As Bases do Modelo Sindical Brasileiro sob a Ótica da Teoria Crítica de Direitos Humanos

AutorCristiano Siqueira de Abreu e Lima
Ocupação do AutorMestre em Direito Internacional dos Direitos Humanos (University of Essex)
Páginas46-57

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Introdução

Fiquei sensivelmente honrado com o convite para contribuir em obra coletiva destinada a homenagear Arnaldo Süssekind, minha primeira (e contínua) referência no Direito do Trabalho. Pela ligação emocional de inesgotável admiração, o desafio em reverenciá-lo se agigantou, pois minhas inúmeras limitações não poderiam decepcionar o legado construído e deixado por Süssekind ao Direito do Trabalho. Cônscio da dificuldade em ter a mesma sensibilidade, preparo e capacidade de análise tantas vezes emprestados por Süssekind à causa da Justiça Social, advirto o leitor que a virtude deste estudo não se encontra no texto em si que, embora preparado com toda a dedicação e esmero, certamente está aquém daqueles feitos por Süssekind que ensinou e inspirou várias gerações de juristas. Na verdade, espero que a eventual proeza esteja na proposta de reflexão sobre liberdade sindical, tema selecionado por ainda reclamar na realidade brasileira modelo mais adequado e capacitado para representação democrática dos interesses dos trabalhadores.

Em uma sociedade livre, justa, solidária, em que respeitada, protegida e promovida a dignidade da pessoa humana, a noção de desenvolvimento transcende a simples acumulação de riquezas e reclama verdadeira transformação social, em que assegurados os legítimos meios necessários para a escolha individual e coletiva da vida que pretendemos viver e das liberdades que desejamos gozar1. Nessecenário, o trabalho, ao se revelar o mais importante elo de aproximação entre o desenvolvimento econômico e social2, configura essencial instrumento do

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processo emancipatório das capacidades necessárias a satisfação dos direitos humanos. O direito a remuneração justa3, por exemplo, é inter-relacionado e interdependente4 ao direito a um adequado padrão de vida, o qual será importante instrumento para o gozo dos direitos à alimentação, vestuário, moradia, saúde, educação e lazer5.

É nesse cenário que a liberdade sindical se insere e se constitui como garantia para o surgimento do fórum necessário à realização da dignidade da pessoa humana. Também traduz a principal ferramenta de materialização do trabalho decente, assim compreendido como aquele em que respeitados, protegidos e promovidos os direitos consagrados na Constituição da República e nos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, inclusive os referentes à remuneração justa e aqueles alusivos à segurança e saúde do trabalhador6. Realmente, se de um lado a liberdade sindical desempenha papel determinante para a evolução das condições de trabalho por meio da conquista e redistribuição solidária dos espaços inaugurados pelo desenvolvimento econômico7; de outro se revela instrumento democrático vital para garantir a função social do trabalho nos momentos de recessão econômica, em que aumentam as pressões de retrocesso das condições de trabalho8.

A liberdade sindical equilibra a desigual distribuição de poder nas relações de trabalho e contribui para a obtenção progressiva do diálogo, do consenso, da convergência e da administração democrática das relações de trabalho9. Sua consagração reordena a estrutura e reforça a função social do Direito do Trabalho, pois, ao propiciar a democratização do diálogo social, estabelece o cenário adequado para o surgimento e consolidação de condições justas e realistas de trabalho10.

Apesar da relevância da liberdade sindical no empoderamento dos trabalhadores para os desafios sociais e econômicos contemporâneos11, a leitura tradicional que se tem conferido ao art. 8º, incisos II e IV, da Constituição da Federal (CF) restringe o direito dos trabalhadores e empregadores de criarem e se associarem livremente aos sindicatos de sua escolha, bem como interfere na autonomia sobre a gestão financeira dessas entidades. Portanto, diante da relevância da liberdade sindical - elemento que irradia, sustenta e otimiza outros direitos humanos -, é imperioso compreendê-la com lentes que maximizem a dignidade da pessoa humana e focalizem a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, dando-se cor, brilho e nitidez ao valor social do trabalho. Imbuído desse espírito, propõe-se a interpretação das normas que estruturam o sistema sindical brasileiro da maneira mais efetiva à potencialização da capacidade emancipatória do direito do trabalho.

Assim, partindo-se da centralidade da liberdade sindical - como instrumento para realização de direitos humanos, este artigo pretende questionar as bases do sistema sindical brasileiro por meio da teoria crítica de direitos humanos.

