A Autonomia do Processo do Trabalho

AutorCarolina Tupinambá
Ocupação do AutorMestre e Doutora em Direito Processual. Professora Adjunta de Processo do Trabalho e Prática Processual Trabalhista na UERJ
Páginas40-50

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2.1. História e evolução do direito processual trabalhista

O nascimento do direito processual do trabalho coincide com o surgimento da Justiça do Trabalho37. Para fins didáticos a história do direito processual do trabalho pode ser dividida em fases distintas38:

(i) A primeira fase refere-se aos três períodos de institucionalização do direito processual do trabalho.

No primeiro período, que avança pela primeira década do século XX, sobressaem os Conselhos Permanentes de Conciliação e Arbitragem, nos quais os processos de conciliação eram regulados pelo regimento interno do Conselho; já a arbitragem seguia as normas do direito comum, ambos institutos opcionais.

No segundo período, até 1922, encontramos os Tribunais Rurais de São Paulo, com competência para dirimir os litígios originados da interpretação e execução dos contratos de prestação de serviços agrícolas, desde que em discussão valor que não superasse a casa dos 500 mil-réis.

Por fim, em 1932, no terceiro período, surgiram as Comissões “Mixtas” de Conciliação e as Juntas de Conciliação e Julgamento, estas com competência para julgar e conciliar os dissídios individuais entre trabalhadores e empregadores, aquelas para conciliar os dissídios coletivos. A partir de então surgiram outros órgãos de natureza não jurisdicional, com poderes decisórios, como por exemplo, as Juntas do Conselho Nacional do Trabalho, em 1934, e Delegacias do Trabalho Marítimo, em 1933.

(ii) A segunda fase teria como característica principal a constitucionalização formal do direito processual do trabalho, ainda que as Constituições de 1934 e 1937 tratassem da Justiça do Trabalho como órgão não integrante do Poder Judiciário39.

(iii) A terceira fase origina-se a partir do reconhecimento da Justiça do Trabalho como órgão integrante do Poder Judiciário40.

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(iv) A fase contemporânea refere-se à crise de efetividade da tutela processual trabalhista. Atualmente, o processo do trabalho busca solução para sua crise de identidade, posto não ter sido bem sucedido na realização de seus escopos ideais.

2.2. A Justiça do Trabalho: da ameaça de extinção ao apogeu de sua capilaridade com a Emenda Constitucional n 45

Em 1992, ano movimentado politicamente, máxime com impeachment do Presidente Collor, o Deputado Hélio Bicudo apresentava proposta de Emenda Constitucional que modificaria a estrutura do Poder Judiciário nacional. As discussões resistiram apenas até setembro, quando, após parecer do relator pela admissibilidade da proposta, o assunto foi deixado de lado. O tema veio a ser retomado em abril de 1995, com discurso do senador Antonio Carlos Magalhães na tribuna do Senado Federal. O político tecia duras críticas ao Poder Judiciário, o que levou à constituição de comissão destinada a proferir parecer sobre a proposta da reforma, outrora jogada a escanteio. Ao longo dos anos, com frequência quase regular, várias propostas foram apensadas e muitas Emendas apresentadas à ideia original.

Em março de 1999, tem lugar novo discurso incisivo em plenário. O então presidente do Senado, Antônio Carlos Ma-galhães, encaminhava formalmente à Mesa requerimento para a instalação da CPI do Judiciário41. Em junho do mesmo ano, em mais um dos encontros das Jornadas Brasileiras de Direito Processual Civil, em Salvador, Bahia, foi aprovada moção após debate entre mais de 60 processualistas expositores de ideias. A comunidade científica apresentaria propostas ao substitutivo do deputado Aloysio Nunes Ferreira ditadas por posição, em tese, equidistante e desvinculada de interesses corporativos42.

Os estudiosos justificaram a relevância de preocupação com a Reforma a porvir estando a matéria afeta ao acesso à justiça, traduzido por um processo rápido, simples e democrático. A partir de então, o Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) inserir-se-ia na reforma do Judiciário como interlocutor qualificado, representando a comunidade científica brasileira junto aos membros do Poder Legislativo. A Comissão do IBDP, para este fim, foi integrada por Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe, Sidnei Agostinho Beneti e Petrônio Calmon Filho. A primeira jurista, ao publicar a obra43 A Marcha do Processo, compilou a moção preparada pela comissão44.

Em maio de 2000 foi lida e publicada a redação do texto da PEC n. 96-C/1992 vencido em primeiro turno. No mesmo ano foi aprovada a redação final oferecida pela relatora, Deputada Zulaiê Cobra, após o que remetido o processo ao Senado

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Federal. Finalmente, em janeiro de 2005, no Ofício n. 1/2005, o Senado Federal comunicou a aprovação da Proposta com emendas/substitutivo45.

