, é 1971.
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esquerda.”
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Curiosamente, no corpo do ensaio encontra-se uma única e lacônica menção ao
jornal, apenas elencado dentre um conjunto de “alternativos políticos” que viriam da
“linhagem do Amanhã
6
. O autor parece desconsiderar as cisões havidas e as grandes
diferenças, políticas e culturais, entre os diferentes periódicos mencionados. Voltaremos a esse
ponto.
Em outro estudo, este dedicado à imprensa homossexual no Brasil
7
, lemos:
Na imprensa alternativa, Beijo (1977) foi o primeiro a discutir a sexualidade como seu principal
tema. O jornal lançou o pr imeiro grande ataque contra o preconceito com que a homossexualidade
era tratada, princ ipalmente na mídia. Em resposta à concepção de homossexualidade de O
Pasquim, trouxe em um editorial: “A imprensa ‘progressista’ não costuma incluir a sexualidade na
sua lista dos dez mais (...). No seu número 436, o Pasquim resolveu falar do homossexualismo.
Posição liberal: falar de ‘temas proibidos’. O Pasquim dá um destaque especial à imprensa gay.
Falando dela, o jornal reaf‌irma que não é ela (...) simulando liberar, quando a imprensa progressista
tratava da homossexualidade era apenas para lhe indicar rapidamente o seu lugar no meio soc ial.”
(BEIJO, 1977: editorial). A temática do prazer privilegiada nas páginas de O Beijo, que antecipou a
iniciativa de Fernando Gabeira, não foi bem recebida pelos outros alternativos; saíram ape nas seis
edições.
O trecho citado contém vários equívocos de leitura e demonstra que o jornal não foi
efetivamente lido, não recebeu uma atenção efetiva. Vejamos: a sexualidade e a temática do
prazer foram temas importantes para o jornal, mas não o “seu principal tema” – aliás, se for
possível falar em tema principal, este seria a crítica aos autoritarismos em todas as suas formas
– sequer assunto de “editorial”. No Beijo não há editoriais e o mencionado artigo sobre o
Pasquim é assinado por José Castelo (sic) Branco, que, aliás, assina outros textos em outros
números. Também não há nada que leve a conclusões acerca da recepção do Beijo de modo tão
simplista: se problemas houve, eles estão bem mais ligados às críticas às esquerdas e é dentro
desse quadro que a temática da sexualidade se insere.
5
No corpo do texto, há apenas uma fugaz referência ao jornal. Cf. BRASIL, Bruno. Por um mundo livre e menos
“careta”: a imprensa alternativa durante o regime militar. Anais da Biblioteca Nacional. vol.124, p.7-20 Rio de
Janeiro, 2004 (2007). O trec ho citado encontra-se no conjunto “Imagens do Ac ervo”, 8 páginas não numeradas
entre as páginas 16 e 17. Disponível na página da BN na internet .
6
Amanhã, editado por Raimundo Pereira, em 1967, em São Paulo.
7
Cf. os trabalhos de Marcus Antônio Assis Lima, q ue desenvolveu dissertação de mestrado sobre o tema na
UFMG em 2000. Há vá rias versões do excerto da dissertação em que o Beijo é citado disponíveis na internet, uma
vez que foram apresentadas em congressos como o V Congresso Nacional de História da Mídia, FACASPER e
CIEC, São Paulo, 2007. O trecho citado a seguir está disponível em http://www.bocc.ubi.pt/pag/lima-marcus-
assis-IMPRENSA-HOMOSSEXUAL-BRASIL.pdf.

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