A Formação do Atleta: Equilíbrio entre Regras de Proteção à Entidade Formadora e o Respeito aos Direitos Fundamentais da Criança e do Adolescente

AutorCarlos Eduardo Ambiel
Ocupação do AutorAdvogado. Mestre em Direito do Trabalho pela USP. Professor de Direito do Trabalho
Páginas162-174

Page 162

Ver nota 1

I - Introdução

A formação de novos atletas, envolvendo desde a descoberta de jovens talentos, passando pelo regime de treinamento a que serão submetidos até chegar à eventual profissionalização, constitui tema de grande interesse para os profissionais do esporte. Evidentemente que não existe uma única receita de sucesso para a formação de atletas de alto rendimento, sendo que os diversos modelos variam conforme a cultura local, os recursos disponíveis e própria modalidade praticada2.

No Brasil, embora a educação física seja componente curricular obrigatório da educação básica3, o que deveria garantir a realização de atividades físicas orientadas para todas as crianças e adolescentes estudantes, na realidade é bastante diferente4 e não há uma tradição no surgimento de atletas de alto rendimento em escolas, universidades e praças públicas, papel geralmente exercido por associações privadas organizadas, em sua maioria, sob a forma de clubes sociais sem fins lucrativos5.

Essa descentralização da formação de atletas não seria uma preocupação para o Direito do Trabalho se as relações no esporte fossem apenas voluntárias ou amadoras, pois os parâmetros e limites de esforço físico estariam disciplinados e estudados apenas por profissionais de disciplinas como medicina esportiva, fisiologia do esporte e educação física. No entanto, diante de um cenário crescente de profissionalização, somado à existência de expressivo volume de recursos destinado para eventos, premiações, patrocínio e ações de marketing, a prática da atividade esportiva de alto rendimento passou a constituir profissão e fonte de renda pessoal, muitas vezes, sob o regime de emprego, o que motiva a disciplina dessa relação jurídica.

Isso explica a reiterada preocupação do legislador nacional em regulamentar não apenas o trabalho do atleta, mas também as etapas que antecedem sua profissionalização, pensando tanto na preservação dos interesses das entidades

Page 163

formadoras, para que continuem investindo recursos e tempo na identificação e treinamento de novas promessas, quanto na preocupação de impedir que jovens atletas adolescentes sejam tratados como mercadorias ou submetidos a esforços físicos, técnicos ou psicológicos incompatíveis com seu desenvolvimento.

A dificuldade na identificação de regras capazes de harmonizar esses dois interesses - conferir garantia mínima de retorno desportivo ou financeiro para as associações formadoras sem ferir qualquer direito fundamental dos atletas adolescentes - pode ser evidenciada pela quantidade e intensidade das alterações legislativas realizadas sobre o tema desde 19986.

É nesse cenário de normas complexas e em constante revisão que será analisado o instituto da formação desportiva no Brasil, iniciando-se pela evolução histórica das disposições sobre o tema, desde a extinção do passe até as últimas alterações ocorridas na Lei n. 9.615/1998, em 16 de março de 2011. Na sequência, analisaremos a amplitude e o sentido das obrigações e garantias previstas para o período de aprendizagem esportiva e suas consequências em futuras e eventuais relações de trabalho, sempre com o foco no respeito às garantias e direitos fundamentais.

Ao longo da análise, feita a partir de estudos na legislação e doutrina especializada, serão identificados e apontados os pontos de divergência e/ou incongruência da norma nacional com algumas obrigações e institutos previstos por associações internacionais, analisando seu efeito prático na preservação dos direitos de entidades esportivas e atletas, finalizando com a conclusão, onde serão resumidas as proposições extraídas do estudo.

II - A prática desportiva como direito fundamental

A Constituição Federal de 1988 finalmente declarou que o fomento às práticas desportivas constitui dever do Estado e direito de cada cidadão7, consagrando aquilo que inúmeras cartas e declarações internacionais8 já faziam há mais de 50 (cinquenta) anos, ao reconhecer a importância da prática desportiva e tratar a educação física e o desporto como direito humano fundamental.

Na visão de Álvaro Mello Filho9 a Constituição criou as diretrizes para que as atividades desportivas passassem a se desenvolver dentro do contexto de responsabilidade social. Mais que isso, ao prever a obrigação de o Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais10 o caput do citado art. 217 inaugurou novo cenário regulatório para o desporto, no qual o incentivo a prática desportiva deixa de ser uma mera opção de política pública para se tornar exigência legal materializada na obrigação de "destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento".

