Direito e autopoiese (segunda parte): sobre o acoplamento estrutural: os mesmos problemas da autopoiese

AutorJosué Mastrodi Neto
Páginas31-46
1
DIREITO E AUTOPOIESE (SEGUNDA PARTE). SOBRE O ACOPLAMENTO
ESTRUTURAL: OS MESMOS PROBLEMAS DA AUTOPOIESE
LAW AND AUTOPOIESIS (SECOND PART). ON THE STRUCTURAL
ENGAGEMENT: THE SAME PROBLEMS OF THE AUTOPOIESIS
Josué Mastrodi Neto
1
Resumo: Em artigo anterior,2 tratei da dificuldade teórica de se aceitar a utilização de
um conceito de autopoiese, originalmente desenvolvido na biologia, para se
compreender, a partir dele, a construção do Direito. Em termos filosóficos, é possível
considerar a hipótese de um organismo vivo que surgiu por conta própria a partir de sua
diferenciação com o meio ambiente. Em astrofísica, a ideia de um universo que surgiu
de si mesmo (teoria do big bang) pode perfeitamente ser considerada a partir da
hipótese autopoiética. Em tal artigo, apresentei três críticas ao conceito de autopoiese
para demonstrar sua inaplicação no âmbito das ciências sociais, em especial do direito.
Niklas Luhmann, o principal autor da teoria da autopoiese aplicável a sistemas sociais,
desenvolveu, em sua teoria, a ideia de acoplamento estrutural dos sistemas, um
construto pelo qual sistemas autopoiéticos distintos poderiam atuar conjuntamente para
efetivarem certas operações que, sozinhos, não poderiam realizar. Luhmann desenvolve
tal construto como forma de, pelo acoplamento, eliminar certas falhas de sua teoria. No
presente artigo procuro mostrar que a teoria da autopoiese, mesmo com o acoplamento
estrutural, mantém seus problemas e permanece inaplicável ao direito.
Palavras-chave: Filosofia do Direito, teoria dos sistemas, autopoiese, Niklas Luhmann.
Abstract: In a previous paper, I discussed on the theoretical difficulty to accept the
autopoiesis, a concept originally developed in biology, as a paradigm by which is
possible to understand Law. In philosophical terms, one can consider the hypothesis of a
primordial living organism that was born by its own by means of its differentiation to
environment. In astrophysics, the idea of an universe that appears from itself (the big
bang theory) can be perfectly considered as if it is autopoietic. In such paper, there were
pointed out three critiques to the concept of autopoiesis to indicate that it is not
applicable to social systems, especially to Law. Niklas Luhmann, the major author of
autopoietic social systems theory, developed the idea of a structural coupling of
systems, a construct by which distinct autopoietic systems can act together to run
certain operations that they could not do alone. Luhmann uses this construct as a form
to, by the coupling, eliminate certain failures of his theory. In this article I seek to show
that autopoietic theory, even though the creation of the structural coupling, keeps its
problems and is still incompatible with Law.
Keywords: Philosophy of Law, theory of systems, autopoiesis, Niklas Luhmann.
Considerações iniciais
1 Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo USP. Mestre em
Direito da Administração Pública pela Universidade Gama Filho. Especialista em Direito Empresarial
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduado em Direito pela Universidade de São
Paulo. Professor-pesquisador da Pontifícia Un iversidade Católica de Campinas e Professor da disciplina
Direito Administrativo do curso de graduação em Direito. E-mail: mastrodi@p uc-campinas.edu.br