Tudo resultado de desafiadora crise estrutural de um Poder Estatal. Crise esta de facetas institucionais, de mentalidade, de mecanismos de controle, de credibilidade. A proliferação de direitos e a conscientização populacional resultante do processo social de democratização dilatou o Poder Judiciário a ponto de fazer com que fosse o centro das atenções46.

A Justiça do Trabalho sofria do que se poderia chamar de “complexo de extinção”. Quase todos os magistrados trabalhistas pressentiam a chegada do “Juízo Final”... Os discursos reformadores sugeriam o aniquilamento da Justiça Especializada. A extinção seria tendência. A Nova Zelândia instituiu Justiça do Trabalho em 1895 e a extinguiu em 1995. Também a Espanha vivenciou a extinção de Justiça Trabalhista. Toda a conjuntura respaldando o que poderia parecer paranoia, mas que era, de fato, uma possibilidade plausível47.

A Justiça do Trabalho é o ramo mais curioso do Poder Judiciário. A experiência de vida da Justiça do Trabalho, com mais de 70 anos de existência, trouxe a ela uma certa maturidade48.

O governo de Vargas singularizou-se por dois movimentos muito nítidos. Primeiramente, o pavor do sindicalismo autônomo e o cínico combate a ele travado e, em segundo lugar, a produção alucinante de leis positivas, ao gosto da época, reguladoras das relações individuais de trabalho. Até o advento da CLT foram publicadas quase 500 normas, a conta-gotas, para que o cidadão estivesse bem consciente e grato à autoria estatal49.

Com holofotes apontados para os pequenos e muitos direitos laborais dados como esmola, o trabalhador brasileiro nem sentia falta de suas garantias coletivas. Os sindicatos domesticados não tinham expressão, e, ainda que tivessem, os representantes do governo lá inseridos tratariam de disseminar os ânimos. Neste projeto macabro de ilusão de direitos, a Justiça do Trabalho foi criada para ser a fala oficial, estranha ao local de trabalho, livre da interferência direta das partes, para dizer quem estaria com razão na aplicação e interpretação da lei trabalhista. Ela mantinha a maléfica situação política e econômica, disfarçando-se de “tutelar”50.

Como veneno com rótulo de água limpa, a Justiça do Trabalho estaria para matar a sede dos medíocres direitos positivados em favor dos trabalhadores, antes que pensassem em ter que lutar por eles através dos sindicatos. Ademais, ainda lavaria a alma dos obreiros que acreditariam, por vitoriosos nas ações trabalhistas, terem auferido todos os seus direitos. O patronato sempre sucumbiu com muito prazer. A Justiça do Trabalho seria eterna garantia de custas baixas, indexadores menores que a inflação e ausência de penalidades. Isto sem falar na ferramenta de postergação de pagamento das dívidas patronais, no tempo que tem efeito de pressionar a parte fraca ao mau acordo e na constatação de que sequer 30% dos trabalhadores lesados acionam o ex-empregador51.

O disfarce era tão bem arquitetado que se dizia que a participação direta dos seus destinatários era mais uma garantia. Em verdade, na prática, os classistas eram representantes dos sindicatos enfraquecidos e comprometidos com o governo52.

Mas todo o jogo, cujo tabuleiro era o romantismo da natureza humana, foi se incrustando no inconsciente da população e aconteceu que, como que por ironia do destino, todos passaram a crer que a Justiça do Trabalho e o processo que lá tinha lugar, de fato, eram positivos aos trabalhadores. A ideologia transpôs a maldade. Assim, o que era para dar errado, com o passar do tempo foi sendo derrotado pela índole bem intencionada e o bem começou a vencer o mal...53.

Após o advento da Constituição de 46, a convivência da Justiça do Trabalho com o Poder Judiciário trouxe outros ares.

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O processo administrativo fora alçado a processo judicial. Os próprios juízes trabalhistas passaram a acreditar que poderiam, verdadeiramente, ajudar a classe trabalhadora. Isto levou a criatura a desgarrar do criador, tanto que a própria Administração Pública passou a frequente ré perdedora nos bancos dos fóruns trabalhistas54.

Sem base propícia de direito positivado, a Justiça do Trabalho passou a criar soluções com muita boa vontade. O mero fato de manter-se de pé representa uma grande máquina a serviço de milhões de trabalhadores, facultando-lhes a cobrança de direitos patrimoniais. A Justiça do Trabalho tem sido instrumento de dignificação da pessoa humana, o que ocorre pelo simples embate patrão e empregado aos olhos de um juiz55.

Toda esta volta por cima da Justiça do Trabalho, bem como sua traição aos anseios malignos de quem a criou, veio a ser premiada pela Emenda n. 45.

Acostumados com o exercício criativo de prática que melhor floresça os direitos fundamentais, marcados por uma história de superação de valores, vítimas de olhares desconfiados pela aparente falta de tecnicismo, os Tribunais Trabalhistas, finalmente, ganham oportunidade...

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