1. Os direitos humanos sob perspectiva crítica

Muito provavelmente em decorrência do uso político e ideológico da linguagem e da abissal diferença que existe entre as condições de vida das pessoas no mundo atual - guiado por capitalismo, cada vez mais globalizado, interligado e interconectado, que impõe empoderamentos assimétricos, indutores de desigualdades sociais significativas -, a análise sobre o real valor dos direitos humanos, é marcada pelas mais variadas opiniões que compreendem desde visões excessivamente entusiasmadas, como posições demasiadamente céticas sobre seu papel prático na criação das bases de uma ordem mais igual, justa

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e solidária. É por isso que Joaquin Herrera Flores reconhece que "os direitos humanos constituem o principal desafio para a humanidade nos primórdios do século XXI"12. Longe de espelhar protagonismo idealizado e maximizado do papel dos direitos humanos na construção das capacidades necessárias para uma vida digna ou de um dimensionamento exacerbado das dificuldades impostas para seu efetivo respeito e promoção, o apontado desafio, desnudado de idealismo, mostra-se bastante realista. Se, por um lado, reconhece-se o papel fundamental dos direitos humanos na abertura de processos provisórios de construção e consolidação de espaços de luta pela dignidade humana; por outro, admitem-se inegáveis fragilidades da noção tradicional e hegemônica, fundada a partir do ideário proposto pela Carta Internacional de Direitos Humanos13 que, pautada em concepção abstrata, metafísica, essencialista do ser humano, acaba por gerar nos dias atuais paradoxos a partir das forças e valores dominantes.

É inegável que a leitura de instrumentos inter-nacionais, como a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, alimenta, em primeiro momento, a esperança de milhares de indivíduos que, desprezados pela sorte na "loteria da vida", se encontram em grave situação de vulnerabilidade. A linguagem adotada no texto reconhece ineditamente que todos "nascem livres e iguais em dignidade" e que os direitos humanos, em rol relativamente amplo, são universais e indivisíveis devendo ser assegurados sem qualquer tipo de discriminação. Sem prejuízo da importante discussão relacionada à imposição de uma visão ocidentalizada do modelo tradicional, pouco aberta a outras formas de se alcançar a dignidade14, é certo que, se as palavras cuidadosamente escolhidas no texto tivessem a força mágica de transformar a realidade, estaríamos em um mundo mais igual, com menos mortes evitáveis, com pessoas efetivamente capacitadas a escolher os rumos das próprias vidas em razão do acesso ao trabalho decente, com indivíduos mais alimentados, instruídos, resguardados por um sistema de saúde eficiente, protegidos por lares adequados; enfim, com melhores capacidades para uma existência digna. Entretanto, se a visão proclamada não se faz amparada por elementos concretos que viabilizem o seu conteúdo, se inexiste interesse político e econômico para realização do projeto de direitos humanos, as sentenças bem construídas empolgarão e até poderão servir de munição para mudanças em uma ou outra situação específica, mas não transformarão, apenas com tinta e papel, a realidade do mundo imanente, historicamente construído em bases socioeconômicas desiguais.

Não é por outro motivo que, ao mesmo tempo em que se percebe aumento significativo da previsão de direitos humanos em sistemas normativos nacionais, regionais e globais, persiste-se prática generalizada de violação ao conteúdo desses mesmos direitos que impede grande parte da população mundial a ter acesso aos meios necessários a uma vida digna. As constatações empíricas, reportagens de jornal, estatísticas oficiais de organismos inter-nacionais e de organizações não governamentais, bem como diversas outras fontes de informação, evidenciam que o modelo abstrato15 e idealizado de proteção, construído a partir da teoria tradicional, é frágil e pouco eficiente para desafiar as relações de poder, uma vez que dissociado dos contextos socioeconômicos que condicionam a concretização dos próprios direitos humanos16.

Um dos problemas da noção tradicional dos direitos humanos está justamente em seu fundamento na condição humana que possui forte carga jusnaturalista, indutora à pureza inexistente e à abstração do conteúdo axiológico desses direitos, completamente dissociada de contextos reais. Os direitos humanos não são imaculados ou puros, tampouco são dádivas de alguma entidade metafísica ou derivam de nossa

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essência humana17; na verdade, são o resultado de construções históricas contínuas decorrentes de processo cultural de reação - funcional ou antagonista - diante dos entornos das forças dominantes18, sendo natural que seu desenvolvimento se promova em processo errático e não linear. Por serem forjados a partir da colisão de interesses contrapostos, os direitos humanos são produtos culturais "impuros", que podem atender não apenas ao propósito de criação de espaços de luta pela dignidade, mas também ao intuito de manter relações assimétricas de poder, forjadas pela (ir)racionalidade do capital.

A abordagem histórica sugere que, longe de representarem exclusivamente sincera reação de...

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