Atos Infracionais nas Escolas

AutorJadir Cirqueira de Souza
Páginas295-411

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1 O ato infracional como uma das categorias de violência escolar

Nos Capítulos pretéritos foram discutidas as principais causas concorrentes do insucesso educacional brasileiro no decorrer dos séculos, destacando-se a notória ausência de políticas públicas de longo prazo e testadas cientificamente, embora, como exemplos destacados no primeiro Capítulo, ocorreram avanços consideráveis como a quase universalização do ensino fundamental, a adequada distribuição da merenda na maioria das escolas e a constante busca da qualificação profissional do corpo docente, ao invés de simplesmente decorar teses acadêmicas tradicionais.

Destacou-se ainda que as ações políticas educacionais mais importantes somente produzirão êxito quando – realmente – levarem em consideração com prioridade absoluta as múltiplas, complexas e difíceis relações diárias entre o(a) aluno(a) e o(a) professor(a) em sala de aula, durante os cinquenta minutos de cada aula.

A tardia, mas imprescindível revolução do sistema de ensino brasileiro deve começar dentro de cada sala de aula e em cada escola e, jamais, apenas

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nos gabinetes oficiais ou nos discursos palacianos, ou seja, a educação somente vai melhorar, significativamente, quando a prioridade absoluta centrar-se no aprendizado dos alunos e as mudanças ocorrerem em sala de aula.

Mostrou-se que o sistema educacional navega em círculos, ao longo dos séculos, sempre considerado, principalmente, a partir das conveniências político-partidárias, e pouco sustentado por bases científicas.

Assim, é de notório conhecimento público que a má qualidade da educação brasileira constitui uma das causas concorrentes da violência escolar, bem como de pouco adianta discutir a aplicação da lei na eventual contenção da prática de atos infracionais nas escolas, se a evolução do sistema de ensino não ganhar foros de legitimidade e revolução nacional muito além dos discursos oficiais e das medidas meramente paliativas.

No segundo Capítulo, também destacou-se que a efetividade na integral proteção dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes em situação de risco e/ou vitimizados constitui importante corresponsabilidade do sistema de ensino, tanto no sentido de exigir a implantação da rede municipal de proteção com a criação e o funcionamento dos programas relacionados no art. 90 do ECA, bem como na segura percepção, orientação e tratamento dos casos observados, principalmente pelo corpo docente nas salas de aulas, em virtude da proximidade diária com crianças e adolescentes.

Como um dos exemplos, reforçou-se a ideia de que crianças e adolescentes que praticam o bullying1, além do eventual e possível tratamento jurídico, na qualidade de autores de atos infracionais, de acordo com o enquadramento jurídico-penal que será discutido adiante, mesmo como autores da nefasta prática ilícita, também são vítimas e necessitam de proteção e de cuidados psicossociais, familiares e educacionais, uma vez que usam a violência física ou verbal como arma letal contra vítimas indefesas, oprimidas e abandonadas, normalmente reproduzindo comportamentos similares assimilados nas próprias famílias ou na sociedade.

Significa dizer que é preciso tratar das vítimas e dos adolescentes – praticantes do bullying – nas categorias jurídicas elencadas no art. 98 do

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ECA, além das ações, medidas e programas governamentais, inclusive a irrestrita e total participação da família, da sociedade e do Estado, pois, reconhecidamente, apenas ações jurídicas são insuficientes para tratar dos múltiplos problemas desencadeados pela violência nas escolas.

De nada adianta reforçar-se o sistema punitivo de natureza criminal, se os governos e a sociedade, sobretudo a rede municipal de proteção infantojuvenil, não criarem mecanismos hábeis e suficientes para garantir a integral defesa dos direitos e interesses jurídicos das crianças e adolescentes-vítimas.

Após, da condição de vítimas da má qualidade da educação e de maus-tratos praticados pela família, pela sociedade e pelo Estado, iniciou-se a análise das situações relativas à indisciplina escolar.

Traçando-se um paralelo com as situações de risco social que vitimizam crianças e adolescentes, pode-se afirmar que se, na sociedade civil, pairam constantes tentativas de somente criminalizar e punir comportamentos juvenis, nas escolas, da mesma forma, tenta-se impor punições disciplinares ao invés de discutir com mais rigor científico, a melhoria da relação do processo de ensino-aprendizagem.

Portanto, defendeu-se que a adequada e necessária implementação das medidas disciplinares para os casos mais graves e disciplinados no Regimento Interno ou na lei federal específica, com a processualização das ações e procedimentos administrativos punitivos, desde que acompanhados de programas e projetos pedagógicos compatíveis com os modernos métodos ou técnicas de ensino e aprendizagem, produzem efeitos altamente positivos na redução dos índices de violência escolar.

O tratamento adequado da indisciplina escolar, com a prévia fixação de regras claras, tanto em relação aos tipos de condutas inadequadas no ambiente escolar, como no tocante ao processo administrativo e às sanções disciplinares razoáveis e proporcionais à gravidade dos fatos, constituem uma das formas válidas de melhorar a qualidade da relação professor(a)--aluno(a).

Talvez seja uma das partes mais difíceis de serem implantadas na prática diária, uma vez que parte-se de uma secular posição de mando e/ou superioridade para uma relação democrática e equilibrada de igualdade, dentro dos limites, responsabilidades, direitos e deveres de todos.

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Em suma, a processualização administrativa da indisciplina escolar, pelo menos para os casos mais graves, traduz inadiável necessidade de ser implantada nas escolas brasileiras que agem ou deixam de agir – na maioria das vezes – de forma dissonante aos modernos paradigmas estatutários e constitucionais vigentes, exigindo-se a intervenção do Poder Judiciário pelos meios legais cabíveis.

Enfim, contextualizada a indisciplina escolar, doravante, no presente Capítulo, serão estudados os principais aspectos relativos à existência da criminalidade infantojuvenil nas escolas e as principais medidas e ações investigativas e punitivas dos fatos que caracterizam a violência escolar na modalidade de ato infracional.2O conhecimento do sistema estatutário relativo à apuração e eventual punição dos atos infracionais, dentre outros fundamentos, possui relevância pelos seguintes motivos: é obrigação legal do Estado promover o ensino do ECA nas escolas do ensino fundamental3, as ações, medidas ou omissões no tratamento dos atos infracionais repercutem positiva ou negativamente no ambiente escolar e na sociedade; e, principalmente os professores, diretores e demais servidores públicos da área educacional também possuem o direito de conhecer o sistema de apuração e punição pela prática de atos infracionais, inclusive utilizá-lo de forma responsável e criteriosa.

A visão popular de que o ECA somente trouxe direitos para as crianças e adolescentes constitui um mito difícil de ser vencido nos meios de comunicação, nas escolas e mesmo no ambiente forense, sobretudo em virtude do desconhecimento do sistema legal estatutário e de sua pouca aplicabilidade prática, sobretudo pelo desconhecimento do atual sistema

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infantojuvenil garantista, fato majoritariamente reconhecido pelos especialistas, segundo SARAIVA.4Na verdade, as críticas lançadas contra o ECA – por muitos educadores, juristas e meios de comunicação – deveriam ser direcionadas às autoridades integrantes dos Poderes Públicos e aos agentes encarregados da educação e dos programas governamentais de proteção integral, uma vez que o desconhecimento da lei, além de inescusável, não deveria ser passivamente aceito no universo escolar, inclusive para que se possa discutir cientificamente as vantagens e desvantagens da nova lei que regulamentou os direitos e deveres infantojuvenis.

Adotando-se como paradigma o ato infracional, sabidamente uma das espécies de violência escolar dentro da linha procedimental do presente trabalho, serão destacados os aspectos doutrinários relativos à existência e definição do fenômeno da violência nas escolas; em seguida, serão apresentados os fundamentos do direito penal juvenil e, finalmente, a forma de atuação dos principais componentes do sistema de persecução penal infantojuvenil: policiais militares e civis, Conselho Tutelar, advogados, Ministério Público e o Poder Judiciário na temática denominada de processo penal juvenil, utilizando-se a expressão de LIBERATI.5Depois de mais de vinte anos de vigência do ECA, é possível afirmar que a prática de atos infracionais graves dentro e fora das escolas constitui um dado inegável na realidade da violência infantojuvenil. A variação e/ou a quantificação dos dados varia de escola para escola e de cidade para cidade, mas não é possível descartar, ou tratar como de pouca importância, a existência de crimes e contravenções penais, bem como os atos infracionais que são praticados impunemente no interior ou no entorno das escolas brasileiras.

Apenas com base em concepções ideológicas reducionistas ou abolicionistas, não se...

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