2 Publicado na Revista Dir eitos Culturais, volume 8, número 15. Santo Ângelo , 2013, p. 16-35.
Disponível em: http://srvapp2s.santoangelo.uri.br/seer/index.php/direitosculturais/issue/current
2
A Teoria dos sistemas sociais de Niklas LUHMANN é desenvolvida sobre bases
idealistas e possui como pressupostos, entre outros, (A) que os sistemas sociais existem;
(B) que são autopoiéticos, isto é, autoconstituídos; (C) que são formados
exclusivamente por comunicações; (D) que tudo o que existe no mundo pode ser
compreendido e interpretado segundo o sentido dado pelo sistema social conforme seu
código interno; (E) que o sistema, ao observar o exterior (meio ambiente), realiza a
transformação dos ruídos externos em comunicação interna; (F) que essa transformação
é contingente, pois o sistema pode não transformar todos os ruídos em comunicações;
(G) que a comunicação possui uma segunda contingência, que é a impossibilidade de o
sistema garantir entendimento sobre o que ele comunica; (H) que todas as comunicações
realizadas possuem mesmo grau de importância; (I) que a diferenciação das
comunicações pode determinar a criação autopoiética de subsistemas sociais, por
exemplo, um sistema econômico, um político e um jurídico; (J) que os subsistemas,
cada qual com seu código próprio, é entendido como ruído pelos outros subsistemas;
(K) que os mesmos eventos ocorridos no meio ambiente podem ser observados por dois
ou mais subsistemas ao mesmo tempo, que darão seu próprio sentido ao evento; (L) que
os subsistemas podem funcionar em conjunto, por meio do conceito de acoplamento
estrutural, o que reduziria o grau de contingência da comunicação.
Isto é, a teoria é fundada em certas considerações hipotéticas que são dadas
como válidas para permitir o desenvolvimento da própria teoria, sem qualquer
preocupação com a correspondência dos pressupostos à realidade. Não há problema
algum nisto. VAIHINGER,
3 em excelente estudo sobre as ficções, demonstrou o uso deste
construto para o desenvolvimento do pensamento humano nas mais diversas áreas do
saber, do direito à matemática, das ciências humanas às naturais. O problema reside em
manter-se a utilização da ficção mesmo depois de se constatar que ela é falsa, isto é,
mesmo depois de descoberta a causa determinante da teoria. A meu ver, o problema de
LUHMANN ainda é mais profundo. A teoria dos sistemas sociais é uma estrutura de
pensamento com uma lógica interna com elevadíssima consistência. Porém, ela se
parece mais com um jogo de tabuleiro, cujas regras servem para o desenvolvimento
exclusivo do jogo, que uma teoria descritiva da realidade social, externa à teoria.4 A
realidade social existe e pode ser compreendida independentemente das construções
teóricas de LUHMANN. Para além disso, a realidade social não funciona conforme a
estrutura teórica da autopoiese.
O último dos pressupostos relacionados acima, o do acoplamento estrutural, foi
um dos últimos conceitos desenvolvidos pela genialidade de LUHMANN. Tal conceito
resolve um problema interno de sua teoria, qual seja, o de dizer como é possível que
dois subsistemas sociais funcionem de modo conjunto. A meu ver, ele conseguiu.
Porém, sua teoria, com ou sem o conceito de acoplamento estrutural, permanece alheia à
3 VAIHINGER, Hans. The Philosophy of ‘As If’. London: Routledge, 1952.
4 A corroborar com esse entendimento: “... por conta de sua idealidade, de seu altíssimo grau de abstração
ficcional, os termos e conceitos da teoria sistêmica, especial mente o conceito-c have de autopoiese,
passam a se referir à própria teoria e não mais ao seu pretenso objeto de descrição, que era a realidade
social mesma. De tanto olhar para si própria, a teoria da autop oiese se mostra autista, ensimesmada por
conta d e tanta autorreferência. A descrição da realidade deixa de ser importante: ao contrário, a teoria
segue na sua própria contramão e passa, em vez de descrever como a realidade é, a determinar como a
realidade social deve ser d escrita. Numa autoafirmação em que somente suas leis interna s contam, a
teoria sistêmica se alça à condição de objeto de si própria. Nessa autorreferência circular e interminável,
apenas vê o que quer ver e, tendo por fundamento suas próprias regras de descrição, a teoria sistêmica,
que se propugnava descritiva, torna-se pr escritiva da realidade social. Tudo deve ser conforme
estabelecido pela teoria, que não reconhece nada senão a si próp ria.MASTRODI, Josué. Crítica
Dialético-Realista ao Conceito de Auto poiese no Direito. T ese de Doutorado. Departamento de
Filosofia e Teoria Geral do Direito. Faculdade de Direito. Universidade de São Paulo, 2008 , p. 27.

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