Portanto, ao investirem recursos materiais e humanos na formação de atletas, as entidades privadas de prática desportiva estão, no mínimo, colaborando com a efetivação de parte da obrigação, que caberia ao Estado, de garantir o acesso à prática esportiva de qualidade aos cidadãos, exatamente como recomenda a Carta Internacional de Educação

Page 164

Física e Esporte da UNESCO de 197811 ao qualificar a garantia de acesso a pratica do esporte como instrumento necessário para o pleno desenvolvimento das faculdades físicas, intelectuais e morais do ser humano, tanto na esfera educacional quanto nos demais aspectos da vida social.

Além disso, diante da deficiência ainda existente na estrutura física e humana das escolas e praças desportivas mantidas pelo poder público, o trabalho realizado pelas entidades privadas também passou a ter inegável importância para o crescimento do resultado esportivo brasileiro nas mais diversas modalidades e competições12.

Todos esses fatos justificam a preocupação reiterada do legislador, a partir de março de 1998, em promulgar normas que, além de preservar direitos fundamentais e garantir a proteção aos jovens atletas, não afastem o interesse de clubes e empresas em continuar investindo em centros de prática e formação, com alguma expectativa mínima de retorno. Antes sequer havia espaço para tais preocupações, pois enquanto vigorou o instituto do passe para os profissionais do futebol13, qualquer atleta formado ou registrado por determinada equipe, permaneceria obrigatoriamente vinculado e não poderia ser contratado por outra equipe, até o pagamento da indenização pelo passe.

A partir da extinção do passe em março de 1998, por meio da Lei Pelé, o legislador restabeleceu a liberdade contratual na relação de trabalho dos atletas de futebol e, naturalmente, acabou com a certeza de retorno desportivo ou financeiro que a revelação de um atleta de qualidade representava para os clubes formadores, especialmente aqueles de menor expressão econômica.

Isso explica porque, mesmo em sua redação original, a Lei n. 9.615/1998 já trouxe alguns dispositivos que tentavam prever algum tipo de garantia ou vantagem para as entidades de prática desportivas que continuassem investindo tempo e recursos nas categorias de base. Nesse sentido, foi instituída a figura o contrato de estágio com atleta semiprofissional, que permitia a fixação de multa para as hipóteses de rescisão unilateral14 além do direito de o clube formador assinar o primeiro contrato profissional com o adolescente em formação15 e da preferência para a primeira renovação deste contrato, sendo facultada a cessão onerosa de referido direito a terceiros16.

Em julho de 2000, apesar de alterar muitos artigos da Lei Pelé, a Lei n. 9.981/2000 pouco modificou a disciplina da formação desportiva, tendo apenas introduzido o parágrafo segundo ao art. 29, que passou a considerar formadora somente as entidades de prática que comprovassem estar com o atleta em formação há, pelo menos, 02 (dois) anos17.

Page 165

Mudança mais drástica foi trazida pela Medida Provisória n. 2141, de março de 2001, que foi reeditada apenas 06 (seis) vezes e criou os polêmicos institutos da indenização de formação18 e indenização de promoção, sendo que essa última permitia ao empregador continuar pagando 06 (seis) meses de salário ao atleta, mesmo após o término do contrato, para poder se ressarcir de eventual contratação por outro clube no período.

Em maio de 2003, uma nova e profunda alteração da Lei Pelé feita pela Lei n. 10.672/2003 criou a figura a aprendizagem desportiva e passou a exigir que as entidades formadoras propiciassem uma série de vantagens aos atletas em formação, como assistência médica e odontológica, alojamento, alimentação e acesso à escola19. Apenas se observassem essas exigências e permanecesse com o atleta aprendiz durante dois anos, a entidade de prática adquiriria o status de "formadora" e, assim, passaria a ter direito de assinar o primeiro contrato profissional com o adolescente formado, além do direito de preferência na primeira renovação.

O legislador estabeleceu o direito ao recebimento de uma indenização, apurada conforme a idade e o valor da bolsa aprendizagem20, a ser paga por qualquer outra entidade desportiva que firmasse contrato com o atleta que ainda estivesse sob regime de aprendizado com a associação formadora. O mecanismo tinha a vantagem de exigir das entidades formadoras uma série de obrigações para que passassem a gozar das prerrogativas e garantias estabelecidas; ou seja, o legislador continuou incentivando a formação, mas a vinculou ao cumprimento de todas as obrigações junto aos aprendizes.

Ainda assim, a solução sofreu crÍticas porque fixava valores de indenização apenas para atletas maiores de 16 (dezesseis) que, normalmente já estariam profissionalizados, tornando a disposição praticamente inócua. Além disso, os dispositivos sobre direito ao primeiro contrato profissional e à preferência na renovação eram muito genéricos21 e, como jamais foram regulamentados, não propiciavam...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT